sábado, junho 27, 2009

O verão de Off The Wall

O verão de Off The Wall


Não tenho certeza, mas acho que foi no verão de 1979/1980, que eu pude desfrutar meu último verão de puro ócio escolar. E aqui o primeiro de alguns parênteses que este texto terá. Os nossos verões austrais são divididos, dezembro de um ano, janeiro e fevereiro do ano seguinte. Qualquer pessoa que viva no hemisfério sul sabe disso, mas talvez não seja tão evidente para quem viva no hemisfério norte. Assim, fico com o verão de 1979/1980, pois no verão seguinte, 1980/1981, não pude desfrutar do verão. Consegui meu primeiro contrato de trabalho em janeiro de 1981.


O SESC, Serviço Social do Comércio, possui uma sede campestre lá pelo número 6000 da avenida Protásio Alves, em Porto Alegre. A Protásio Alves é uma das principais e mais longas avenidas de Porto Alegre. A sede campestre do SESC possui um conjunto de piscinas.


Naquele final da década de 1970 e início da seguinte, o SESC permitia aos estudantes da comunidade ao redor usufruir das piscinas entre terça e sexta-feira. Entre terça e sexta-feira os comerciários estão trabalhando, então o movimento no parque aquático era fraquíssimo. Então a direção do SESC teve a boa idéia de liberar as piscinas.


Eu fui um dos que pôde desfrutar das piscinas naquele período. O sistema de funcionamento estabelecia que o acesso poderia ser feito em determinado horário pela manhã, e em outro determinado horário à tarde. Acredito que fosse às duas da tarde. Naquela época não tínhamos horário de verão. Junto às piscinas havia uma lanchonete com dois balcões de acesso. Um acesso pelo parque das piscinas, e o outro pela área da sede campestre. Um sistema rigoroso de exame era feito então para o acesso às piscinas. Micoses em geral, e as temíveis frieiras em particular geravam banimento aos seus portadores. Como nós chegávamos antes do horário de abertura, precisávamos ficar aguardando.


Junto à lanchonete pelo balcão da sede campestre havia uma caixa de música, uma “jukebox”, dessas que funcionam com moedas. Se bem que aqueles eram tempos de inflação alta, então provavelmente a tal máquina funcionava com fichas. Eu nunca comprei uma ficha para a máquina. Mas muitos frequentadores compravam.


Uma das músicas mais tocadas era “Don't stop till you get enough”. Todo dia alguém comprava uma ficha e pedia esta música enquanto esperávamos o horário de acesso às piscinas. Houve dias em que a música pôde ser ouvida mais de uma vez. A música fazia parte do disco “Off The Wall”, de Michael Jackson.


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quinta-feira, junho 25, 2009

Continua morrendo muita gente em pouco tempo

Dois dias atrás eu comentei aqui que morria muita gente em muito pouco tempo.

Hoje recebi a notícia de que a “pantera” Farrah Fawcett faleceu em decorrência de câncer. Câncer este com o qual lutava há uns dois anos. A notícia de seu falecimento está copiada aí abaixo, da Folha Online, com uma foto da época em que a musa estava no auge de sua beleza, lá por meados dos anos 1970. Com sua participação no seriado As Panteras (ou “Charlie’s Angels” originalmente) ela se tornou muito conhecida aqui no Brasil. O seriado passava na TV Globo, após a novela das oito.

E, agora à noite, vi a notícia, também copiada abaixo que o cantor Michael Jackson faleceu, em circunstâncias ainda não de todo esclarecidas. Confesso que receber a notícia de Michael Jackson foi francamente chocante. O homem tinha apenas 50 anos. É um astro pop desde a infância. E eu imaginaria que ele bem teria ainda uns 20 ou 30 anos de vida pela frente. E o curioso é que eu nem sou um fã tão grande assim de Michael Jackson. Nunca cheguei a comprar um disco dele, embora no final de minha infância tenha pensado em comprar algum disco dos “Jackson Five”, o grupo que o pai de Michael montou com Michael e seus irmãos, que inclusive acabou gerando um desenho animado. Mas de fato, nunca comprei um disco. Minhas lembranças afetuosas são para a música “Ben”, e um hit que mais ou menos estourou por aqui no verão de 1979/1980 acho. Creio que foi do disco que precedeu Thriller, e cujo nome eu não sei.

A vida é curta, eu sei. Mas estou chocado com o desaparecimento precoce de Michael Jackson.


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Singer Michael Jackson dies at 50


Pop star Michael Jackson has died in Los Angeles, aged 50.

Paramedics were called to the singer's home around midday local time on Thursday after he stopped breathing.

He was pronounced dead two hours later at the UCLA medical centre. A spokesman for the centre said the star died of a suspected heart attack.

Speaking on behalf of Jackson's family, his brother, Jermaine, said doctors had tried to resuscitate the star for more than an hour without success.

He added: "The family request that the media please respect our privacy during this tough time."

"And Allah be with you Michael always. I love you."

Jackson, who had a history of health problems, had been due to begin a series of comeback concerts in the UK on 13 July.

HAVE YOUR SAY Can't believe it. I'm gutted. RIP Michael, thanks for everything you gave us. Tommy, Cardiff

Concerns were raised last month when four of the concerts were postponed, but organisers insisted the dates had been moved due to the complexity of staging the show.

A spokeswoman for The Outside Organisation, which was organising the publicity for the shows, said she had no comment at this time.

Broadcaster Paul Gambaccini said: "I always doubted that he would have been able to go through that schedule, those concerts. It seemed to be too much of a demand on the unhealthy body of a 50 year old.

"I'm wondering that, as we find out details of his death, if perhaps the stress of preparing for those dates was a factor in his collapse.

"It was wishful thinking that at this stage of his life he could be MJ again."

Uri Gellar, a close friend of the star, told BBC News it was "very, very sad".

Speaking outside the UCLA medical centre in Los Angeles, civil rights activist Rev Al Sharpton paid tribute to his friend.

"I knew him 35 years. When he had problems he would call me," he said.

"I feel like he was not treated fairly. I hope history will be more kind to him than some of the contemporary media."

Melanie Bromley, west coast bureau chief of Us Weekly magazine, told the BBC the scene in Los Angeles was one of "pandenomium".

"At the moment there is a period of disbelief. There are hundreds of people outside UCLA waiting for news.

"He was buying a home in the Holmby Hills area of Los Angeles and the scene outside the house is one of fans, reporters and TV cameras - it's absolute craziness.

"I feel this is the biggest celebrity story in a long time and has the potential to be the Princess Diana of popular culture."

Musical icon

MICHAEL JACKSON 1958-2009
  • Full name: Michael Joseph Jackson
  • Born: August 29, 1958, Gary, Indiana, US
  • Also known as: The King of Pop, Wacko Jacko
  • Biggest hits: I Want You Back, Don't Stop Til You Get Enough, Billie Jean, Bad, Black or White, Earth Song
  • Paramedics were called to the singer's house in Bel Air at 1221 following an emergency phone call.

    They performed CPR on Jackson and rushed him to the UCLA medical centre.

    A spokesman for the Los Angeles Police Department said the robbery and homicide team was investigating Jackson's death because of its "high profile", but there was no suggestion of foul play.

    Jackson began his career as a child in family group The Jackson 5.

    He then went on to achieve global fame as a solo artist with smash hits such as Billie Jean and Bad.

    Thriller, released in 1982, is the biggest-selling album of all time, shifting 65m copies, according to the Guinness Book of World Records.

    He scored seven UK number ones as a solo artist and won a total of 13 Grammy awards.

    "For Michael to be taken away from us so suddenly at such a young age, I just don't have the words," said Quincy Jones, who produced Thriller, Bad and Off The Wall.

    "He was the consummate entertainer and his contributions and legacy will be felt upon the world forever. I've lost my little brother today, and part of my soul has gone with him."

    The singer had been dogged by controversy and money trouble in recent years, becoming a virtual recluse.

    He was arrested in 2003 on charges of molesting a 14-year-old boy, but was found not guilty following a five-month trial.

    The star had three children, Michael Joseph Jackson Jr, Paris Michael Katherine Jackson and Prince Michael Jackson II.

    He is survived by his mother, Katherine, father, Joseph and eight siblings - including Janet, Randy, Jermaine and La Toya Jackson.

    Texto da BBC.

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    Atriz Farrah Fawcett morre, aos 62 anos, nos EUA

    Atriz Farrah Fawcett morre, aos 62 anos, nos EUA

    da Folha Online

    A atriz Farrah Fawcett, 62, conhecida por seu papel na série "As Panteras", morreu na manhã desta quinta-feira (25), em um hospital de Los Angeles, informou seu porta-voz Paul Boch.

    Fawcett lutava, há cerca de dois anos e meio, contra um câncer retal. A luta da atriz contra a doença se transformou em um documentário, intitulado "Farrah Story", e transmitido recentemente da TV norte-americana.

    A atriz se tornou conhecida em 1976 ao integrar o elenco do seriado de TV "As Panteras". Fawcett deixou a série após uma temporada, quando começou a trabalhar no cinema, no filme "Somebody Killed Her Husband".

    Nesta quarta-feira, Fawcett havia sido encaminhada a uma UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) devido à piora no seu quadro clínico, de acordo com o site do jornal americano "Extra".

    Ela estava internada desde o começo da semana e estava acompanhada do namorado Ryan O'Neal.

    Considerada uma das mulheres mais atraentes de Hollywood nos anos 70, Fawcett concordou recentemente em se casar com o ator Ryan O'Neal, seu parceiro desde os anos 80. O ator, de 68 anos, revelou que ela era o amor de sua vida e, por isso, pediu sua mão em casamento.

    Os dois já foram casados em 1979, mas o casamento terminou nos anos 90.

    No entanto, eles se reencontraram em um dos momentos mais difíceis na vida da atriz e, segundo confessou O'Neal, depois de várias tentativas, sua companheira de toda a vida finalmente disse o "sim". "Diremos o 'sim' quando ela puder", disse O´Neal nesta semana.

    Em recente entrevista concedida à revista "People", O'Neal contou que a atriz passava seus dias confinada em casa, a maior parte do tempo na cama, por causa dos efeitos do tratamento contra o câncer.

    Fawcett perdeu o cabelo, estava muito debilitada e só recebia a visita de algumas amigas íntimas, como Jaclyn Smith e Kate Jackson, que foram suas companheiras na popular série de televisão "As Panteras".

    com Associated Press e Efe

    Texto da Folha Online. Foto da AP, vinda da Folha.


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    quarta-feira, junho 24, 2009

    A Peste chegando

    A Peste Chegando...


    Esta semana me senti surpreendido com a proximidade da peste aqui no Rio Grande do Sul. A mais recente peste é a “gripe A”, gerada pelo vírus H1N1, também conhecida como “gripe suína”, devido a uma possível incubação em porcos, e ainda como “gripe mexicana”, este último apelido quase deixado de lado pela carga de preconceito que pode trazer, e, obviamente, ligado a uma suposta origem geográfica da praga.

    Recebemos a notícia que as aulas do Colégio Farroupilha, uma escola de elite aqui de Porto Alegre, foram suspensas depois que foi constatado que um aluno que voltava de um intercâmbio na Alemanha estava infectado com o vírus da tal gripe A.

    E em São Gabriel, município próximo da fronteira com a Argentina, as aulas na rede municipal de ensino também foram suspensas depois que se constatou que uma aluna que havia recentemente visitado Buenos Aires, capital da Argentina, também estava infectada com a gripe A. Em São Gabriel, o prefeito radicalizou as medidas de segurança sanitária, impedindo mesmo que as missas na cidade fossem realizadas em templos. Em tese o risco de contágio aumenta com o agrupamento de pessoas em locais fechados, como seria o caso da celebração de uma missa.

    E de repente, a peste que parecia longínqua e exótica, como havia acontecido com a síndrome respiratória aguda, ou SARS, que acabou apelidada de pneumonia asiática alguns anos atrás, está definitivamente entre nós. Não é mais apenas uma ameaça remota, que paralisou o México, ou causou a suspensão de aulas em algumas escolas na costa leste dos Estados Unidos há alguns meses atrás. A peste está entre nós, causando suspensão de atividades comuns, e fazendo com que as pessoas se tranquem em casa.

    Escolas desertas, pessoas trancadas em casa... Não vivi a gripe espanhola, que devastou parte da população mundial no início do século XX, mas posso imaginar o medo se espalhando. Ou pensar no medo que a peste negra espalhou pela Europa do século XIV.

    Bem, pelo menos, no decorrer daquele século XIV, a peste acabou por inspirar Bocaccio a escrever o Decamerão.


    24/06/2009.


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    Paisagem com figuras

    Paisagem com figuras

    RIO DE JANEIRO - Em meados dos anos 60, o poeta João Cabral de Mello Neto jantava na cantina Fiorentina, no Leme, com seus colegas Fernando Pessoa Ferreira e Felix de Athayde, pernambucanos como ele. Em certo momento, ouviu-se um rumor na varanda e João Cabral perguntou o que estava acontecendo. "É o Chacrinha, que acabou de chegar", informou Fernando.
    "Chacrinha? Quem é Chacrinha?", quis saber João Cabral. "É um apresentador de tevê, muito famoso", disseram. Cônsul do Brasil em Barcelona, com raras vindas ao Rio e famoso por não se interessar por música e por tomar dez aspirinas por dia para a dor de cabeça, o poeta estava por fora do que acontecia por aqui.
    E, mesmo que estivesse a par, não podia haver ninguém menos Chacrinha do que João Cabral. Na sua poesia, grave e desidratada, as palavras eram de pedra, os cães, sem plumas, e as facas, só lâminas. Já Chacrinha era o barroco em Technicolor, embora a tevê ainda fosse em preto-e-branco. Apresentava os piores cantores do Brasil, atirava bacalhau para a plateia e promovia concursos de comer barata. Os comunicólogos ainda não o tinham descoberto como símbolo do "mau gosto genial".
    Chacrinha entrou ventando pela Fiorentina, cercado de dez ou quinze assistentes. Ao se aproximar da mesa de João Cabral, estacou e olhou-o por um segundo. Então, abriu os braços e exclamou: "Cabral!!!". O poeta levou um susto, mas não deixou a bola cair: "Abelardo!!!". Levantou-se no ato e os dois se abraçaram, aos soluços.
    O poeta João Cabral de Mello Neto -cujos dez anos de morte se completam em outubro próximo- e o apresentador Abelardo "Chacrinha" Barbosa, colegas de primário nos Maristas, de Recife, e que não se viam havia mais de 30 anos, tinham acabado de se reconhecer e reencontrar. É o Brasil.

    Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo, de 4 de maio de 2009.

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    Crimes e pedras

    Crimes e pedras

    DOMINGO, FUI até a rua Venceslau Brás, no centro de São Paulo, e procurei o número cívico 13. Sem sucesso: do lado ímpar, a rua começa no número 67, com o imponente prédio da Caixa Econômica Federal, completado em 1939. Talvez, no passado, houvesse um primeiro trecho onde hoje se prolonga a praça da Sé, do lado norte. Ou, então, a numeração mudou.
    Fui lá porque passei um sábado especialmente feliz lendo o novo livro de Boris Fausto, "O Crime do Restaurante Chinês" (Companhia das Letras); aprendi assim que, em 1938, o restaurante chinês do número 13 da Venceslau Brás (ou Wenceslau Braz) foi o teatro de um crime que ocupou bastante a mente e a fantasia dos paulistanos. Na calada da noite, os donos (um casal de origem chinesa, que vivia nos fundos) e dois garçons (um lituano e um brasileiro, que dormiam em cima das mesas do restaurante) foram assassinados a golpes de mão de pilão.
    Das narrativas que relatam crimes verdadeiros, espera-se que nos prendam irresistivelmente, como romances policiais, e que sejam fiéis aos fatos e aos documentos que os atestam: artigos de imprensa, arquivos da investigação policial, da instrução criminal e dos processos etc.
    Para mim, até agora, o modelo dessas narrativas era "A Sangue Frio", de Truman Capote. Capote dialogou longamente com um dos assassinos de sua história e, à força de empatia (talvez involuntária), ele nos levou para uma viagem ao coração das trevas (as do criminoso e as do autor).
    Boris Fausto, por ser um grande historiador, escolheu um caminho diferente, mas não menos empolgante: o crime, para ele, não é a ocasião para uma descida aos ínferos, mas uma janela que se abre sobre o mundo. 1938 é ano de Copa. É o tempo em que São Paulo se torna uma metrópole, com a variedade da imigração e seu corolário, o racismo. O Carnaval de rua já é pretexto para abandonar o trabalho. Numa aliança paradoxal entre o positivismo de Lombroso e a psicologia analítica, a psiquiatria tenta se fazer valer como ciência, a ponto de querer transformar suas perícias em provas jurídicas, como se testes e medições pudessem dizer quem matou e quem é inocente. E por aí vai.
    Mas o que mais me tocou é que, ao me levar para um momento específico da história do Brasil, Boris Fausto me aproximou da sociedade e do lugar nos quais vivo.
    Na tarde de domingo, como não achava o número 13 da rua Venceslau Brás, caminhei da rua do Carmo até à praça do Patriarca, pela rua Direita. Ao lado de um boteco, um homem me perguntou, sem mais nem menos, se eu não teria trabalho para lhe oferecer -como caseiro ou zelador, ele especificou. Ele era singularmente parecido com o acusado do "Crime do Restaurante Chinês".
    Em suma, além do prazer da leitura, devo a Fausto um passeio pelo centro da cidade durante o qual, apesar da calmaria do domingo, ruas e prédios pareciam contar os encontros e os desencontros de inúmeras existências, passadas e presentes.
    Não é para estranhar. Assim como a história não é só a de reinantes, generais e políticos, os monumentos de nossas cidades não são apenas os museus e os palácios, mas também os mocambos e os sobrados -esses, aliás, são o verdadeiro palco da festa e da miséria de viver.
    Poucos meses atrás, estive de férias na Itália com dois adolescentes. Tarefa árdua, eu queria lhes ensinar a amar (teria dito John Ruskin) as pedras de Veneza. Os guias tradicionais não me ajudavam: por mais que tentasse, eu não conseguia juntar os preâmbulos históricos sobre doges, guerras e lutas intestinas com a descrição tediosa de igrejas, museus e monumentos.
    Não pretendia instrui-los na história de Veneza e da arte veneziana. Queria apenas que eles topassem bater pernas o dia inteiro, e não por obediência resignada, mas por eles enxergarem e ouvirem, milagrosamente, a vida daquelas pedras.
    No fim, encontrei dois guias peculiares (ed. Elzeviro), que existem em várias línguas, mas, aparentemente, só se vendem nas livrarias de Veneza. Um, "Leggende Veneziane", de Alberto Tosi, conta lendas urbanas e aparições de fantasmas, levando o leitor por itinerários sobrenaturais. O outro, "Nero Veneziano", de Claudio dell'Orso, conta 21 crimes brutais, antigos ou recentes, acontecidos em alguma casa ou palácio da cidade.
    Ganhei a parada. As pedras de Veneza começaram a falar, e meus jovens amigos a escutar. Um dia destes, vou levá-los para a rua Venceslau Brás.

    Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo, de 30 de abril de 2009.


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    Acerca de nomes de logradouros públicos

    Uma patrulha ideológico-rodoviária

    UM DEPUTADO estadual paulista apresentou um projeto de lei que poderá abrir o caminho para a cassação de nomes de ruas, avenidas e estradas. A rodovia Castello Branco, que liga São Paulo ao oeste do Estado, seria renomeada, trocando-se o nome do marechal eleito pelo Congresso depois da deposição de João Goulart pelo de um baluarte da democracia, como d. Helder Câmara, por exemplo. A designação de logradouros passaria pela peneira de um Conselho de Direitos Humanos.
    O projeto dificilmente será aprovado. Se virar lei, não haverá de funcionar, a menos que se consiga uma justificativa politicamente correta para as ruas e avenidas que homenageiam escravocratas do Império. Mesmo assim, ele tem a virtude de provocar um bom debate, daqueles em que se entra com uma certeza e sai-se melhor, com algumas dúvidas.
    Tudo bem, o marechal Castello Branco, titular de uma ditadura envergonhada, presidiu o país de 1964 a 1967 e, pelos crimes praticados em seu governo, não poderia ser nome de rodovia. E o que se vai fazer com as avenidas Presidente Vargas espalhadas por todo o Brasil? A ditadura de Castello durou três anos. A de Getúlio Vargas, oito.
    Nesse caso, não se poderia mexer nos nomes dados às ruas? Aí surge o problema da rua Sérgio Fleury, localizada na cidade de São Carlos. O chefe dos janízaros (civis) da ditadura, sócio-fundador do Esquadrão da Morte, foi homenageado em 1980 pela Câmara Municipal da cidade. Há um mês, a mesma Câmara, por unanimidade, cassou a denominação e uma pesquisa informa que 75% dos moradores apoiam a mudança.
    Às vezes esses troca-trocas acabam em palhaçada. Em 1897, a imprensa que cobria o terceiro ataque ao Arraial de Canudos contou, emocionada, a história do cabo Roque, que morreu protegendo o corpo do comandante da expedição. Rebatizaram com seu nome a travessa do Ouvidor, até que o cabo Roque apareceu no Rio, vivo. Em outros casos, as paixões prevalecem e acabam confundidas com a paisagem. Raros são os cariocas que se dão conta de uma dissonância quando chegam à praça Tiradentes.
    Lá está a linda estátua equestre de d. Pedro 1º, neto da maluca Maria, em cujo reinado enforcaram o alferes. A praça chamava-se "Constituição", e o nome foi trocado nas celebrações do golpe republicano. Obrigaram o neto a ocupar o chão de uma vítima da avó.
    Quando os moradores de uma rua declaram-se ofendidos pelo nome que meia dúzia de vereadores lhes impuseram, é razoável que o pleito seja atendido. Fora daí, a história ao país pertence. Não há como fugir dela sem o recurso ao autoritarismo político.
    Em Montgomery, capital do Alabama e da confederação rebelde durante a Guerra da Secessão, há um cruzamento que resolve controvérsias desse tipo. Passada a Guerra Civil, os brancos se acertaram e impuseram aos negros um regime de segregação. Nessa nova harmonia, deu-se a uma avenida da cidade o nome de Jefferson Davis, presidente do Sul rebelado. Passou o tempo e uma comerciária negra recusou-se a dar o lugar para um branco num ônibus da cidade. Foi presa, desencadeou um boicote e o mundo soube da existência de um pastor chamado Martin Luther King. Ela se chamava Rosa Parks e morreu em 2005. Uma das avenidas de Montgomery recebeu o seu nome. Ela cruza a Jeff Davis, criando quatro gloriosas esquinas.

    Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, de 10 de junho de 2009.


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    terça-feira, junho 23, 2009

    Morre muita gente num espaço de tempo muito curto

    Zé Rodrix (1947-2009): o compositor, autor da música “Casa no Campo”, faleceu em 22 de maio passado. Casa no Campo foi sucesso em festivais da canção no início dos anos 1970. Acredito que não seja à toa, é a mesma época em que a população brasileira passa a ser majoritariamente urbana.

    David Carradine (1936-2009): O ator norte-americano faleceu em 3 de junho passado, na Tailândia, enquanto participava de filmagens no local. Inesquecível pela série de TV “Kung-Fu”, voltou a ser relativo sucesso com os filmes “Kill Bill” de Quentin Tarantino (2004).

    Perry Salles (1939-2009): O ator carioca será lembrado por mim como o Laio, pai de Édipo, na novela Mandala, na TV Globo, em 1987. Faleceu na semana passada, em 17 de junho.

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    segunda-feira, junho 22, 2009

    "Baseado em fatos reais"

    Baseado em fatos reais


    Em "O Crime do Restaurante Chinês", o historiador Boris Fausto reconstitui uma chacina ocorrida em São Paulo em 1938

    LUIZ COSTA LIMA
    COLUNISTA DA FOLHA

    Se a prática da micro-história tivesse por parâmetro a qualidade do recente livro do historiador e colunista da Folha Boris Fausto, "O Crime do Restaurante Chinês -Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos Anos 30", cairiam no vazio as acusações de que ela é uma contrafação da escrita da história.
    A micro-história é um modo do fazer historiográfico que se impôs desde a década de 1970, contrastando com os quadros panorâmicos de épocas marcantes, configurados, conforme a orientação ideológica do autor, seja por grandes heróis, seja por graves transformações infraestruturais.
    Considerada de maneira não preconceituosa, a micro-história encontra seu primeiro grande exemplo na análise da duplicidade do comportamento religioso dos chamados nicodemistas -aqueles que, convertendo-se à Reforma, continuavam a participar das cerimônias da igreja de Roma.
    Foi realizada por Carlo Ginzburg em "Il Nicodemismo - Simulazione e Dissimulazione Religiosa nell'Europa del 500" (O Nicodemismo - Simulação e Dissimulação Religiosa na Europa do Quinhentos, 1970). Sua peça mais conhecida é, entretanto, "O Queijo e os Vermes" (1976), do mesmo autor [no Brasil, pela Cia. das Letras].
    Para a localização do leitor não especializado, vale considerar que o surgimento da micro-história é uma das consequências do questionamento da escrita da história, realizado sobretudo na década de 1970.
    Essa década, bastante fecunda para o redirecionamento das ciências sociais, se caraterizou, do ponto de vista dessas, pela crítica acerba do positivismo ainda vigente -como vigente ainda permanece-, com sua ênfase na factualidade, no empirismo da análise, no primado de pressupostos teóricos não questionados, assim como pela discussão do papel da narrativa, na escrita da história.

    Narrativa literária
    Tal questionamento ainda se articulava com a fecundidade então alcançada pelos estudos teórico-literários.
    Daí a transversalidade de questões como a da própria narrativa. Se a narrativa é um recurso frequente na escrita da história e na ficção romanesca, seria correto manter-se a distinção entre elas?
    Além do mais, como a narrativa se impõe nas reportagens jornalísticas e televisivas, por que essas não teriam a "dignidade" acadêmica reservada à história e aos gêneros literários? Tais perguntas se tornavam particularmente sérias porque se referiam a áreas que sempre haviam desdenhado a indagação teórica.
    Daí derivavam renhidos antagonismos. Assim, um dos principais representantes da micro-história, o já citado Carlo Ginzburg, se tornaria um ardoroso adversário de Hayden White porque, em sua "Meta-História" [Edusp], o ensaísta norte-americano advogava uma proximidade entre narrativa literária e historiográfica, simplesmente intolerável a um discípulo de Arnaldo Momigliano [1908-87], como Ginzburg.
    Ora, a leitura de "O Crime do Restaurante Chinês" será um instrumento indispensável para o leitor que se levante essas questões.
    A micro-história não é um gênero ficcional porque não sai do círculo do documentado.
    Não é que as conclusões estejam documentadas (!) -o que tornaria a pesquisa ociosa-, mas sim que só se baseiam em elementos inferidos a partir de documentos.
    A ficção pode bem partir da mesma massa documental, sem por isso estar obrigada a segui-la fielmente.
    Um bom exemplo seria "A Sangue Frio" (1966), de Truman Capote [Cia. das Letras]. Já a reportagem, porque se supõe manter fiel aos fatos sucedidos, sem deixar de recorrer a recursos ficcionais (sobretudo de ordem sensacionalista), é, ao menos para alguns de seus defensores, a "prova" de que a separação entre escrita da história e ficção não passaria de uma "ficção" acadêmica.

    Além do folclore
    O espaço de que disponho não me permite mais do que apontar o problema.
    Tenho a meu favor a qualidade do livro que resenho: ele demonstra que um exercício de micro-história não precisa se confundir com um documentalismo estéril ou folclórico; que, na verdade, os eventos históricos são grandes ou pequenos menos em razão de si mesmos do que da excepcionalidade ou da mediocridade dos que os examinam.
    Neste sentido, a própria articulação indicada pelo subtítulo do livro, entre futebol, Carnaval e Justiça, depende muito menos da coincidência do crime com o Carnaval e as proximidades da Copa do Mundo de 1938 do que da capacidade do autor em relacioná-los.
    Mas não basta assinalá-lo.
    Será ainda preciso chamar a atenção para o fato de que a micro-história não é apenas uma via daquilo que, vindo do particular, terminaria por reiterar os resultados passíveis de serem atingidos pela macro-história. Quando assim sucede a concordância apenas confirma algum clichê a ser compartilhado por historiadores e leitores.
    É bem o contrário que ocorre no caso presente.
    Boris Fausto ressalta que a absolvição do acusado da chacina sucedida em um modesto restaurante chinês, em março de 1938, evidencia que "a circunstância da pobreza se converte em traço de simpatia aos olhos da opinião pública", sem que, por isso, as reiteradas alusões à cor do acusado deixem de confirmar o racismo presente em toda a circunstância.
    Da mesma maneira, ante o caráter duvidoso das provas incriminatórias, "um corpo de jurados constituído por gente da elite paulistana e juízes togados" decide em favor do réu, quando a suposição usual seria de que sucedesse o contrário.
    Que isso significa senão que a escrita da história é bem mais imprevisível do que pretendem os clichês acerca das ciências ditas "duras"?


    LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

    O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS
    Autor: Boris Fausto
    Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
    Quanto: R$ 45 (264 págs.)

    Texto do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 19 de abril de 2009.

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    Evolução humana "chegou ao fim", afirma biólogo darwinista

    Evolução humana "chegou ao fim", afirma biólogo darwinista

    John Cornwell

    Quando "A Origem das Espécies" de Darwin foi publicado em 1859, não demorou para que teólogos sensíveis, como o cardeal John Henry Newman, aceitassem a evolução como parte da providência divina. Mas até hoje o mundo cristão continua dividido entre os criacionistas que leem o Gênesis literalmente, e os que o veem de forma não literal, como um mito ou um poema. Enquanto os criacionistas leem a Bíblia como um texto cosmológico, outros tratam a evolução como uma teoria para tudo.

    O darwinista Steve Jones, eminente biólogo e escritor talentoso, é professor de genética e chefe do departamento de biologia do University College, em Londres. Conversei com ele recentemente em sua sala no Laboratório Galton, atrás da estação Euston, para falar sobre o darwinismo.

    Para celebrar o bicentenário de Darwin, Jones publicou um novo livro, "Darwin's Island" ["A Ilha de Darwin"], que examina as pesquisas pouco conhecidas de Darwin sobre a flora e a fauna britânicas. Jones declarou recentemente, de forma provocativa, que a evolução humana "chegou ao fim". E agora, nessa entrevista, volta a afirmá-lo.

    "É sério isso?", perguntei.

    "Veja, no mundo desenvolvido, os homens em média têm filhos mais cedo do que antigamente. Isso significa que há menos chance de que o esperma sofra mutações que poderiam levar a uma mudança evolucionária".

    Não me convenci. Afinal, há apenas 50 anos, a média de expectativa de vida era bem menor, então é claro que em média os homens tinham filhos mais cedo. Mas acho que o que John quer dizer é que o homem de hoje tem um período de procriação curto, que vai apenas do final dos 20 anos até antes dos 40. No passado, entretanto, a maioria dos homens (principalmente os mais bem sucedidos) teriam filhos ininterruptamente, desde a adolescência até os 50 ou 60 anos. Então, apesar de ter aumentado a média de idade com a qual o homem tem o seu primeiro filho, a média da faixa etária em que eles têm filhos é menor.

    Ele acrescenta: "a evolução também requer que populações isoladas possam acumular adaptações, como nas ilhas Galápagos. O mundo moderno, com suas viagens de avião, remédios e proteção contra as intempéries, faz com que seja muito pouco provável encontrar mutações significativas prosperando num habitat isolado".

    "A força motriz da evolução humana é o homem", continua Jones. "Os óvulos das mulheres são produzidos antes do nascimento, e na vida adulta o número de divisões celulares que podem desencadear uma mutação bem sucedida está em torno de 20, desde o óvulo que lhe deu origem até o óvulo que produzirá seus filhos. Mas o esperma de um pai de 28 anos de idade passa por 300 divisões celulares desde o esperma que lhe deu origem até o esperma que ele passa adiante. Em um homem de 50 anos, são 2 mil divisões celulares. Assim, são os pais mais velhos que levam a evolução humana adiante através das mutações genéticas. Mas nos países desenvolvidos, a maioria dos homens não se reproduz mais a partir dos trinta e poucos anos."

    E quanto às mutações resultantes de testes nucleares e Chernobyl?

    "Claro, o DNA pode ser afetado por influências do ambiente. Mas apenas 0,2% da exposição à radiação é produzida pelo homem; a maior parte vem do radônio no solo e nas rochas".

    Jones, entretanto, concorda que ainda é possível uma espécie de microevolução - por exemplo, na disseminação de genes resistentes ao HIV/Aids. "Eventualmente os sobreviventes passarão seus genes resistentes para a próxima geração, criando uma população em geral resistente. Mas isso não assinala uma mudança significativa na espécie humana".

    E quanto à ideia de que os humanos podem se tornar mais ou menos inteligentes?

    "Foi Francis Galton, um dos primeiros geneticistas", disse Jones, "que veio com a ideia de que os seres humanos estavam destinados a emburrecer porque as pessoas inteligentes têm menos filhos, enquanto as burras e irresponsáveis se reproduzem com mais rapidez". Contra Galton, Jones cita o "efeito Flynn" - o aumento do QI médio no mundo desenvolvido durante os últimos 50 anos, que recebe esse nome por causa do cientista político James R. Flynn.

    Flynn argumentou que esse "efeito" não demonstra um aumento genético na inteligência - mas que se deve a um desvio nos testes de QI, que privilegiam o um tipo de raciocínio abstrato que melhorou durante o século 20 por causa da educação e da tecnologia. Antigamente, as pessoas tinham o mesmo poder cerebral, mas menos experiência com o raciocínio abstrato.

    Jones também não se impressiona com a possibilidade de a engenharia genética deixar uma marca na evolução humana. Ele admite que poderão haver algumas melhorias superficiais na capacidade humana, com drogas como a ritalina para a concentração, ou provigil para combater a fatiga. Mas segundo ele essas são mudanças superficiais e não-genéticas.

    Jones também insiste que os habitats isolados não continuarão suficientemente isolados para permitir mutações. Ele chama isso de "a grande coalescência global", a forma pela qual os seres humanos escaparam das "leis impiedosas de vida e morte" da evolução. E continua: "diferenças herdadas na capacidade de superar resfriados, fome, deficiência de vitaminas ou doenças não movem mais a máquina da evolução. As pessoas morrem por causa disso, mas quando estão velhas e a evolução não as percebe mais".

    Então essas melhoras não indicam um avanço evolucionário?

    "Darwin argumentava que a evolução não tem uma tendência inerente para melhorar ou piorar as coisas. De fato, é mais provável ter alguma surpresa ruim virando a esquina. Um dia poderemos simplesmente falhar em nossa luta pela sobrevivência".

    Jones explica que uma das grandes divisões na compreensão da evolução é entre as noções de propósito e não-propósito. Um exemplo do problema, continua, é encontrado na ideia de uma asa ou um olho pela metade - normalmente discutida pelos defensores do "desenho inteligente" [ou criacionistas]. Segundo eles, como alguma coisa pela metade não tem nenhuma vantagem evolutiva, ela deve de certa forma ter sua função final codificada dentro de si antes de começar sua jornada. A resposta de Jones para essas anomalias admite o mistério da falta de fósseis que evidenciem transições graduais, por exemplo, de uma situação sem asas, para meia asa (sem nenhuma vantagem evolucionária), para uma asa totalmente operacional.

    Essa aparente falha na teoria evolucionária encorajou a hipótese do "desenho inteligente" de propensões inerentes para um desenho mais complexo. "Há muitas pessoas que estão felizes em acreditar em parte da história da evolução", diz Jones, "mas argumentam que Deus fornece um ímpeto de propósito por trás de tudo".

    "Eu não consigo entender a ideia de que tudo tem um 'significado' na evolução", diz Jones. Ainda assim é difícil, senão impossível, acredito, até mesmo para os biólogos mais reducionistas escreverem de forma acessível sobre evolução sem usarem em certo grau o discurso do propósito antropomórfico - até mesmo em termos que parecem neutros como "vantagens", ou "sobrevivência do mais forte", "adaptação".

    Enquanto cientista altamente literário, Jones se diz consciente, e talvez até culpado, da justaposição entre a metáfora e a ciência. O próprio Darwin, ele admite, era dado a metáforas imaginativas; seu companheiro constante no Beagle foi uma cópia de "Paraíso Perdido"
    [obra poética do escritor John Milton], e um dos aspectos mais excepcionais de "A Origem das Espécies" é sua capacidade de misturar metáfora e ciência, criando um efeito belíssimo.

    Além do simples deleite com a descrição natural, o entusiasmo de Jones com os estudos de Darwin sobre os crustáceos e outras minúcias britânicas parte de sua especialização acadêmica, a genética.

    "O DNA, assim como os corpos que ele constrói", diz Jones, com os olhos iluminados, "é baseado numa série de variações numa estrutura. Conforme um óvulo amadurece, órgãos complexos - olhos, ouvidos, mãos e cérebros - são formados a partir de elementos que só poderão ser distinguidos no embrião". Em momentos como esse, trazendo a biologia do desenvolvimento para a vida, a conversa com Jones se parece mais com as passagens líricas de seus livros - hinos à beleza, sutileza, e o potencial das criações vivas em seu progresso "da fertilização ao túmulo".

    A ligação entre a seleção natural e o DNA estava esperando para acontecer; nesse sentido Jones e seus colegas biólogos são os herdeiros diretos de Darwin. "A seleção natural", diz Jones, "deixa suas pegadas na dupla hélice de muitas formas. Grandes trechos de DNA homogêneo de ambos os lados dos genes europeus para cabelo loiro e digestão de leite mostram que as variações benéficas arrastaram junto suas vizinhas à medida que passaram pela população durante os últimos milhares de anos".

    Darwin aparentemente queria acrescentar um capítulo sobre seres humanos em seu trabalho sobre a origem dos animais de fazenda. Esse capítulo está sendo escrito agora com a ajuda dos geneticistas modernos. Muitas das mudanças físicas na linha humana desde que ela surgiu lembram as que aconteceram nos animais domésticos, admite Jones.

    E quanto à inteligência humana, que nos permite dar continuidade à visão de Darwin no campo da genética, Jones diz: "nossos cérebros, sozinhos, não diminuíram".

    John Cornwell é diretor do Projeto de Ciência e Dimensão Humana no Jesus College, Cambridge

    Tradução: Eloise De Vylder

    Texto da Prospect Magazine, no UOL.


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    sexta-feira, junho 12, 2009

    O desperdício de Cérebros


    O desperdício de Cérebros

    Por Alexandre

    Nassif,

    Não estamos prontos para ter essa discussão. Verdade seja dita: ninguém liga para a classe média no Brasil, não a classe média elevada à esta condição pela subida do salário mínimo, a classe média de professores universitários, trabalhadores especializados e profissionais liberais. Já li algum dia que a classe média era a mola propulsora da economia: a classe alta não era suficientemente numerosa nem a classe baixa teria renda suficiente para isso.

    Para quem acha que o Governo Lula aliviou ou resolveu esse problema, sugiro o artigo do Professor Marcio Pochmann (acima de qualquer suspeita de ser oposicionista, creio) “Desemprego estrutural no Brasil e a anomalia da fuga de cérebros”, onde ele deixa claro o agravamento da situação. Enquanto China e Índia estão penando para formar e (bem) empregar milhares de cientistas e engenheiros, o Brasil se dá ao luxo de desperdiça-los.

    Eu, Mestre em Engenharia da Computação jamais encontrei um emprego condizente com meu nível de formação, mas tenho uma renda razoável. Minha noiva, Mestre em Biologia, simplesmente nunca encontrou nenhuma vaga (por vaga, leia-se emprego, não bolsa ou qualquer coisa assim) que pagasse mais de 600 reais. Por enquanto, ela desistiu de exercer sua profissão e ocupa um cargo de nível médio no MP-SP onde ganha 3 vezes mais.

    A solução definitiva? Nós estamos emigrando para o Canadá. Como disse um colega nosso (que já está lá): cansei de tentar mudar o mundo, decidi mudar de mundo.

    Visto no blog do Luís Nassif.

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    Cai taxa de formação de doutores no país

    Cai taxa de formação de doutores no país

    Crescimento no número de titulados era de 15% ao ano em média no início da década e baixou para 6% de 2004 em diante

    Só 24% dos professores das instituições de ensino superior possuem título; no ano passado, foram formados 10.711 doutores

    EDUARDO GERAQUE
    DA REPORTAGEM LOCAL

    A letra do zoólogo Paulo Vanzolini ilustra bem a situação do sistema de pós-graduação nacional: "De um lado tem maré alta, do outro praia de fora."
    O país rompeu a barreira simbólica da formação de 10 mil doutores em 2008. Segundo número ainda não divulgado pelo governo, 10.711 receberam o título. Porém, a taxa de aumento de titulados, que era de 15% em média ao ano no início da década, caiu para 6% de 2004 em diante - com uma tendência de alta no último ano.
    Dados mostram que a carência do setor acadêmico no Brasil continua enorme. De todas as instituições de ensino superior do país, entre particulares e públicas, só 24% dos professores são doutores.
    E há três anos, pelo menos, a taxa relativa mostra que o Brasil ainda está longe de alcançar o número de formação dos americanos. O resultado da divisão do número de titulados nos EUA pela quantidade anual de doutores brasileiros -um dos indicadores mais usados pelos estudiosos- está estagnado em 21%.
    "É bastante preocupante", afirma Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor-científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SP). O fato de o intervalo entre os dois países não diminuir, para o pesquisador e dirigente científico, impede que o Brasil se aproxime das estatísticas de países mais desenvolvidos.
    Apesar de considerar que as taxas de formação de doutores, mesmo em queda, estão altas, Eduardo Viotti, economista especialista em política científica, concorda que o número de professores universitários que possuem título de doutorado ainda é muito reduzido e precisa ser elevado. Ele é um dos autores de um estudo sobre ensino superior publicado pelo CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos) em 2008.
    O ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, vê o quadro com mais naturalidade e com menos preocupação. "Não é possível que um sistema de pós-graduação cresça tanto por um tempo muito longo", disse ele à Folha.
    O Plano Nacional de Pós-Graduação do Brasil prevê para o fim do próximo ano a cifra de 16 mil doutores em um ano -número que dificilmente será atingido. Mas o titular do MCT sabe onde está um dos gargalos: a inovação brasileira, no setor privado, ainda não ocorre na velocidade desejada.

    Federais
    Mesmo com as particulares fora da conta, o número de doutores entre os professores do terceiro grau é baixo. Quando são analisadas apenas as universidades federais, por exemplo, a cifra é de 50%.
    Das 55 universidades federais que o Brasil tem hoje, 9 (16,3%) não poderiam ter mais esse nome se a discussão da reforma universitária, estagnada no Congresso há anos, já tivesse sido encerrada. Pelo Projeto de Lei, cada instituição deve ter pelo menos 25% de doutores no quadro de docentes para ser denominada "universidade".
    Em São Paulo, onde existem ilhas de excelência, a taxa média nas três universidades estaduais é de 93%. Nos EUA, que possui universidades mais voltadas para a pesquisa e outras focadas quase exclusivamente no ensino, as mesmas taxas ficam ao redor dos 73%.
    Jarbas Bonetti, professor e pesquisador na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), diz que a menor busca dos alunos por doutorado pode ter a ver com a maior dificuldade para a obtenção de bolsas e falta de perspectiva de emprego após conseguir o título.
    Já Adalberto Vieyra, coordenador de área da Capes e professor da UFRJ, diz que os programas de pós-graduação cresceram em número e tamanho, especialmente a partir de 2003. "Mas o corpo de orientadores qualificados, de formação demorada e cuidadosa, cresceu de forma muito lenta, passando de 32 mil para 35 mil."
    Segundo ele, o desafio não é só superar o fosso dos 0,6 doutores por 1.000 habitantes contra os 30 da Alemanha, por exemplo. "É preciso formar pessoas capazes de liderar a abordagem de complexos problemas nas fronteiras do conhecimento, no mesmo nível que nos países desenvolvidos."
    Para o consultor e ex-reitor da USP, Roberto Leal Lobo e Silva Filho, é importante aumentar a incorporação de doutores tanto na iniciativa privada, para a inovação, quanto no setor acadêmico.

    Notícia da Folha de São Paulo, de 8 de junho de 2009.


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    quarta-feira, junho 10, 2009

    As fixações de parte da mídia

    A revista CartaCapital desta semana (edição 549, de 10 de junho de 2009) comenta a transferência do jogador Kaká, do Milan da Itália, para o espanhol Real Madrid. Na sua página 28 informa que a transferência custará ao Real Madrid 65 milhões de euros e que Kaká receberá 9,5 milhões de euros por um contrato de cinco anos. A revista conclui a informação com a seguinte frase: “Os fundadores da Igreja Renascer devem estar exultantes”. A informação sobre Kaká pelo jeito não é importante em si mesma, deve ser só pela ligação do jogador com a referida igreja. A Igreja Renascer é uma das fixações da CartaCapital.

    O jornal Folha de São Paulo, de hoje, 9 de junho de 2009, em meio a cobertura sobre recente acidente aéreo com o vôo AF447 da Air France que vitimou mais de 200 pessoas, resolve falar sobre um certo sensor da aeronave que serve para que os computadores de bordo confiram a velocidade. A fabricante Airbus está recomendando a troca destes sensores. Segundo a Folha, a TAM é a única companhia de aviação brasileira que opera com aviões da Airbus, e a empresa informou que já trocou todos os sensores de sua frota de 125 aviões Airbus. Então a Folha informa que a TAM é também a responsável pela manutenção do avião presidencial. Na frase da Folha: “Ela é também responsável pela manutenção do avião presidencial, o Aerolula.”. Uma das fixações do pessoal da Folha é chamar o avião presidencial de Aerolula. Provavelmente acham que o presidente não legará o avião ao próximo mandatário (a) eleito (a).


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    Luiz Felipe Pondé: Frankensteinianas

    Frankensteinianas

    FAÇAMOS hoje um exercício de ficção. Imaginemos que em 2080 teremos atingido um alto grau de técnicas preventivas de reprodução humana. Teremos separado a reprodução humana (artificial) do ato sexual (prazer). Aí surge nosso articulista imaginário, escrevendo em 2209 sobre este fato, já no passado. O objeto de seu artigo é o um livro de história, lançado em 2209, que narra a "velha" polêmica vivida em 2089. Vejamos.
    "O livro "Pré-História da Reprodução Humana no Brasil", da historiadora Lia Ka, é uma boa chance para conhecermos a história dos biodireitos no Brasil. O foco são as polêmicas ao redor da lei que proibiu a reprodução humana não assistida (natural, como era chamada) no Brasil. Até então, confundia-se sexo com reprodução.
    Em 2080, iniciou-se no Brasil a campanha conhecida como "direito por mais vida". A "Lei da Reprodução Sustentável", finalmente aprovada em 2089, tornou crime inafiançável a reprodução humana não assistida (ou reprodução ilegítima ou não sustentável, sinônimos na época).
    Setores biorreacionários (termo comum para quem se opunha a lei) negavam as vantagens evidentes da reprodução programada, além de defenderem o absurdo que era a submissão das mulheres aquele horror das barrigas enormes.
    Imagens de mulheres assim (as grávidas) é coisa do passado. Quem não tem horror a essas mulheres deformadas? O fato é que já em 2099 o índice de mulheres que ainda desejavam portar barrigas deformadas foi reduzido a 3,5% da população reprodutiva.
    Quando os primeiros índices surgiram na China apontando para a superação definitiva da reprodução não assistida, os setores bioprogressistas se organizaram. O movimento por "mulheres-sem-barriga" e por "bebês biossaudáveis" ganharam espaço entre nós, até que conseguimos proibir qualquer geração fora dos limites dos laboratórios portadores do selo conhecido na época como "biosselo".
    Uma segunda lei para reprodução sustentável foi aprovada meses depois estabelecendo os critérios para a geração de bebês dentro dos parâmetros de biolegitimidade. A conhecida Escala Feng de legitimação da vida foi aplicada ao Brasil. Em 20 anos, os índices de morte na infância despencaram 78,6%, provando definitivamente a eficácia da reprodução assistida. Foi gerada uma economia de recursos públicos, aplicados a área da saúde, da ordem de 27,5%. Esquemas de controle foram necessários para inviabilizar a reprodução ilegítima, sempre dentro dos limites da lei de qualidade de vida aprovada em 2080. Uma prática que foi largamente estimulada, e que se revelou benéfica para a população, foi o "disk mais vida" facilitando a identificação e neutralização de focos de reprodução ilegítima.
    Em 2089, ainda era comum se questionar o dado evidente de que a reprodução ilegítima era um alto fator de poluição ambiental e social. Até 2075, os trabalhos de Schultz e Hua quantificando o conceito de poluição social (via a identificação dos índices Lox de inadequação sociofisiológica) ainda não eram aplicados no Brasil.
    Estes trabalhos mediram, pela primeira vez em 2072, os índices de transtornos familiares, escolares, afetivos, intelectuais e profissionais devido a presença de fatores de inadequação sociofisiológica.
    Especialmente interessante é o capítulo que aborda as controvérsias ao redor do conceito de embriões sustentáveis (safe babies) x embriões podres (naturais). Cerca de 50 anos foram necessários até a eliminação completa do mercado ilegal de reprodução de embriões humanos podres.
    Hoje nos preparamos para novo salto na direção da total eliminação da reprodução humana não sustentável: cientistas suecos têm tido grande sucesso na assimilação de compostos de DNA de babuínos em embriões humanos.
    Segundo pesquisas da Liga Zoe (dedicada aos biodireitos para o aumento da qualidade em reprodução), os "bebês compostos" (como estão sendo chamados) desenvolvem habilidades motoras e cognitivas mais eficazes do que "bebês não compostos" da ordem de 7,7 % no prazo de dois anos. A luta, agora, é para que todos os cidadãos tenham acesso aos embriões compostos." Voltemos a 2009. Qual a moral da história? A moral é que o "tipo" de bebê que você tem hoje nas mãos, um dia, poderá ser um bebê podre. A história "avança", e os conceitos de "doença" e "poluição" também. Você votaria nessa lei?

    Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo, de 4 de maio de 2009. É viagem. Mas dá o que pensar.

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    quinta-feira, junho 04, 2009

    35 anos do Clube da Esquina

    Se fosse possível resumir em uma só palavra o processo de criação do disco Clube da Esquina, ela seria "amizade". Foi esse o sentimento que norteou não só os músicos, mas todos os envolvidos em um dos mais importantes álbuns da história da música popular brasileira e que fez com que ele conseguisse atingir um status de vanguarda e criatividade inédito até então.

    A história do Clube da Esquina começa ainda na década de 60, quando um jovem cantor e compositor de Três Pontas/MG, Milton Nascimento, resolve se mudar para o Rio de Janeiro, sua terra natal, em busca de melhores condições para desenvolver seu trabalho, depois de uma breve temporada em São Paulo. Àquela época, Milton já era figura conhecida na noite de Belo Horizonte, em razão de seu trabalho como crooner em diversos conjuntos e por percorrer os caminhos dos "bailes da vida" arduamente. Mas por que o Rio de Janeiro? Milton havia classificado três canções ("Travessia", "Morro Velho" e "Maria minha fé") no 2º Festival Internacional da Canção; além do mais, toda a indústria fonográfica brasileira estava concentrada na capital fluminense. Movimentos importantes, como a Bossa Nova, haviam saído dali para o mundo, chamando a atenção para a cidade, de todos os que faziam música na época. Era importante para qualquer músico estar lá, vivenciar sua ebulição musical e trilhar o caminho natural para dentro dos estúdios de gravação. Para um talento sem limites como Milton, esse caminho era mais natural ainda e poderia levá-lo não só aos estúdios do Rio de Janeiro, como aos do exterior. Isso e a vontade de fazer história com sua música fizeram com que o prestígio de Milton, dentro dessa mesma indústria fonográfica, crescesse a cada dia, contribuindo para que ele pudesse dar um passo além, idealizando o álbum Clube da Esquina.

    Ao mesmo tempo em que projetava sua vida para o futuro no Rio de Janeiro, Milton Nascimento não se esquecia de suas origens mineiras e sempre voltava a Belo Horizonte para revê-las e, eventualmente, voltar ao mundo musical da cidade. Na capital mineira, Milton havia sido apresentado aos irmãos Borges, de quem se tornara uma espécie de irmão de criação. Milton aproximou-se principalmente de Márcio Borges, que se transformou em seu companheiro de noitadas regadas a muita música, cinema, discussões infinitas sobre o mundo e de uma vontade de fazer com que tudo isso tivesse um significado maior em suas vidas. Ao mesmo tempo em que essa amizade com Márcio crescia, Milton a dividia entre os demais irmãos Borges, principalmente com o jovem Salomão, apelidado de Lô, que, no auge de sua adolescência, já dava sinais do grande músico que viria a ser. Impressionado com o talento de Lô, Milton começou a fazer algumas músicas junto com ele e a gravá-las em seus discos. Foi assim que, hoje, clássicas canções como "Para Lennon e McCartney", "Alunar" e "Clube da Esquina" foram registradas no disco Milton, que ele lançou em 1970, sempre com o parceiro Márcio Borges fazendo as letras e participando de uma maneira ativa dessas composições.

    Enquanto isso, no Rio de Janeiro, surgia um grupo que, num futuro bem próximo, se tornaria o embrião musical do disco Clube da Esquina, o Som Imaginário. Formado pelo núcleo Robertinho Silva (bateria), Wagner Tiso (teclados), Luíz Alves (baixo), Tavito (violão), Laudir de Oliveira (percussão) e Zé Rodrix (teclados, voz e flauta), o Som Imaginário era essencialmente um grupo de rock progressivo, mas com influências jazzísticas e de bossa nova. A banda havia sido formada no ano de 1970 para o espetáculo Milton Nascimento e Ah! O Som Imaginário, que fez um enorme sucesso, dando um impulso à carreira de Milton e resultando no disco Milton, gravado no final daquele ano. Antes disso, o show ― inicialmente planejado apenas para o Rio de Janeiro ― passou por São Paulo e Belo Horizonte. O sucesso dessa empreitada animou a chamada "turma de Minas" a tentar alguma sorte no Rio de Janeiro. Vários músicos se mudaram para a cidade em busca da tal efervescência cultural. "O Som Imaginário se tornou uma espécie de porto seguro para o pessoal novo, que estava chegando de Minas", lembra Wagner Tiso. E todos eles viam em Milton Nascimento o elemento aglutinador de tudo isso.

    Lô Borges não se lembra ao certo a data, mas, segundo seus cálculos, deve ter sido entre 1970 e 1971, após esse período com o Som Imaginário, que Milton foi a Belo Horizonte para lhe fazer um convite. "Naquela época, eu era um jovem que ficava na esquina da minha casa tocando violão. Eu era o animador da história. Nós não éramos sócios de clube algum, somente ali daquele 'clube da esquina'. Eu já compunha e o Milton já havia gravado algumas músicas minhas. Isso também ajudou a impulsionar muito a carreira dele; então ele veio a Belo Horizonte, me procurou na esquina e disse que queria fazer um disco comigo. Queria fazer um álbum duplo, mais ou menos metade das composições minhas e metade dele. E que ele ia brigar dentro da gravadora porque era um projeto diferente, ninguém me conhecia, mas ele estava afim de fazer", diz, relembrando o momento em que tudo começou. E realmente Milton tinha razão. Àquela época, não era comum se fazer um disco duplo. Apenas Gal Costa havia se aventurado no formato. Mas Milton estava decidido e, com o convite aceito, foi à Odeon, sua gravadora na época, convencer o diretor artístico Milton Miranda ― um dos homens fortes da gravadora, conhecido por dar liberdade aos artistas ― de que aquele álbum precisava ser feito. A ideia foi muito bem aceita pela gravadora, que deu liberdade total para Bituca iniciar o processo. Afinal, ele já gozava de um enorme prestígio dentro da Odeon e era adorado por todos, em especial por Miranda, que via nele um grande talento e uma aquisição de altíssimo nível para seu cast.

    O próximo passo era "importar" Lô Borges para o Rio de Janeiro, para que ele ficasse próximo de Bituca e de toda movimentação em torno da produção do disco. Mas Lô tinha uma exigência a fazer: levar também seu amigo Beto Guedes. "Eu falei pra ele: Bituca, eu vou comprar a encrenca com a minha família, mas eu tenho que levar o Beto Guedes. Eu tenho que levar alguém da minha geração, que gosta das mesmas coisas que eu. Daí fomos na casa do Beto pedir a mão dele em 'casamento' para a família dele. E eles aceitaram numa boa. O Beto, na época, ainda não havia começado a compor, mas era um músico excepcional e gostava de ouvir as mesmas coisas que eu", recorda Lô. Os dois garotos haviam terminado de cursar o colegial e estavam decidindo se iam prestar vestibular e para quê. Aproveitando o convite de Milton e o fato de que haviam classificado a canção "Feira Moderna", uma parceria com Fernando Brant, no 5º Festival Internacional da Canção, muniram-se de seus violões, boas doses de música nas cabeças e em seus corações e foram morar com Milton Nascimento em seu apartamento no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, para vivenciarem de perto a tal "cena musical carioca". Assim, se tornaram uma espécie de parceiros permanentes de Bituca, indo com ele para onde quer que ele fosse.

    Depois de algum tempo, Milton percebeu que a criação do disco precisava de um algo mais, que nem mesmo o Rio de Janeiro e toda sua ebulição poderiam proporcionar. Precisava de um local mais tranquilo, onde nada o atrapalhasse. Além disso, um local afastado viria a calhar, já que ele havia enfrentado alguns problemas com a polícia, em função de ser um artista popular, em uma época de repressão, ocasionada pela ditadura vigente no país. Foi então que resolveu alugar uma casa na praia de Piratininga, em Mar Azul, Niterói/RJ, para onde se mudou com Lô, Beto e seu primo e fiel escudeiro Helson Romero de Campos Souza, o Jacaré. Ronaldo Bastos também estava sempre presente na casa de Mar Azul. Quase todos os dias chegava Ronaldo em seu fusca branco, às vezes sozinho, outras acompanhado de amigos, entre os quais os fotógrafos Ronaldo Gorini, e Cafi. Ali, à beira do mar, encontraram a paz ideal para criar as músicas que viriam a fazer parte do disco Clube da Esquina e começaram a arregimentar os demais músicos e letristas que fariam parte do processo.

    Um deles, Fernando Brant, não chegou a conhecer a casa, mas trabalhou nas letras do disco em Belo Horizonte. "Eu trabalhava na época e não podia ir, mas eles sempre vinham aqui (em Belo Horizonte) e fazíamos reuniões para conversar sobre o disco. Geralmente essas reuniões eram no Saloon, um dos bastiões da boemia mineira na virada da década de 1960 para 1970", relembra ele. Fernando já era um parceiro permanente de Milton e, juntos, haviam feito a canção que projetou Bituca para o mercado mundial: "Travessia". A partir daí, uma das parcerias mais frutíferas da MPB se iniciou e com ela, uma infinidade de clássicos: "Sentinela", "Beco do Mota" e "Rosa do Ventre(M)".

    Quando chegou a hora de compor as músicas para o Clube da Esquina, Milton sabia que podia confiar em Fernando e entregou a ele as canções: "Saídas e Bandeiras", "San Vicente", "Ao que vai nascer" e "Pelo amor de Deus". Lô Borges também embarcou na confiança de Milton e em parceria com Fernando compôs uma das canções mais emblemáticas do disco e que se transformaria na marca registrada não só dele, mas de toda a música mineira: "Paisagem na janela", de cuja história Fernando se recorda muito bem: "A história dessa música começou na casa dos meus pais, em Belo Horizonte. As pessoas acham que ela foi feita com base em paisagens de Diamantina ou aqui na minha casa, no bairro Cachoeirinha, mas é no bairro Funcionários, em Belo Horizonte mesmo. A janela lateral da letra está lá e a igreja que eu via era a Igreja de Lourdes".

    A censura era uma preocupação dos letristas no início da década de 70 e Fernando tinha que encontrar formas de driblá-la: "'Ao que vai nascer' teve problema com a censura, mas 'San Vicente' passou batido. O Bituca fala que, por causa dessa música, a casa dele virou uma espécie de consulado latino-americano da música. A letra dela fala da América Latina e de tudo que acontecia por lá, mas eu consegui colocar de uma maneira mais amena. Já 'Ao que vai nascer' tinha uma parte em que eu falava algo como o 'Brasil é o país do futuro'. O próprio pessoal da Odeon me aconselhou mudar e eu mudei, mas consegui passar a mensagem assim mesmo".

    Márcio Borges também desempenhou um papel fundamental na história do disco. Além de um dos letristas prediletos de Milton Nascimento durante toda sua vida, Márcio era o amparo para o jovem Lô Borges, que via em seu irmão e Bituca as figuras em que ele podia e deveria se apoiar. Dessa parceria frutífera, surgiram algumas canções bastante fortes: "Tudo que você podia ser", "Um girassol da cor do seu cabelo", "Estrelas", "Os povos" e "Trem de doido". Canções que nasceram de uma forma simples e complexa ao mesmo tempo e são retrato de uma união familiar tão fundamental para que tudo aquilo acontecesse. "Tínhamos um espírito gregário, que nos impulsionava a ficarmos juntos. Gostávamos de estar juntos porque gostávamos tanto da influência que uns exerciam sobre os outros quanto de exercê-las", diz Márcio sobre o clima que reinava. Sobre seus temas, Márcio confessa que não gosta de escrever sobre o amor: "Não sobre essa forma de amor popular, esse amor eu-você. Sempre procurei evitar ao máximo, a não ser quando eu esteja falando diretamente para uma pessoa, como é o caso de 'Um girassol da cor do seu cabelo', feita para minha namorada na época. Mas prefiro dar pinceladas mais abstratas na música".

    Já o carioca Ronaldo Bastos conheceu Milton Nascimento no Rio de Janeiro depois de ter se encantado com uma música dele ― "Canção do Sal" ― presente num disco de Elis Regina. A amizade foi instantânea, e Milton rapidamente incorporou Ronaldo ao grupo que mais tarde viria a ser chamado de Clube da Esquina. "Eu via aquilo como uma família e sabia que compor era o que eu queria fazer; e que eu podia 'aparecer' fazendo aquilo". A primeira canção que os dois fizeram juntos foi "Três Pontas", e logo depois vieram "Amigo, Amiga", "Rio Vermelho" e as canções que seriam incluídas em Clube da Esquina: "Cais, Cravo e Canela", "Um gosto de sol" e "Nada será como antes". Ronaldo também participou do disco fazendo letras para duas músicas de Lô: "Nuvem cigana" e aquela que ele mesmo considera sua música mais perfeita: "Trem Azul". "Me lembro que fiquei trancado num quarto de empregada fazendo a letra de 'Nada será como antes até terminar'. Trocava muitas ideias com o Beto, que era quem estava disponível". Já a letra de "Trem Azul" foi feita com base em uma viagem de trem da Holanda para Paris, apesar de muitos acharem que o tal trem é em Minas Gerais.

    Além de compor, Ronaldo desempenhou um outro papel importante na história do disco: a de produtor. "Eu fui um dos produtores do disco. Eu tenho uma escola de produção conceitual, não sou músico, engenheiro de som, mas aprendi a ter uma presença de estúdio. Minha função era estar ali, aquela figura do produtor. O Milton me delegou essa função numa reunião na casa dos pais do Fernando, em BH. Ele virou pra mim e disse 'agora é com você'".

    Todas as pessoas envolvidas na produção do álbum Clube da Esquina se lembram, com muito carinho, do período em Mar Azul e da música que ali estava sendo criada, em especial da melodia de "Clube da Esquina nº 2", que se tornou uma espécie de marca do período. A música era executada durante horas e horas dentro da casa, na varanda, no terraço, à exaustão. Os dias na casa de Mar Azul eram longos e extremamente proveitosos. Nos intervalos, os músicos iam para a praia tomar sol, nadar e buscar inspiração na imensidão do Atlântico, para mais algumas notas musicais. Muitos dos outros envolvidos iam para lá, dormiam algumas noites para entrarem no clima do disco e das músicas, mas voltavam para seus afazeres. Apenas Milton, Lô, Beto, Ronaldo e Jacaré estavam lá o tempo todo, apesar de Lô ir sempre a Belo Horizonte visitar sua família. Por isso, segundo ele, algumas canções foram feitas em Belo Horizonte mesmo. Outras pessoas ligadas ao grupo, como Paulinho da Viola, também visitaram a casa da Família Borges em Belo Horizonte. Ronaldo Bastos relembra o fato: "Existia uma história de trazer o Paulinho para a turma, mas acho que ele ficou assustado com aquilo tudo (risos)".

    Beto Guedes se lembra com carinho do período em Mar Azul: "Foi uma experiência muito bacana. O Lô e o Milton estavam compondo, terminando as músicas do Clube da Esquina. Eu não compunha nessa época. Basicamente, o Lô me chamou de companhia mesmo, porque a gente era amigo. E eu ficava lá, curtindo o mar azul, a praia, aquelas manhãs maravilhosas de sol. Cada manhã de sol bonita naquele lugar! E fiquei acompanhando o trabalho deles. Ficava conversando, brincando. Aparecia o Ronaldo, o Marcinho. O Jacaré, de Três Pontas, também morava lá uma época. Foi uma coisa sui generis, que eu nunca vi ninguém fazer. Ficar ali trabalhando e preparando um negócio especial".

    Jacaré, o primo de Milton, participou ativamente desse processo, não só por morar com Bituca no Rio de Janeiro, nessa época, mas por também ter se mudado para Mar Azul. E é quem tem as lembranças mais precisas da casa: "Era uma casa de vidro. Quer dizer, não era toda de vidro; tinha um quarto que a gente gostava muito de ficar nele, que tinha janelas de vidro. E esse quarto não tinha cortina. Você tinha o mar na tua frente. Chegava a noite, a gente ia para esse quarto e apagava a luz, cada um tocando sua viola e admirando aquele marzão na frente. E ali é que eu imagino que eles criaram muitas músicas. O que veio de sensibilidade para eles criarem!".

    O fotógrafo Ronaldo Gorini, o Peninha, é o único que possui o registro fotográfico da época em que os músicos se instalaram na casa de Mar Azul. Sobre aquele período, Gorini tem boas lembranças: "Foi Ronaldo Bastos, meu vizinho nos anos 60, num prédio em Botafogo, no Rio de Janeiro, quem me levou a participar do Clube da Esquina. Depois veio a convivência com Lô Borges e Toninho Horta, com quem eu dividia um apartamento na Travessa Santa Leocádia, uma ladeira simpática de Copacabana, início dos anos 70. Ali já pude curtir muitos sons harmoniosos do piano maravilhoso do Toninho e suas guitarras. Mais tarde mudei-me pra Santa Tereza, um casarão maravilhoso de outro grande amigo/irmão de todos nós, o arquiteto Pedro Cascardo. Como Ronaldo também morava lá, não deu outra: novas canções iam surgindo e eu acompanhando essa rapaziada, que viria a ocupar lugar de destaque na nossa MPB. Márcio Borges era nosso vizinho e isso favoreceu ainda mais a formação de um QG, no Rio, da mineirada e outros artistas. Nessa época, aconteceu a temporada em Mar Azul, Piratininga, praia oceânica de Niterói: Lô, Beto Guedes, Ronaldo, Bituca e outros amigos trabalhando, fazendo sons e canções. E eu fotografando e ouvindo tudo acontecer no terraço estrelado. Que som"!

    A vida em Mar Azul durou aproximadamente um ano e, ao final desse período, era chegada a hora de partir e rumar para o Rio de Janeiro com um objetivo: registrar em disco tudo o que havia sido composto ali. A convivência na casa e as idas e vindas de todos os que iriam participar do disco resultaram num fortalecimento dos laços de amizade que se formaram e que foram fundamentais para o andamento do processo. O local escolhido para o registro foram os estúdios da Odeon, no Rio de Janeiro. Nivaldo Duarte, técnico de gravação do disco, se lembra dos primeiros momentos: "Eu não me lembro se a tabela de marcação de horários de gravação no estúdio já tinha escrito Clube da Esquina ou se ainda era Milton Nascimento. Eu sei que nós, os técnicos, quando chegávamos e olhávamos a tabela, sempre tínhamos uma impressão sobre como iria ser a sessão. E quando víamos Milton Nascimento marcado, todos gostávamos. Era o 'Mito Nascimento', como eu gostava de chamá-lo".

    No início da década de 70, quando o disco foi gravado, o que existia de mais moderno em se tratando de equipamentos de estúdio no país era o que estava disponível para a gravação de Clube da Esquina: gravação em rolo, em dois canais, sem mixagem ou masterização. "A gente usava fita magnética, gravava e ia gravando as outras tracks por cima, num complicado sistema de superposição de áudio. Era playback por cima de playback. Cada vez que copiávamos para uma outra fita para podermos encaixar mais uma track, perdia-se um pouco a qualidade sonora, mas a gente gravava assim mesmo". A explicação de Nivaldo Duarte pode parecer um pouco técnica, mas é necessária para se entender o contexto em que o disco foi feito. Tudo era muito artesanal e costurado nos mínimos detalhes. Se Clube da Esquina fosse gravado hoje, em sistemas digitais multitracks, seria bem mais fácil encaixar instrumentos, equalizá-los e trabalhá-los melhor individualmente, mas no início da década de 70 o processo era bem mais rudimentar e exigia bastante dos músicos. Não havia muito espaço para erros. Nivaldo continua: "A gente começou a ver um bando de garotos entrando no estúdio. Daí eu ficava olhando e me perguntando: 'Quem são estes garotos? Tudo de calça jeans e tênis!'. Ficava brincando, também: 'Olha os caras de tênis sujos aí!'". O clima de amizade foi então transferido para o momento de gravação propriamente dito. Era comum um, dois ou três músicos estarem tocando e o resto da "turma" do outro lado do "aquário" observando, dando palpites, de uma maneira harmônica, interferindo sem interferir.

    Parecia que todos sabiam o que deviam fazer e onde estavam os limites dessa interferência. Um trabalho bastante coletivo, como todos os envolvidos gostam de ressaltar. Havia poucos papéis definidos, e todos eram livres para se envolverem no que quisessem. Graças a isso, Beto Guedes, Lô Borges e o guitarrista Toninho Horta ― antigo companheiro de Milton desde Belo Horizonte e conhecido por seu virtuosismo ― se aventuraram em instrumentos que não eram os seus, como percussão e baixo. Robertinho Silva também se lembra dessa característica de liberdade: "Tínhamos total liberdade, podíamos exercer a criatividade, não havia imposição. Então tudo que eu sabia de ritmo, eu empregava ali. Foi uma conquista assim, uma troca de experiência, tudo muito bem cuidado. As pessoas dizem que eu sou um baterista diferente. Mas foi por causa dessa música que eu me tornei diferente. Adquiri até um estilo através da música mineira".

    Nivaldo também se lembra de alguns momentos marcantes da gravação do disco: "O Milton tocou 'Clube da Esquina nº 2' sozinho no estúdio, só com voz e violão. Tocando maravilhosamente. Depois fomos colocando os outros instrumentos e criando aquela atmosfera maravilhosa. Já em 'San Vicente' aconteceu uma coisa engraçada, uma interferência minha. Minha esposa tinha família numa cidade do interior de São Paulo chamada São Vicente e quando eu ia esperá-la no ponto de ônibus, voltando de lá, ficava ouvindo um sino de uma igreja perto. Daí, na minha cabeça, o nome 'San Vicente' era ligado a barulho de sinos. Sugeri então ao Wagner Tiso que colocássemos um sino ao final da música, aproveitando um carrilhão que havia sido alugado pela Odeon para outra gravação. O Wagner gostou da ideia e mandou trazer o sino para ver se estava no tom certo. E por um destes milagres, o sino estava exatamente no tom da música. O resultado está lá no disco".

    O Som Imaginário acabou sendo a banda base de gravação do disco e Wagner Tiso um dos responsáveis pelos arranjos de base. As bases instrumentais propriamente ditas eram feitas pelos músicos. Os arranjos de orquestra foram feitos por Eumir Deodato, com exceção de "Nuvem Cigana", que foi feito por Wagner, que relembra o episódio: "Quando definimos o repertório, eu falei para a turma: 'se quiserem, eu posso fazer as orquestrações'. Mas o Bituca já tinha se apalavrado com o Eumir. Nas músicas do Lô, como em "Girassol", ele me pediu ajuda para ir na casa do Eumir mostrá-las. Ele estava inseguro. Daí eu escrevi as cifras, fomos lá e mostramos para ele. O Eumir anotou tudo e pronto. No caminho, eu convenci o Lô que eu poderia fazer alguma orquestração. Ele reservou para mim, então, a "Nuvem Cigana". Eu já havia feito outras orquestrações, mas essa foi a primeira com Milton e a turma do Clube da Esquina. Fiz a orquestração com o Lô na casa do Paulo Moura. Anotei a harmonia, dei umas ideias e fiz como achei que deveria ser".

    Wagner Tiso também conta um fato curioso, ocorrido durante a gravação de "Trem Azul": "Nesta música, eu toquei órgão e no final, quando a música estava terminando, eu fiquei com a impressão que íamos gravar de novo e fiz uma brincadeira no piano. Acontece que não regravamos, o pessoal gostou da brincadeira e a brincadeira está lá no disco até hoje. Uma espécie de erro que deu certo". É também nessa música que está um dos solos de guitarra mais famosos da música brasileira, de Toninho Horta, que foi gravado quase de primeira: "Eu fiz um solo na hora em que foi gravada a base. O Wagner e o resto do pessoal gostaram, eu fiz mais um e foi este que ficou. Na época eu não tinha muita técnica, misturava notas soltas, terças, oitavas e quartas. Fiz um solo diferente que agradou. Fiquei muito entusiasmado com aquilo tudo, parecia que eu estava querendo contar uma história no solo, de acordo com a musicalidade dele", relembra Toninho. Além do solo de "Trem Azul", ele participou de outras faixas do disco como músico convidado, ajudando a organizar as músicas, a ordem delas, as levadas, a formação das bases e das músicas propriamente ditas. Posteriormente, Toninho chegou a integrar o Som Imaginário, graças à convivência com os músicos do grupo nesse período.

    Lô Borges também se lembra da gravação de Clube da Esquina como uma grande responsabilidade. Afinal, ele era o garoto convidado por Milton para dividir um disco e, de repente, estava ali em meio a todos aqueles músicos gabaritados, reconhecidos até no exterior. "Eu ficava no estúdio o tempo todo. Dava palpite total nas minhas músicas. Eu apresentava as músicas no estúdio, dizia como achava que deveria ser o arranjo da base, o baixo, a bateria e quando todo mundo pegava, íamos gravar. Era uma responsabilidade enorme. Me lembro da gravação de "Um girassol da cor do seu cabelo", em que havia uma orquestra, regida pelo Paulo Moura, com arranjo do Eumir Deodato. E eu lá, no piano, fazendo a marcação para a orquestra. Eu nunca tinha lido uma partitura! E consegui fazer tudo direitinho. Se errasse, derrubava todo mundo. Se não me engano, não teve repetição, foi de primeira. Me lembro também de estar no estúdio sozinho tocando algum instrumento com a Alaíde Costa, aquela mulher maravilhosa que participou de 'Me deixa em paz'. Imagina eu, aos 17, 18 anos, no estúdio com aquela mulher maravilhosa!".

    Beto Guedes é outro que olha para trás e não se cansa de ressaltar a importância que o processo de confecção do disco teve em sua vida: "Eu lembro que eu toquei bastante naquele disco. Toquei contrabaixo, bateria, guitarra, percussão. Acho que eu toquei em 20 faixas, das 21 do disco. O Milton me convidou para fazer um vocal em "Nada será como antes", que foi uma coisa muito importante pra mim". Já Rubinho Batera, convocado por Milton para dividir as baterias com Robertinho Silva, se lembra bem mais do clima do que de detalhes: "O Milton era muito assim: 'Olha, não gostei disso. Então eu acho que a rapaziada tá meio cansada. Hoje eu não vou...' Isso era um cuidado que ele tinha. 'Aquilo não ficou bom, vamos deixar pra amanhã, gente?' A gente parava, no dia seguinte a gente fazia e ele gostava. Então foi um trabalho muito bem realizado. E nessa gravação do disco aconteceu muito disso. Acho que isso influiu muito no trabalho do Milton".

    O guitarrista Nelson Ângelo, ao se lembrar dessa época, prefere se centrar na descontração de todo aquele período: "Nada era muito ensaiado; é claro que, para falar 'gravando', a gente já tinha tocado a música muitas e muitas vezes antes, mas às vezes também não. A gente sentava de frente um pro outro, ouvia aquilo ali, olhava, olhava... E na segunda passada já estava todo mundo tocando, invertendo o acorde, fazendo outro som, buscando o efeito no instrumento. Foi um trabalho coletivo maravilhoso que aconteceu. Aí vinha a facilidade do Milton com aquele vozeirão! Houve uma generosidade muito grande por parte do Milton, que misturou sua própria carreira com a dos amigos convidados. Ele sempre valorizou muito a sonoridade humana. Eram muitas pessoas cantando. E nunca houve censura de nada, nem de ninguém. Mas sempre com muito cuidado para aquilo sair bonito e musical". Tavito também tem lembranças desse clima de harmonia e amizade: "Esse disco é uma experiência única na minha vida. Na época, era um grupo muito unido e feliz. Gente de muito talento que ia pro estúdio fazer coisas novas. O que importava era a música. Eu nem me lembro de como fomos remunerados. Claro que fomos, mas isso não era o que mais importava, porque era uma coisa secundária; em primeiro lugar vinha a música, a amizade, o prazer em tocarmos juntos. Tenho muito orgulho de ter participado dessa torrente de criatividade".

    Toninho Horta tem boas recordações da gravação do álbum Clube da Esquina. "Da preparação do disco em 'Mar Azul' não pude participar; eu já era um músico de estúdio e, na época, estava gravando, tocava com a Gal (Costa) e com a Elis (Regina). Mas o Ronaldo falou: 'Você tem que ir lá'. Na véspera de iniciar a gravação do disco, cheguei na casa com o Ronaldo, num fusquinha branco. Eram muitas pessoas no estúdio, e o que foi marcante na gravação do disco foi a liberdade que todo tínhamos. Porque o Wagner já era considerado o grande maestro da turma, ele dava aquele retoque pra todos os arranjos e orquestrações. Eu participei muito dos arranjos de base. O Milton chegava no estúdio e dizia qual música seria gravada. Quem estava ali na hora ia 'passar a música'. E gente dava ideia aqui, outro dava ideia ali, e a música ficava pronta. Era tudo muito espontâneo. Várias vezes já cheguei e a coisa já estava pronta, então eu pegava um caxixi, fazia uma percussão. Tudo acontecia de uma forma muito livre, e resultou numa obra original. Clube da Esquina foi uma grande felicidade. O repertório todo de alto nível musical, e com aquela pulsação da juventude e de várias influências musicais. A junção disso tudo é a riqueza do Clube da Esquina".

    Enquanto nos estúdios da Odeon, Clube da Esquina estava sendo gravado, fora dali um outro processo estava sendo deflagrado: a criação da capa, que também se tornou um marco na época, por não trazer o nome do disco nem dos artistas estampados nela. Tanto a foto como o projeto gráfico foram de Cafi, ao contrário do que ficou marcado no senso comum, que o credita como fotógrafo apenas. Na verdade, Cafi havia sido convidado para fazer umas fotos para um disco que não se sabia como se chamaria. Nesse processo, fez fotos em Mar Azul, nos estúdios da EMI, foi a Belo Horizonte e fotografou dezenas de pessoas indicadas por Milton e os demais membros do Clube. A ideia era fotografar muita gente e incluir todas aquelas pessoas no disco de alguma forma. Além de Cafi, outro fotógrafo, Juvenal Pereira, também participou desse processo, retratando pessoas que tinham algum tipo de relação com membros do futuro Clube.

    Terminado esse processo, Cafi e Ronaldo Bastos deram uma passada na fazenda dos pais de Ronaldo, em Friburgo/RJ. Na volta para o Rio de Janeiro, encontraram aqueles dois meninos sentados na terra, e Cafi fez a foto famosa ali mesmo, de dentro do carro. "Quando bati a foto, de cara eu pensei nela para a capa e me veio também a ideia de não ter nada escrito", conta Cafi. "Mesmo porque, para mim, esse disco tinha uma característica que fazia contraponto ao preciosismo plástico, uma coisa de morosidade, de encontro de mineiros com cariocas etc. Tinha uma relação de Milton com Lô na capa, mas nem era essa a intenção. Era mesmo uma coisa de arame farpado, de estrada, de mineiridade".

    A ideia foi aprovada com louvores por Milton e Ronaldo Bastos, os únicos a verem a capa antes. Mas ao finalizar o processo, Cafi se deparou com dois problemas: o mosaico das fotos internas não tinha como ser feito em cores, como ele havia criado, e o pessoal da Odeon não entendeu muito bem o conceito da capa sem os nomes. Não era algo comum e muito menos mercadológico. "Daí eles me obrigaram a fazer um letreiro na contracapa para indicar que era o Milton, o Lô e o disco. Para isso, contei com a ajuda do Noguchi na criação das letras, principalmente. Quando distribuíam nas lojas, eles indicavam a contracapa, mas, com o tempo, os próprios lojistas foram mudando e colocando a capa propriamente dita nos displays das lojas". Cafi também recorda que, por algum motivo, o disco iria se chamar Clube da Esquina ― Documento Secreto nº 5 e que na hora de fazer a composição das letras na contracapa, ele achou o título grande e resolveu tirar por conta própria o tal Documento Secreto nº 5, deixando só Clube da Esquina. "Talvez o Ronaldo tenha falado com o Milton e o Marcinho para mudar o título. Eu não sei. Só sei que eu mudei por minha conta". Pela realização desse trabalho, Cafi ganhou respeito por parte dos membros do recém-criado Clube e foi responsável pela concepção visual não só do posterior, Clube da Esquina nº 2, em 1978, como de trabalhos solo de Milton, Beto e Lô.

    Nos estúdios da Odeon, o trabalho estava sendo finalizado dentro do mesmo clima de amizade e liberdade reinantes durante todo o processo. Sempre coordenado por um Milton Nascimento coeso e certo de que o trabalho que estava fazendo ali era importante. A generosidade dele fazia com que os músicos tratassem o disco de uma maneira mais relaxada e, em função disso, não havia discórdias nem maiores problemas durante as sessões de gravação. Eles chegavam a hora em que quisessem, gravavam no turno em que quisessem e eram livres para experimentar outros instrumentos, relaxar da maneira que bem preferissem.

    Clube da Esquina, o álbum, foi lançado em 1972 e, a princípio, a reação da crítica foi de espanto. A impressão dos músicos que participaram do disco, em relação ao trabalho da crítica na época, é a de que ele causou uma estranheza geral e não foi compreendido como deveria ter sido. Era um tipo de som que não se fazia no país e, por isso, o processo foi mais difícil. Pouco a pouco, as barreiras foram sendo quebradas e a aceitação foi acontecendo. "O mais engraçado era que a crítica falava mais das letras e não da música. Sinal de que não estavam entendendo muito. Mas aí veio a resposta do público e vimos que era um algo mais", relembra Fernando Brant. Ronaldo Bastos corrobora com essa visão e acrescenta: "Na época não houve esta percepção de que a crítica disse que era uma mudança. Pelo que eu me lembre, a crítica inicial foi totalmente desfavorável. Porque era um choque muito grande, aquilo rompia com tudo. Com o tempo e a aceitação por parte do público, a coisa foi mudando. Me lembro de andarmos pelo Rio de Janeiro e ouvirmos o disco sendo tocado dentro das casas, pelas janelas dos prédios".

    "O mais engraçado era que a crítica falava mais das letras e não da música. Sinal de que não estavam entendendo muito. Mas aí veio a resposta do público e vimos que era um algo mais", relembra Fernando Brant. Ronaldo Bastos corrobora com essa visão e acrescenta: "Na época não houve esta percepção de que a crítica disse que era uma mudança. Pelo que eu me lembre, a crítica inicial foi totalmente desfavorável. Porque era um choque muito grande, aquilo rompia com tudo. Com o tempo e a aceitação por parte do público, a coisa foi mudando. Me lembro de andarmos pelo Rio de Janeiro e ouvirmos o disco sendo tocado dentro das casas, pelas janelas dos prédios". A primeira audição do disco pela turma aconteceu na casa dos Borges, em Belo Horizonte, e foi um momento de muita emoção. Quase todos os envolvidos reunidos, prestes a ver o filho recém-nascido. Além de Milton, Márcio, Fernando e Ronaldo estavam também alguns amigos da trupe incorporados ao Clube, como Tavinho Moura e Murilo Antunes, além de músicos consagrados, como Paulinho da Viola. A empolgação com o trabalho que haviam feito era enorme; o resultado final emocionou a todos e serviu para estreitar os laços de amizade criados durante o período de gestação do trabalho e prenunciar que um algo mais estava por vir. Todos estavam extremamente orgulhosos de pertencer àquele grupo, de terem realizado um trabalho que sabiam que seria importante e, sobretudo, de terem se tornado grandes amigos.

    Toninho Horta lembra-se bem de uma audição que aconteceu no Rio de Janeiro. "Me lembro de uma audição na casa do Ronaldo Bastos. Acho que essa foi a primeira vez que eu ouvi o disco Clube da Esquina. Foi aquela choradeira, ouvir uma música atrás da outra, vendo o resultado final da coisa. Todo mundo era jovem, naquela empolgação para ouvir. O Clube da Esquina só poderia ter sido gravado por aquelas pessoas mesmo. Tudo aconteceu de forma muito verdadeira, estava todo mundo muito junto, muito amigo. Não tinha como dar errado.

    Com o passar do tempo, Clube da Esquina foi conquistando músicos ao redor do mundo, como Edu Lobo, Tom Jobim e Caetano Veloso, que ficaram impressionados com o álbum e não se cansam de dizer que Clube da Esquina é um dos discos mais importantes da história da música popular brasileira. E a opinião dos outros músicos também é compartilhada pelos membros do Clube. "O Clube da Esquina é uma coisa avassaladoramente genial e se as pessoas não sabem disso é problema delas. A gente fez esse disco com uma precariedade de meios, uma falta total de organização e foi provavelmente um dos discos mais influentes, mais bem acabados, mais geniais da história da MPB, e pelas características dele, mais geniais e influentes da história da música no mundo", decreta Ronaldo Bastos, com um visível orgulho de ter participado do trabalho. Toninho Horta é igualmente orgulhoso: "Eu acho que o disco foi um divisor de águas. Um dos discos mais criativos que já foram feitos no planeta. Se tivesse sido feito nos Estados Unidos, seria mais conhecido do que discos de Emerson Lake & Palmer, Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, James Taylor e tantos outros".

    A impressão de Toninho Horta é compartilhada pelo escritor americano Robert Dimery, que em 2005 editou o livro 1001 discos para ouvir antes de morrer e incluiu o Clube da Esquina neste rol. No verbete dedicado a ele, assinado pelo também escritor Andrew Gilbert ― um especialista em música brasileira e colaborador jornais como o San Francisco Chronicle e Boston Globe ―, o disco é descrito como uma mistura de "sons de oníricos, letras surrealistas e uma ampla variedade de influências sul-americanas. É um marco da música popular, que abriu as portas da criação para outros artistas". Clube da Esquina figura no livro ao lado de poucos porém incontestáveis clássicos da música brasileira, como Construção, de Chico Buarque, África/Brasil, de Jorge Ben Jor e o primeiro dos Mutantes.

    Para Lô Borges, o sucesso do disco transpira liberdade. "Ele é soltão, mistura as coisas do Milton Nascimento e do jazz com as coisas de um cara que trouxe influências diferentes. Costumo dizer que minha contribuição foi levar a palheta para os discos de Milton (risos). Eu acho que aquilo ali estava determinado pelas forças cósmicas, não tem muita explicação". A influência de Lô e Beto no disco também é lembrada por Wagner Tiso: "O Lô e o Beto trouxeram leveza para a música do Milton. Todos viram um Milton renovado e achavam um disco bem diferente de tudo que se fazia no Brasil". Já Fernando Brant destaca a universalidade do trabalho: "Acho que é um tipo de música que sempre vai ter gente interessada para ouvir. A influência do Clube está em tudo: música do interior, de igreja, Folia de Reis, jazz e Beatles, por causa do Lô e do Beto". A importância dos dois garotos que amavam os Beatles também é ressaltada por Tavito: "Esse disco foi idealizado para apresentar o Lô, e o Beto veio junto, dois roqueiros, eles são pessoas por quem o Bituca tem uma amizade enorme. O Bituca é tão generoso que dividiu esse disco com o Lô, na época um talento desconhecido. Foi esse encontro de brilhos que tornou possível a produção desse álbum eterno".

    A universalidade e os laços de amizade criados entre os envolvidos também são ressaltados por Beto Guedes: "Eu acho que o primeiro Clube, como um todo, é mais bonito pra mim. As pessoas também vestiram muito a camisa. Parecia que o disco era meu, do Wagner, de nós todos. Não parecia que era um disco do Lô e do Milton. A gente tomava aquilo como nosso. Acho que isso fez a diferença".

    A influência destacada por Fernando Brant foi tão grande que o disco deu origem a um movimento chamado Clube da Esquina, que gerou inúmeros frutos e virou uma espécie de rótulo para toda a música feita em Minas Gerais, por mineiros fora do Estado e que, para alguns, é exagerado. Sobre isso, Lô Borges decreta: "Clube da Esquina, para mim, é um disco que eu fiz com o Milton Nascimento. O que veio depois é rótulo". Rótulo ou não, o fato é que o disco se tornou referência para gerações futuras e até hoje é revisitado por músicos e público em geral interessados em desvendar os mistérios que estão por trás da música e da figura de um dos gênios da música brasileira chamado Milton Nascimento. Ou, como bem definiu Nivaldo Duarte, "Mito Nascimento".

    Ninguém imaginava que o disco iria se transformar neste sucesso estrondoso, mas todos os envolvidos nele sabiam, na época, que o trabalho que estavam realizando seria, no mínimo, importante para suas vidas. Vidas que foram definidas a partir dele. Não seria exagero dizer que Clube da Esquina mudou os rumos da vida, da carreira de muita gente e que deu um outro colorido à música brasileira. Colorido que só foi possível graças a um sentimento presente em cada segundo musical e que, nos dias de hoje, se encontra cada vez mais esquecido: a amizade. A vontade de fazer um disco com pessoas amigas e de levar esse sentimento adiante regeu todos os músicos, letristas, técnicos agregados daquela trupe, gerando um filho genial, lindo e absolutamente atemporal.

    Nota do Editor
    Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no livro Coração Americano, organizado por Andréa Estanislau. Rodrigo James é publicitário e jornalista, graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

    Este texto foi visto no Digestivo Cultural.

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