Kissinger vai ao banheiro
O banheiro branco de Henry Kissinger é o modelo de muita decoração de interiores
NADA DE sopranos enlouquecidas que se atiram de uma torre, nem de barrigudos com fantasia de cavaleiro andante. Muito menos aquelas frágeis tuberculosas emitindo dós agudos a plenos pulmões.
O mundo da ópera teve um choque em 1987, quando o compositor John Adams estreou "Nixon na China": cantando no palco, em meio a fanfarras e insistências, estavam o presidente dos Estados Unidos, sua mulher, Patty, Henry Kissinger, Zhou Enlai, Mao Tse-tung e a terrível Madame Mao.
Logo no começo, Nixon desce do avião e é cumprimentado por Zhou Enlai. A cantoria assinala obsessivamente o vazio protocolar. "Fez boa viagem?", indaga o primeiro-ministro chinês. "Sim, sim, foi boa, foi boa, boa, boa, a viagem, sim, foi boa e agradável", matraqueia Nixon.
Depois de uma cena dramática, o secretário de Estado Henry Kissinger se ergue solenemente. "Onde, onde, por favooor, é o banheiro, o baaanheeeiro?" Zhou Enlai responde, na mesma toada: "No fundo do corredooor...".
John Adams seguia a estética minimalista, sem ser tão radical quanto Phillip Glass e Steve Reich. É aquela coisa que, pelo menos desde a trilha sonora de "Koyaanisqatsi", todo mundo já ouviu alguma vez. Dó-mi-sol, dó-mi-sol, dó-mi-sol, dó-mi-sol-sol, sol-sol-dó etc. etc., com variações quase imperceptíveis, durante 20 ou 30 minutos. Dizem até que, na estréia de uma composição desse tipo, uma senhora, sem suportar mais, subiu até o palco e gritou: "Parem, por favor! Eu confesso!".
O minimalismo foi afrouxando com o tempo, e John Adams faz hoje em dia música muito interessante de ouvir.
Mas eu não imaginava até que ponto o minimalismo era um retrato fiel da realidade. O Departamento de Estado americano divulgou, em fevereiro deste ano, os registros de uma conversa real entre Kissinger e Mao em 1973.
Transcrevo parte do que foi publicado na revista "Harper's" de maio passado.
Mao: "O comércio entre nossos dois países no momento é lastimável. O senhor sabe que a China é um país muito pobre. Não temos muita coisa. O que temos sobrando são mulheres". (risos) Kissinger: "Não existem quotas nem tarifas para elas".
Mao: "Então, se vocês quiserem, podemos dar umas para vocês, umas dezenas de milhares". (risos) Kissinger: "Nosso interesse nas relações com a China não é comercial. Trata-se de estabelecer um relacionamento necessário pelas razões políticas que ambos temos". Mao: "Não entendemos os seus assuntos internos. Muitas coisas da política externa de vocês nós também não entendemos".
Kissinger: "Vocês têm uma maneira mais direta, talvez mais heróica de agir do que nós. Nós usamos às vezes métodos mais complicados por causa da nossa situação doméstica. Mas nos nossos objetivos fundamentais iremos agir com muita decisão e sem cuidados com a opinião pública" (...).
Mao: "Vocês querem mulheres chinesas? Podemos dar 10 milhões para vocês".
Kissinger: "O presidente está melhorando sua oferta". Mao: "Poderemos fazer com que elas inundem o seu país... elas dão à luz crianças, e temos crianças demais".
Kissinger: "É uma proposta tão nova, que teremos de estudá-la". Mao prossegue nessa linha, para desconforto de Kissinger, que no fim entrega os pontos: "Vejo que o senhor está com uma idéia fixa nesse assunto".
Talvez Mao estivesse gagá, ou bêbado. Pode ser também uma astúcia qualquer, para evitar que qualquer coisa relevante fosse discutida na reunião. Quem sabe fosse um desabafo criptografado a respeito de Madame Mao. Não sabemos, mas isto é certo: o diálogo era puro minimalismo.
Era? Fico pensando no que são esses encontros de Davos, essas entrevistas de presidentes e ministros que ouvimos todo dia. Ou nos grandes especialistas do mercado financeiro, que a respeito de qualquer crise -na Argentina ou na Letônia- repetem apenas que "o governo não fez as reformas necessárias", ou que "é preciso fazer a lição de casa".
Vejo que está em cartaz o mesmo "Indiana Jones" de 20 anos atrás. Depois do filme, os que não gostam de McDonald's vão comer sushi. O banheiro branco de Kissinger é o modelo de muita decoração de interiores por aí.
A vida imita a arte, para repetir também uma frase já batida. O minimalismo, hoje, virou arte realista da mais perfeita exatidão.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 11 de junho de 2008.
Marcadores: Nixon na China, ópera
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