domingo, março 09, 2008

Das Crônicas do Heuser: Os dentes da Frida

Os dentes da Frida


Por Paulo Heuser


Minha mulher apareceu em casa com um DVD do grupo sueco ABBA – nome formado pelas iniciais dos casais Agnetha e Björn; Anni-Frid (Frida) e Benny. Lembro-me bem da época em que Dancing Queen enchia os alto-falantes das rádios AM para jovens, lá pelo meio dos inesquecíveis e formidáveis anos 70. Tempos em que tocavam em piano de verdade, aquele feito de madeira de verdade, com martelos, pedais, cordas e teclas brancas e pretas. Naquele grupo juntaram o talento de dois compositores de mão cheia com duas cantoras muito boas. O resultado foi um sucesso. Ouve-se Abba até hoje. Música fácil e gostosa. Em 1994 as músicas do grupo fizeram parte da trilha sonora da ótima comédia australiana Priscilla – A Rainha do Deserto, que contou a história de drag queens que cruzaram o deserto na Austrália a bordo de um ônibus chamado Priscilla.

O DVD mostra algumas coisas que podem passar despercebidas ao observador desatento, aquele que se deixa levar apenas pelo áudio. Os cabelos e roupas chamam logo a atenção. Longas costeletas e roupas coloridas, bem ao estilo da época. Nota-se também uma tentativa, bem sucedida, por sinal, de transmitir a ausência de estrelas no grupo. Todos mereceram tempos semelhantes defronte as câmeras e sucediam-se no primeiro plano, fraternalmente. Na falta dos atuais "defeitos" especiais, o responsável pela fotografia usou e abusou de recursos como foco em planos diferentes e closes. As coreografias parecem um pouco ridículas para quem não se insere no clima da época. Hoje nos acostumamos com muita luz, corpo de balé, cenários de megaproduções de Hollywood, muita fumaça e pouca música.

Há algo naquelas performances, no entanto, que salta aos olhos. O quarteto tinha dentes. Dentes de verdade, como o piano. Dentes feitos de dentina e sabe-se lá do quê. Naturais, orgânicos, como diriam hoje. Coisas produzidas pela própria pessoa, que cresceram sem o molde de aparelhos, formas e guias. A abundância dos closes permite a visualização de pequenas imperfeições, frestas e desalinhamentos, tudo completamente natural. O que mais me surpreendeu foi o fato de eu me surpreender tanto com isso. Perplexo, deixei escapar um comentário: - Nossa, eles têm dentes! – ou tinham, pelo menos. Olhando mais atentamente, pude observar que a Agnetha – a loira - tinha a boca levemente torta. Bela, mas torta. De qualquer forma, ninguém dava a mínima ao fato de ela ter boca torta. O que interessava era o que saía dela.

Outros tempos. Pegavam uma boa música, ou um bom grupo, e lançavam-nos no rádio. Prensavam as bolachas e distribuíam. Se a cara do ou da vivente fosse muito terrível, colocavam uma foto de outra coisa na capa do disco. A foto de uma guitarra, por exemplo. Hoje as coisas se complicaram. Encontram alguém plasticamente perfeito, reúnem a orquestra sinfônica, o corpo de balé, o coral, canhões robotizados de laser e... e... O que vieram fazer, mesmo? Ah, sim! A criatura deve cantar. Que saudades da boca torta da Agnetha e dos dentes separados da Frida!

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