segunda-feira, julho 31, 2006

Como Isso Pôde Acontecer? - Folha de São Paulo, 31/07/2006

Publicado na Folha de São Paulo, de hoje, 31/07/2006.

Como podemos permitir que isso continue?

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Eles escreveram os nomes das crianças mortas em suas mortalhas de plástico. "Mehdi Hashem, sete anos, Qana", estava escrito a caneta no saco com o corpo do menino. "Abbas Shalhoub, um ano, Qana." E, quando o soldado libanês pegou o pequeno corpo, ele pousou sobre seu ombro, como o menino deve ter feito no ombro do pai no sábado. Os pequenos corpos foram colocados sobre tapetes. Os cabelos tinham poeira, e havia sangue nos narizes.
É preciso um coração de pedra para não sentir a indignação dos que presenciaram a cena. Esse massacre foi uma obscenidade, uma atrocidade -e, se Israel realmente bombardeou com a "pontaria acurada" que diz ter, foi também um crime de guerra.
O premiê Ehud Olmert falou em "terror muçulmano" ameaçando a "civilização ocidental", como se o Hizbollah tivesse matado todas aquelas pobres pessoas. E justamente em Qana, palco há apenas dez anos de outro massacre, o assassinato de refugiados libaneses, mais da metade crianças. É como se Qana tivesse sido condenada pelo mundo, destinada a receber a tragédia eternamente.
E não há dúvida sobre o míssil que matou todas essas crianças ontem. Ele veio dos EUA, e sobre um fragmento dele lia-se: "Para uso da bomba guiada MK-84 BSU-37-B ".
Encontrei Nejwah Shalhoub no hospital, o queixo e o rosto enfaixados como Robespierre antes de sua execução. Ela não chorou, não gritou, embora a dor estivesse escrita em seu rosto. Seu irmão foi morto. Sua irmã também. E ainda sua sobrinha Zeinab, de apenas seis anos. "O que, em nome de Deus, fizemos para merecer isso? As crianças estavam brincando. Por que o mundo faz isso com a gente?"
O massacre de ontem acabou com mais de um ano de antagonismo dentro do governo libanês: tanto os políticos pró-EUA quanto os pró-Síria denunciaram o "crime terrível". Ninguém no país pode esquecer como George W. Bush, a senhorita Rice e Tony Blair repetidamente se recusaram a exigir um cessar-fogo imediato -uma trégua que teria salvo essas vidas.
E qual a reação de Olmert? "Vamos continuar a atividade e, se necessário, ampliá-la sem hesitação". Quão mais longe ela pode chegar? A infra-estrutura libanesa está em pedaços, as vilas, riscadas do mapa, sua população, mais e mais aterrorizada pelas bombas de Israel fabricadas pelos americanos.
Os mísseis do Hizbollah são iranianos, e foi ele quem começou a guerra. Mas a selvageria de Israel contra a população civil choca profundamente. O Hizbollah se esconde entre as casas civis. Mas isso pode ser desculpa para tamanha carnificina?
O premiê Siniora chamou diplomatas estrangeiros ontem. Não há necessidade de dizer que o embaixador do país que fez a bomba que matou os inocentes decidiu não ir.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft3107200607.htm