"Fofoca Da Vinci" - Folha de São Paulo, 19/07/2006
A fofoca Da Vinci
LUIZ FELIPE PONDÉ
O "Código Da Vinci" tem características que o tornam interessante para muita gente que é semiletrada, mas se considera crítica
IMAGINEMOS UM best-seller que juntasse fragmentos da teoria darwinista, cacos de física quântica barata, pitadas de ufologia mística e uma história mal contada do povo maia. Segundo nosso romance, há milênios, alienígenas entraram em contato com os maias.
Historiadores recentes determinaram que esse povo era agressivo, conhecedor da astronomia, canibal e, para alguns, "espiritualmente mais evoluído" do que nós, pois já praticavam, naquela época, o aborto como instrumento de melhoria da qualidade de vida e de auto-estima. Outro dado etnográfico importante é que os maias viviam sob um matriarcado feroz, no qual os homens, após fecundarem 2012 mulheres, tinham seu órgão sexual cortado para que ficassem menos fálicos.
Após complexos cálculos quânticos, segue o romance, os alienígenas decidiram usar os maias para introduzir um vírus gay na humanidade, cujo objetivo era tornar a espécie estéril, além de, como efeito colateral, gerar um profundo sentimento de culpa em quem continuasse desejando o outro sexo. As primeiras cobaias foram os próprios maias, que mergulharam numa guerra civil entre os "libertários" e os "conservadores", sendo esta a causa real de sua extinção. Os alienígenas precisavam da Terra para colonização, por isso era essencial exterminar seus "donos".
Nosso romance se desenrolaria entre Nova York e as selvas da América Central e teria como protagonistas um homem e uma mulher, alguns dos últimos espécimes heterossexuais, que sofreriam uma perseguição cruel de clones gays a serviço da extinção da espécie.
Ao final, nossos heróis seriam salvos por monges beneditinos que descobriram um antídoto para o vírus, mas que não podiam divulgá-lo, pois governos, universidades e empresas já atuavam sob tutela dos alienígenas e, por isso, difamavam nossos monges dizendo que eles eram pedófilos.
Escândalo: ongs, universidades, intelectuais e sociedades de classe se revoltariam (com razão) diante de tamanho uso absurdo de teorias científicas a serviço de preconceitos atávicos. Mas a história é boa, e alguém faz um filme (para "sorte" de nossas vítimas difamadas, um péssimo filme, ainda que com grandes astros). Tentariam proibir o filme? Revelariam seu verdadeiro intento machista homofóbico? Os direitos humanos condenariam o evento?
O "Código Da Vinci" apresenta características que o tornam interessante pra muita gente semiletrada -mas que não sabe que é semiletrada e se considera "crítica". O livro fala mal da Igreja Católica, e falar mal da igreja é o único "preconceito crítico".
Apresenta a Idade Média de forma infantil, como um período no qual se queimavam mulheres inteligentes todos os dias (o que é idiota e falso historicamente; os comunistas devem ter matado mais mulheres, mas o repertório semiletrado sobre a Idade Média é construído por Hollywood).
Faz brilhar a Ordem dos Templários misteriosos, esses heróis medievais dos semiletrados, especialistas em tudo, das melhores posições no sexo sagrado à ciência moderna, do destino da Sra. Jesus à física quântica. Além disso, o "Código Da Vinci" prestaria um serviço irresistível à causa (justa) da recuperação da imagem da mulher na história do cristianismo (o que o elevaria a categoria de obra "libertária").
Pena que isso seja à custa do uso falso dos evangelhos gnósticos e da arqueologia bíblica (o Evangelho de Maria Madalena ou o de Filipe nada nos dizem sobre a "vida de Caras Da Vinci" de Jesus e Madalena), além da difamação direta de instituições e de seus integrantes.
Pouco importa aqui a adesão ou não às vítimas da fofoca Da Vinci, o fato é que, se lembrarmos das manifestações iradas contra o filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, podemos perceber o que move a recepção de fenômenos como esse. O motor da reação nada tem a ver com a preocupação com o conhecimento ou com a história do cristianismo, mas, simplesmente, com essa coisa que disfarça sua verdadeira identidade de preconceito e que infesta a vida com o pensamento: as tolices do multiculturalismo e as militâncias de classes.
LUIZ FELIPE PONDÉ, 47, filósofo, é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião, do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da FAAP. É autor de, entre outras obras, "O Homem Insuficiente" (Edusp).
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1907200609.htm
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