O pesadelo dos gerentes
O pesadelo dos gerentes
ACONTECE EM TODO lugar, mas videolocadoras são, ou eram até recentemente, as campeãs neste tipo de coisa. Você entra, os funcionários são muito jovens, estão mais interessados na própria conversa do que em atender o cliente, não fazem ideia do filme que você está pedindo e, na hora de pagar com cartão de crédito, o "sistema caiu".
Essa, pelo menos, era minha experiência desde os tempos do VHS e, ao que tudo indica, nos Estados Unidos ocorre o mesmo. Pois o exemplo da videolocadora aparece no capítulo inicial de "Não Tenha Medo de Ser Chefe", livro do consultor de negócios Bruce Tulgan, publicado no Brasil pela editora Sextante.
Por que seriam tão ruins os serviços daquela videolocadora hipotética? A culpa não é dos funcionários, nem do dono da empresa, responde Tulgan. A culpa é do gerente.
A questão, diz ele, é que estamos vivendo uma "epidemia de subgerenciamento". Teorias modernas de administração insistiram exageradamente na ideia de que é preciso delegar funções, atribuindo metas aos funcionários, sem orientá-los e acompanhá-los de perto.
Prêmios, penalidades, ordens precisas, baixa tolerância com a mediocridade: só assim, diz o livro, as coisas vão começar a funcionar.
Volto ao exemplo da videolocadora, entretanto, e penso em outra hipótese. O gerente, de fato, nunca está por perto em estabelecimentos desse tipo. Mas penso no funcionário que me atende.
Não se trata, necessariamente, de alguém com baixo nível de instrução. O que parece predominar nesse tipo de serviço é a figura do empregado temporário, muitas vezes um estudante. Basta você atrasar a devolução do DVD que todas as caras na locadora já mudaram. Provavelmente, o gerente também é outro.
O sociólogo Richard Sennett, em "A Corrosão do Caráter" (ed. Record), dá o exemplo de uma padaria, hoje totalmente informatizada, que ele tinha estudado há questão de 20 ou 30 anos.
O trabalho tornou-se muito menos exaustivo; o ambiente é asséptico como o de um laboratório. Produz-se uma quantidade muito maior e mais variada de pães.
Os empregados, entretanto, perderam comprometimento com a profissão. Não se consideram mais "padeiros". Apertam botões em um computador, cujo funcionamento desconhecem. Sabem que dali a alguns meses arranjarão outro serviço -numa locadora, provavelmente.
Pobre do gerente que quiser "liderar", como se diz, equipes desse tipo. A mão de obra tornou-se transitória como nunca num sistema de produção marcado pela extrema tecnologia. A velha "ética" do trabalhador, tanto na relação com seus colegas quanto com o resultado de seus esforços, pulverizou-se no que, com certa visão moralizante, gosta-se de denominar o "hiperindividualismo" contemporâneo.
O "hiperindividualismo" existe, antes de tudo, porque o próprio trabalho deixou de ser algo coletivo e perdeu o pouco sentido que antes possuía. Como exigir "motivação" de quem não passa de um apertador de botões e passador de cartões de crédito?
Na outra ponta, o alto dirigente tampouco está feliz. Em "O Executivo sem Culpa" (ed. Lua de Papel), João Ermida narra como passou por uma longa síndrome de pânico depois de muito sobe e desce no mercado financeiro. É dos que lamentam a "crise de valores" na sociedade contemporânea.
Infelizmente, para superá-la -adotando comportamento mais sábio e menos imediatista-, não bastam, a meu ver, transformações individuais. Seria preciso, antes de mais nada, avisar a concorrência.
Enquanto isso, o leitor interessado no assunto pode ler "Como Enrolar Seu Chefe", de João José da Costa (ed. Matrix). Entre as recomendações, na aparência humorísticas, mas bastante profundas de seu livro, estão a de tomar o máximo de cafezinhos por dia, participar de tudo quanto é curso de reciclagem, preparar um Power Point "multivalente" para sair dando palestras por aí, entrar em toda reunião inútil. O objetivo, claro, é trabalhar o menos possível.
Por trás de tudo, está o fato de que o trabalho se autoinventa; criam-se funções e projetos para justificar o que nunca teve tão pouco sentido; o desemprego, ou na melhor das hipóteses, o trabalho temporário, é o pesadelo do qual todos, gerentes ou não gerentes, gostariam de acordar.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 3 de novembro de 2010.
Marcadores: Marcelo Coelho, mundo do trabalho
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