terça-feira, outubro 14, 2008

Alencar, o escravista - II

Análise/livro/"Cartas a Favor da Escravidão"

Esforço letrado de Alencar é chocante

Textos publicados revelam um escritor admirável e ao mesmo tempo execrável, que faz pensar nos novos senhores do Brasil

TALES AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem ler as "Cartas a Favor da Escravidão", de José de Alencar, que a editora Hedra publica após 140 anos de sua primeira aparição, deve se espantar. De fato, o livro tende para o inacreditável.
Há muito que circula a percepção em círculos progressistas de que as elites nacionais poderiam funcionar por princípios pré-modernos em plena modernidade, diante dos quais o horizonte real de desenvolvimento social do país não é um móvel histórico forte.
A vida ideológica estável de nossa época nos impede de checarmos as concepções de mundo do poder e seu controle do corpo e destino no mundo do trabalho. Em um tempo em que todo poder emana do capital, e a crítica da violência no espaço do trabalho está vedada por princípio, apesar da virtual escravidão, a verdade é que a violência contra o trabalho continua aí, presente, configurando amplos setores da economia. No entanto, tais novos senhores do trabalho do outro estão justificados a priori.
Afinal, imensas empresas, como as grandes marcas esportivas ocidentais, não exploram também ao extremo o trabalho, até mesmo o infantil, no sudoeste asiático, ao mesmo tempo em que terceirizam as responsabilidades, como se nada tivessem a ver com essa ordem de iniqüidades, mesmo quando ganham tudo com ela?

Clareza e astúcia
Em uma certa passagem de nossa modernidade, José de Alencar se pôs a defender, com seu estilo transparente e elegante, a posição do Partido Conservador pela manutenção da escravidão no Brasil. A instituição estava abalada, pois fora abolida no império inglês (1833), nas colônias francesas (1848) e nos EUA (1863).
As pressões sobre o Brasil eram grandes, e d. Pedro 2º sinalizava, mesmo que de modo muito lento e gradual, para o horizonte de supressão do trabalho escravo. Então Alencar escreve essas peças execráveis, mas, paradoxalmente, admiráveis pela clareza e pela astúcia, sustentando a necessidade civilizatória da escravidão.
Fundado em um princípio de violência inconciliável da civilização com a natureza e com o outro humano -o bárbaro-, que seria civilizado pela força avançada que o poria como escravo, mas força que também o tornava um virtual sujeito para ele próprio, Alencar se utiliza de todos os argumentos imagináveis em seu tempo para justificar o modernamente injustificável, do risco de crise social à necessidade econômica fatalista e até mesmo um desenho de amálgama de raças pela miscigenação e pela cultura, que faria da escravidão a mãe da cultura nacional.
Hoje, o esforço letrado e frio do escritor é chocante e nos parece vazado de desfaçatez. Algo parece ter mudado no valor dos fatos e da história.
Mas o que podemos dizer dos neo-senhores, que mantêm condições de terror e ignomínia no mundo do trabalho? Se eles fossem obrigados a falar, como recentemente os neocons americanos o fizeram para justificar a ilegítima invasão no Iraque, seu sistema de razões e sofismas soaria semelhante ao do elegante e culto senhor de escravo e romancista brasileiro, como toda ordem de razão que emana da pura força.
De modo algum é acaso que este tenha sido o único trabalho publicado do autor no século 19 ausente das obras completas de 1959. Tal voz conservadora é de fato mais poderosa quando silenciosa, quando não mais necessita se justificar. Por isso o livro de Alencar é importante. Ele dá voz e configuração ao que silencia, pois não necessita justificativa, e pode apenas agir, tão sistematicamente no Brasil.


TALES AB'SÁBER é psicanalista, membro do Instituto Sedes Sapientiae e autor de "O Sonhar Restaurado" (ed. 34)

Da Folha de São Paulo, de 8 de outubro de 2008.

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