terça-feira, março 27, 2007

Das Crônicas do Heuser: Um Dia Como Qualquer Outro

Um dia como outro qualquer

Por Paulo Heuser


Mais uma sexta-feira normal, como outra qualquer. Desço a Caldas Júnior, mostro o crachá ao soldado que, apesar da cara feia, levanta o cordão de isolamento, me abrindo passagem. A imprensa ainda não chegou. O pipoqueiro, sim, bem como a velhinha dos panos de prato de cinco reais – hoje tá barato! – surrealmente sentada naquela cadeira de praia, sob o andaime, dentro da área isolada pelos soldados. A mãe dela teria vendido panos de prato bordados aos soldados alemães e franceses nas trincheiras da Alsácia-Lorena? Subo ao andar, coloco a moeda na cafeteira e dou uma espiada pela janela.

O prédio da esquina com a Mauá, de onde saiu o PCC e entrou o MST, e sabe lá mais o quê, está sendo desocupado pela tropa de choque. Macacões azuis e capacetes laranjas cercam as ruas e os telhados. No meio da rua vazia, um sujeito de terno e pasta. Será o oficial de justiça? Ingrata profissão, de homens poderosos e solitários. Ninguém os recebe com fanfarras. Quarenta e cinco minutos após o ultimato de cinco minutos, as tropas invadem o prédio. Não há resistência, física, pelo menos.

Começa a retirada das pessoas e das tralhas. Aquelas se reúnem em semicírculo, obedecendo a uma voz de comando que parece sair de um sujeito de bermudas, regata e boné branco. Deve ser o comandante, pois se posta no interior do semicírculo e começa a puxar o coro de frases de efeito, algumas feitas. Uma é vaiada, pois todo mundo já está cansado de saber que o povo unido jamais será vencido. A realidade nos mostra isso o dia todo. À frente, colocam-se as crianças, enviadas por uma mulher jovem, vestindo calça capri e colant pretos, chapéu de palha, com um bebê no colo. As crianças formam uma bizarra ala de frente, carregando um estandarte contra o machismo, o imperialismo e outros ismos. Logo a seguir, vêm os da outra ala, carregando os estandartes de um estranho MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados (sic). No semicírculo, começa uma fieira de cânticos, muito eclética, por sinal. Começam com Para não dizer que falei de flores, do Geraldo Vandré, seguem com Atirei o pau no gato, sei lá de quem, Asa branca, do Grande Gonzaga e, para encerrar com chave de ouro, Parabéns a você, sei lá de quem também. Gosto da primeira e da terceira. Não entendo a segunda e a quarta. Ops, não terminou ainda, agora vem algo gospel. Chega a imprensa. E o congestionamento vai longe. O telefone toca, alguém relatando que está preso no túnel. Deus ajuda quem cedo madruga. Enquanto um helicóptero tudo observa, voando feito um zangão barulhento.

O trânsito é liberado na Mauá. Meia dúzia tenta bloqueá-lo. Um apito de soldado basta para demovê-los. A turba se vai, cantando cânticos ensaiados, perdendo-se ao longe, em meio a buzinaria dos que perderam a hora da manhã. O café terminou, a janela fechou. Numa sexta-feira que começou como qualquer outra. Quem invadirá o prédio hoje à tarde?

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