segunda-feira, junho 05, 2006

Viva Muqtada, do Blog Bagdá em Chamas



O texto abaixo é uma tradução que fiz do post Viva Muqtada, do blog Bagdá em Chamas (Burning Bagdah). A autora do blog Bagdá em Chamas apenas se identifica como uma garota do Iraque. O texto original pode ser encontrado, em inglês neste endereço: http://riverbendblog.blogspot.com/2006_05_01_riverbendblog_archive.html

Viva Muqtada...

É fascinante observar o mundo além do Iraque se preparando para a Copa do Mundo. Eu tenho em meu correio eletrônico fotos de pessoas segurando bandeiras e escudos, torcendo por um time ou outro. Ah, nós temos bandeira e escudos também - panos negros sobre toda Bagdá, anunciando mortes de velórios. As bandeiras costumam ser de apenas uma cor - preta, verde, vermelha ou amarela - representando uma certa facção religiosa ou um grupo político.

Um amigo que tem uma loja em Karrada teve um probleminha com uma bandeira na semana passada. Karrada era uma das melhores áreas comerciais de Bagdá antes da guerra. Era o lugar que você ia quando tinha uma lista de diversas necessidades, como sapatos, descascador de batatas, esmalte cor de rosa, e uma dúzia de cd's virgens. Você tinha certeza de encontrar tudo o que você necessitava em menos de uma hora.

Após a guerra, SCIRI, Da'awa e outras facções religiosas começaram a abrir escritório lá. Lojas que antes exibiam roupas coloridas, e posteres de mulheres com maquiagem, começaram a sumir. Logo, em lugar de mulheres charmosas anunciando perfumes Dior, as lojas começaram a pendurar cartazes de Sistani, parecendo um pouco um zumbi, envolvido em negro. Ou fotos de Sadr, amargo e de preto, e certamente não exalando Dior.

Este amigo é dono de uma pequena loja de cosméticos, onde ele vende de tudo, de batons a xales para a cabeça. Seu apartamento está localizado em cima da loja, assim, da janela da sala de estar. ele pode ver quem pára diante da loja. G. (este amigo) herdou a loja de seu pai, artigos de costura em lugar de cosméticos. A loja pertence à família há quase 20 anos. Antes da guerra, sua esposa e sua irmã atendiam na loja, sendo mais persuasivas nas vendas, provavelmente devido a histórias sobre os cosméticos (a prova disto é este chamativo xale de pescoço que eu comprei há 4 anos e nunca tirei do armário desde então). Depois da guerra, e de várias ameaças na forma de cartas e de vidraças quebradas, G. começou a atender a clientela pessoalmente, e, junto com os cosméticos, ele começou a vender uma muito apropriada linha de mantos e véus pretos.

A última vez que eu estive na loja de G. foi há duas semanas atrás. Desde janeiro, a loja de G. vinha sendo o centro de alguma atividade futebolística. A obsessão dele com futebol chegou ao ponto de a loja fechar duas horas mais cedo, para que E., o primo dele e amigos possam se juntar para torneios da FIFA no PlayStation. Estes torneios são basicamente um grupo de marmanjos sentados em semicírculo, dirigindo pequenos homens digitais correndo atrás de uma bola também digital, gritando incentivos e insultos uns aos outros. Se você entra na loja querendo comprar alguma coisa durante estes momentos, você se arrisca a ser posto para fora, ou a lhe dizerem "pegue, pegue - seja lá o que for. Pegue e vá embora!". Todo ano de Copa do Mundo, G. e sua esposa discutem brincando sobre para qual nome devem trocar o nome de seu filho em homenagem ao jogador do ano (em um tipo de compromisso, família e amigos concordaram em chamar seu filho de 14 anos de "Ronaldino" [sic] até que os jogos terminem).

Um primo de G., que vive no Canadá há quase 15 anos, recentemente mandou a G. uma grande e colorida bandeira do Brasil. Perfeita para pendurar na vitrine da loja. Ele nos disse como ele estava planejando pendurá-la bem no centro da vitrine, e pintar abaixodela em grande letras "VIVA BRASILIA!!" [sic]. E. pareceu ambíguo enquanto G. de maneira animada descrevia como ele mudaria as cores à mostra - verde e amarelo para ir de encontro à bandeira.

Dois dias se passaram antes dos problemas começarem. O primeiro indício de problema veio do vizinho de G. Ele parou perto da loja e disse a G. que um jovem clérigo com um turbante preto tinha passado diante da vitrine, quando a bandeira atraiu sua atenção.De acordo com o vizinho, Abu Rossul, o clérigo parou, encarou a bandeira, tomou nota do nome da loja, sua localização e seguiu seu caminho. G. deu de ombros com as palavras, "Bem. Talvez ele seja um fã do Brasil também..." Abu Rossul não estava tão certo,"Ele parecia mais do tipo 'Viva Sadr!' para mim...".

Um dia depois, G. teve uma visita ao meio-dia. Um clérigo jovem e vestido de preto entrou na loja, e deu uma olhada ao redor. G. tentou mostrar-lhe alguns lindos xales e mantos, mas não se apartou de sua aparente missão. Ele disse ser um "representante" doescritório de imprensa de Sadr, que ficava algumas quadras adiante e tinha uma mensagem para G.: as pessoas do tal escritório não estavam felizes com a vitrine de G. Aonde estava seu senso de orgulho nacional? Aonde estava seu senso de religião? Em lugar de um jogador infiel, havia imagens do primeiro Sadr, ou, melhor ainda, Muqtada! Por que ele tinha uma bandeira estrangeira vergonhosamente exposta na vitrine? Se ele sentisse necessidade de uma bandeira, havia a bandeira iraquiana para colocar ali. Se elesentisse a necessidade de uma bandeira verde, como a da vitrine, havia a bandeira verde do "Al il Bayt"... Democracia, afinal de contas, é sobre ter opções.

G. não ficou feliz. Ele disse ao clérigo que ele iria encontrar uma "solução" e ofereceu uns pares de chinelos baratos e algumas cuecas de algodão, que ele às vezes vendia, como oferta de paz. Naquela tarde ele conversou com vários parentes e amigos, e, embora nenhum deles o aconselhasse de tirar a bandeira, ele insistiu que a bandeira deveria permanecer por uma questão de princípios. Sua esposa até se ofereceu para transformar a bandeira em uma cortina ou em lençóis para que ele pudesse usufruir do objeto até o final da Copa. Ele insistiu em manter a bandeira.

Dois dias depois, ele encontrou uma advertência mais forte em uma carta passada sob a porta externa de alumínio. Simplificando, a carta declarava que G. e pessoas como ele eram "infiéis" e demandava que ele tirasse a bandeira ou ele correria perigo. Demoraum pouco para estremecer um cara como G., mas no mesmo dia ele tirou a bandeira e a vitrine voltou ao normal.

Como isto passou, Muqtada tem uma fatwa contra o futebol. Eu a baixei e esta é uma tradução do que ele diz quando alguém lhe pede uma fatwa sobre futebol e sobre a Copa do Mundo:

Na verdade, a posição de meu pai sobre este assunto não é deficiente... Não só meu pai, mas a Sharia também proíbe tais atividades que mantêm os seguidores muito ocupados para a adoração, mantêm os seguidores afastados da lembrança [de adorar]. Habeebi, o Ocidente criou coisas que nos impedem de completarmos a nós mesmos (perfeição). O que eles fizeram nos fazermos? Correr atrás de uma bola, Habeebi... O que isto significa? Um homem, deste tamanho e desta altura, muçulmano correndo atrás de uma bola? Habeebi, esta meta ('goal') como é chamada... se você quer competir, compita por um objetivo nobre. Siga os objetivos nobres que lhe completam, e não os que lhe diminuem. Lute por um objetivo, coloque-o em sua mente e todos que seguem seu próprio caminho para o objetivo de satisfazer a Deus. É isto. A segunda coisa, que é mais importante, nós sabemos que o ocidente e especialmente Israel, habeebi, você os vê jogando futebol? Você os viu praticando jogos como os árabes o fazem? Eles nos deixam nos manter ocupados com futebol e outras coisas, e permitem isto. Você já ouviu sobre a equipe de Israel, maldita seja, ir à Copa do Mundo? Ou ainda os Estados Unidos? Somente outros jogos... Eles nos mantêm ocupados - cantando, jogando, fumando, e coisas assim, e satélites são usados para coisas que são blasfemas enquanto eles ocupam a si mesmos com ciência, etc. Por que, Habeebi? Eles são melhores que nós? - Não, nós somos melhores que eles."

Nota importante: a Sharia islâmica não proíbe o futebol ou outros esportes - isto só é proibido na versão da Sharia da cabecinha imersa em trevas de Muqtada. Eu me pergunto o que ele pensa de tênis, natação e ioga...

Eu ouvi a fatwa, com ele sendo emocional a respeito de jogar futebol , e eu não sabia se ria ou chorava. A ocupação estrangeira e ser parte de um governo fantoche - está certo. Futebol, ao contrário, será o fim da civilização como nós a conhecemos, de acordo com Muqtada. É divertido - eles não parecem com Bush - mas ele me lembra Bush. Ele tem dificuldades para juntar duas sentenças adequadamente, mas mesmo assim, milhões de pessoas consideram sua palavra a lei. Assim, quando Bush delira a respeito do novo "governo iraquiano iniciante" "livremente eleito" no poder, você dá uma olhada em Muqtada e vê um dos novatos. Ele é um dos mais poderosos homens no país devido a seus seguidores.

Então, isto é a democracia. Esta é uma das grandes mentes do Iraque democrático de Bush.

A milícia de Sadr controla partes do Iraque agora. Apenas há alguns atrás, sua milícia, com a ajuda de Badr, estava mantendo as mulheres afastadas do mercado na cidade de Karbala, no sul. Não é permitido às mulheres irem ao mercado, e os donos de lojas reclamam que seus negócios estão sofrendo. Bem-vindo ao novo Iraque.

É tenebrosamente divertido ver em que nos tornamos, e também angustiante. Muqtada Al-Sadr é uma medida de quanto nos regredimos nestes três últimos anos. Mesmo durante a guerra com o Irã, e durante o período de sanções, as pessoas praticavam esportes para se distrair do dia-a-dia. Depois da ocupação, nós ganhamos uma partida de futebol contra um ou outro e consolamos a nós mesmos dizendo "Bem, nós perdemos as guerras - mas nós ganhamos no futebol!". De um país que já celebrou esportes - especialmente o futebol - para um país que se preocupa se os jogadores estão vestindo calções longos o suficiente, ou se todos os torcedores irão para a danação eterna... Isto é o que nos tornamos.