A cabeça do eleitor
Ciências humanas, por menos que gostemos disso, também ganham com a matemática
NA HORA de escolher uma faculdade, as pessoas alérgicas a números sempre souberam o que fazer: procurar alguma carreira em ciências humanas. Talvez em filosofia ou letras essa estratégia ainda funcione (desconfio que cada vez menos).
Mas em ciência política ou sociologia, temo que o espaço para as almas antimatemáticas está se fechando de vez.
Acabo de ler "A Cabeça do Eleitor" (ed. Record), do sociólogo Alberto Carlos de Almeida. Ele foi muito criticado, a meu ver injustamente, pelo seu livro anterior: "A Cabeça do Brasileiro".
Ali, traçava-se uma correlação estatística entre baixos níveis de escolaridade e determinadas visões de mundo, como tolerância diante da corrupção política ou apoio à pena de morte. Não havia, a meu ver, motivo para escandalizar-se diante dessas conclusões. Os propósitos de "A Cabeça do Eleitor" são, de qualquer modo, mais modestos. O fato é que a disposição de Alberto Carlos Almeida para a análise estatística impõe novas doses de prudência a todo comentarista político ou "cientista social" à moda antiga.
Uma série de perguntas (nem todas abordadas pelo livro) tem sido objeto de puro palpitômetro. Um governante popular transfere votos a um candidato desconhecido? Pesquisas de opinião pública influem no resultado de uma eleição? Gastos elevados de campanha modificam o quadro eleitoral? O tempo disponível no horário gratuito pode decidir uma vitória?
Colocadas assim, abstratamente, essas questões parecem ingênuas.
Todo observador experiente da vida política dirá que "cada eleição é uma eleição", ou que, como dizia uma velha raposa mineira, Magalhães Pinto, "política é como nuvem, uma hora está de um jeito, depois fica de outro...".
Entram em conflito duas mentalidades incompatíveis: a dos "matemáticos" e a dos "intuitivos". Vou-me convencendo, entretanto, que essas mentalidades não são tão opostas assim.
Na medida em que o país vai acumulando, bem ou mal, certo histórico de estabilidade política, o fato é que os dados de muitas e muitas eleições podem ser analisados com mais precisão.
E uma análise estatística, ao contrário do que pensam os apavorados com o poder da matemática, não é uma bola de cristal. Agrupa regularidades bastante turvas, sabe que exceções podem acontecer, e que o fato de determinados fenômenos se repetirem no passado não é garantia automática de que venham a ocorrer da próxima vez.
Seja como for, alguns dos levantamentos trabalhados em "A Cabeça do Eleitor" levam Alberto Carlos Almeida a formular algumas "leis", que podem não ser tão infalíveis como a lei da gravidade, é claro, e nem tão surpreendentes, mas que seria muito anticientificismo negligenciar.
Uma das primeiras tabelas do livro aponta, ousadamente, a "previsibilidade" de 19 eleições municipais em 2000. Em 17 delas, valeu a regra de que o governante bem avaliado se reelege, ou elege o sucessor, e de que o governante mal avaliado se dá mal.
Nas duas eleições em que isso não ocorreu, a diferença entre primeiro e segundo colocados foi de, no máximo, 0,02% dos votos.
Sobre a influência das pesquisas, faltam levantamentos. Mas o autor mostra um caso sugestivo. Foi numa eleição em Duque de Caxias (RJ).
Mediu-se quanta gente dizia saber de algum resultado de pesquisas; mediu-se depois se o entrevistado sabia os resultados corretos das pesquisas. E, por fim, se o seu voto coincidia com a informação que tinha a respeito de quem ia ganhar. A influência das pesquisas foi desprezível: quem sabia delas tinha mais escolaridade e tendia a votar no candidato tido como perdedor.
Análises desse tipo dizem pouco sobre o caráter do capitalismo tardio ou sobre a alienação no mundo globalizado. Do mesmo modo, pesquisas sobre o comportamento das araras-vermelhas não responderão sobre a essência da vida. Mas devem ser feitas.
Ciências humanas, por menos que gostemos disso, também ganham com o uso da matemática. Certamente, esta funciona mais quando os tempos não são de crise social completa. Tabelas de comportamento eleitoral teriam pouco a explicar sobre a ascensão do nazismo, embora talvez o predissessem. As opções políticas são hoje menos dramáticas; e, se são mais previsíveis, talvez seja porque colocam menos em jogo o nosso destino.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 28 de maio de 2008.
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