Contra a tortura
Contra a tortura
LONDRES -QUEM está cansado de Londres está cansado da vida. Obrigado, Dr. Johnson. Acordo num domingo perfeito -cinzento, frio, chuvoso-, no quarto de sempre do meu amado e velhinho Dukes. Ao longe, escuto nove badaladas no Big Ben. E, antes de me lançar selvaticamente ao café da manhã que promete estourar com o meu colesterol, passo os olhos pelo "Telegraph". Para ler Janet Daley, um das minhas prosadoras favoritas.
O assunto de hoje é sério: tortura. Conta Daley que o premiê britânico, David Cameron, criticou George Bush sobre o assunto. Parece que Bush, com a sutileza que todos lhe reconhecemos, defendeu o uso de certas "técnicas coercivas" para combater o terrorismo e extrair informações de prisioneiros. Como o "waterboarding", uma forma de encharcar o suspeito, simulando afogamento. Disse Bush que técnicas como essa impediram vários ataques em solo britânico.
Cameron não comprou a ideia. Disse que era impossível provar tal coisa. E depois avançou com duas proposições de peso. Primeiro: a tortura é moralmente errada. E, depois: é inútil: nunca fornece informação relevante ou decisiva.
Janet Daley acerta em cheio ao apontar a natureza contraditória das afirmações de David Cameron. Porque, se a tortura é moralmente errada, não vale a pena acrescentar a sua presumida inutilidade. "É pior que um crime; é um erro", dizia o cínico e realista Talleyrand (1754-1838). Será Cameron um cínico igual? Duvidoso. Melhor ficar pelo imperativo moral. O imperativo moral chega.
O problema é que os imperativos morais nunca chegam, escreve Daley. E raramente sobrevivem à realidade. Mentir é errado? Certo. Mas quem não mentiria para salvar a pessoa que ama? "Entre a justiça ou a minha mãe, escolho a minha mãe", dizia Albert Camus (1913-1960). Eu também. E que me perdoe o sr. Immanuel Kant (1724-1804).
Mas existem princípios morais e princípios morais. "Mentir" e "torturar" não habitam a mesma categoria -e aqui afasto-me de Daley, que recorre ao dilema clássico sobre a necessidade da tortura na proteção das liberdades e vidas humanas.
Imagine o leitor: o suspeito tem informação relevante sobre a bomba; a bomba irá provocar incontáveis mortes; devemos torturá-lo de forma a extrair informação que salvará todas essas vidas?
Melhor ainda: se a tortura é um atentado aos direitos humanos, que dizer dos direitos humanos de todas as vítimas que o poder político foi incapaz de proteger, torturando um só suspeito?
Entendo o dilema. Acontece que o dilema não é propriamente um dilema, é uma armadilha. Toda a formulação está já construída para uma resposta positiva. Se o suspeito sabe; se o suspeito se prepara para matar; se a confissão do suspeito pode impedir o massacre de inocentes, então será mais fácil tolerar um aperto aqui, uns choques acolá, uma simulação de afogamento a seguir. Tudo em nome do bem comum.
Infelizmente, uma armadilha não nos leva longe. Um suspeito não passa disso: um suspeito. Jamais saberemos, com rigor e certeza inabaláveis, se temos na nossa frente a chave da ameaça. Podemos ter um cúmplice -ou não. Podemos ter um inocente -ou não. Existe uma diferença moralmente decisiva entre o que julgamos poder saber -e o que saberemos depois do serviço feito.
Bem sei que, em todos os países do mundo, e em particular nos países ocidentais, a tortura policial continua a ser praticada portas adentro. E seria ingenuidade acreditar que lições de ética seriam capazes de alterar essa aberração.
Mas não custa tentar: a civilização em que vivemos só foi possível pela renúncia a certas leis da selva. A lei de sermos juízes em causa própria. A lei de dominarmos os fracos pela força. A lei de nos apropriarmos indevidamente dos bens de outro. Mas também a lei de o torturarmos para cumprir um qualquer desígnio pessoal ou tribal.
Sim, sou capaz de mentir para defender minha mãe. Mas não torturo para protegê-la, desde logo porque nunca saberei se a estarei protegendo ou só mutilando um inocente.
Há riscos nessa espécie de absolutismo moral, eu sei. Às vezes, podemos estar errados. Às vezes, o preço a pagar é trágico. Às vezes, o suspeito era realmente cúmplice. Mas quem disse que viver em sociedades civilizadas era fácil?
Não é, leitor. Fácil é viver na selva e seguir os instintos dos animais.
O assunto de hoje é sério: tortura. Conta Daley que o premiê britânico, David Cameron, criticou George Bush sobre o assunto. Parece que Bush, com a sutileza que todos lhe reconhecemos, defendeu o uso de certas "técnicas coercivas" para combater o terrorismo e extrair informações de prisioneiros. Como o "waterboarding", uma forma de encharcar o suspeito, simulando afogamento. Disse Bush que técnicas como essa impediram vários ataques em solo britânico.
Cameron não comprou a ideia. Disse que era impossível provar tal coisa. E depois avançou com duas proposições de peso. Primeiro: a tortura é moralmente errada. E, depois: é inútil: nunca fornece informação relevante ou decisiva.
Janet Daley acerta em cheio ao apontar a natureza contraditória das afirmações de David Cameron. Porque, se a tortura é moralmente errada, não vale a pena acrescentar a sua presumida inutilidade. "É pior que um crime; é um erro", dizia o cínico e realista Talleyrand (1754-1838). Será Cameron um cínico igual? Duvidoso. Melhor ficar pelo imperativo moral. O imperativo moral chega.
O problema é que os imperativos morais nunca chegam, escreve Daley. E raramente sobrevivem à realidade. Mentir é errado? Certo. Mas quem não mentiria para salvar a pessoa que ama? "Entre a justiça ou a minha mãe, escolho a minha mãe", dizia Albert Camus (1913-1960). Eu também. E que me perdoe o sr. Immanuel Kant (1724-1804).
Mas existem princípios morais e princípios morais. "Mentir" e "torturar" não habitam a mesma categoria -e aqui afasto-me de Daley, que recorre ao dilema clássico sobre a necessidade da tortura na proteção das liberdades e vidas humanas.
Imagine o leitor: o suspeito tem informação relevante sobre a bomba; a bomba irá provocar incontáveis mortes; devemos torturá-lo de forma a extrair informação que salvará todas essas vidas?
Melhor ainda: se a tortura é um atentado aos direitos humanos, que dizer dos direitos humanos de todas as vítimas que o poder político foi incapaz de proteger, torturando um só suspeito?
Entendo o dilema. Acontece que o dilema não é propriamente um dilema, é uma armadilha. Toda a formulação está já construída para uma resposta positiva. Se o suspeito sabe; se o suspeito se prepara para matar; se a confissão do suspeito pode impedir o massacre de inocentes, então será mais fácil tolerar um aperto aqui, uns choques acolá, uma simulação de afogamento a seguir. Tudo em nome do bem comum.
Infelizmente, uma armadilha não nos leva longe. Um suspeito não passa disso: um suspeito. Jamais saberemos, com rigor e certeza inabaláveis, se temos na nossa frente a chave da ameaça. Podemos ter um cúmplice -ou não. Podemos ter um inocente -ou não. Existe uma diferença moralmente decisiva entre o que julgamos poder saber -e o que saberemos depois do serviço feito.
Bem sei que, em todos os países do mundo, e em particular nos países ocidentais, a tortura policial continua a ser praticada portas adentro. E seria ingenuidade acreditar que lições de ética seriam capazes de alterar essa aberração.
Mas não custa tentar: a civilização em que vivemos só foi possível pela renúncia a certas leis da selva. A lei de sermos juízes em causa própria. A lei de dominarmos os fracos pela força. A lei de nos apropriarmos indevidamente dos bens de outro. Mas também a lei de o torturarmos para cumprir um qualquer desígnio pessoal ou tribal.
Sim, sou capaz de mentir para defender minha mãe. Mas não torturo para protegê-la, desde logo porque nunca saberei se a estarei protegendo ou só mutilando um inocente.
Há riscos nessa espécie de absolutismo moral, eu sei. Às vezes, podemos estar errados. Às vezes, o preço a pagar é trágico. Às vezes, o suspeito era realmente cúmplice. Mas quem disse que viver em sociedades civilizadas era fácil?
Não é, leitor. Fácil é viver na selva e seguir os instintos dos animais.
Marcadores: tortura, torturadores, violação de direitos humanos
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