quinta-feira, agosto 07, 2008

Sede de vingança

NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Sede de vingança

Eu costumo ser bom público de cinema: dou um jeito de gostar de quase qualquer coisa. Como meu marido ficou com os olhos brilhando ao ver o trailer do novo Batman, lá fomos nós conferir o "Cavaleiro das Trevas" (embora meu motivo maior fosse o Michael Caine, sempre). Mas, em vez de entusiasmados, saímos do filme exaustos, arrastando pelo chão a alma pesada com tanta crueldade alheia.
Sim, Heath Ledger transcende o extraordinário como o Coringa. Mas é justamente tão real em sua interpretação que, após duas horas sentindo repulsa crescente por seus ardis para colocar inocentes uns contra os outros em experimentos sociais sádicos, nós nos descobrimos torcendo para que o Batman despachasse o dito-cujo de encontro à sua morte.
"Matar é errado", diz, no entanto, a voz da razão, em algum lugar do nosso córtex pré-frontal -e no do Batman também, para misto de decepção e alívio do público. O justiceiro, afinal, é um homem de bem. Mas, no fundo, no fundo, fica a sensação de que uma parte do cérebro da gente bem que preferiria o Coringa morto de uma vez e Gotham livre dele. De onde vem essa sede secreta de vingança, forte o suficiente para se dirigir a alguém que só existe na tela? Por que tememos a morte iminente de crianças e adultos inocentes, mesmo fictícios, enquanto torcemos pela do vilão?
Saí do cinema me lembrando de um estudo feito em 2004 pelo grupo da neurocientista Tania Singer, no Reino Unido, que mostrou que nos afligimos automática e empaticamente com a dor causada a desconhecidos que colaboram conosco, ou que demonstram serem legais: o córtex da ínsula, que monitora o estado do corpo, manifesta-se como se a dor alheia fosse nossa. Se, ao contrário, vemos sentir dor alguém que nos traiu, a ínsula não se compadece nem um pouco. Minha ínsula, portanto, não deve dar a mínima para as dores do Coringa.
Mas o cérebro não pára aí.
Ainda mais reveladora é a constatação de que o núcleo acumbente do sistema de recompensa -aquele que nos faz sentir prazer- é ativado no cérebro de quem observa o traidor receber um estímulo doloroso. E, quanto maior é a sede de vingança, mais forte é a ativação do acumbente. Torcer pela morte do Coringa não deve ser, portanto, uma resposta racional à sua crueldade, e sim um desejo recôndito do cérebro, que o julga vil, vil, vil.
Se isso é certo ou errado?
Aí é outro assunto...


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do site "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (www.cerebronosso.bio.br)

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