O Campeonato Mundial da Ciência
O Campeonato Mundial da Ciência
RENATO DAGNINO
O NÚMERO de artigos de brasileiros que aparecem nas 10 mil melhores revistas que constituem a base considerada para o campeonato cresceu 56% no último ano.
O país agora ocupa a 13ª colocação no ranking. Sem querer estragar prazeres dos que festejam a notícia, vale recomendar moderação: o número de revistas brasileiras que integram a base passou de 63, em 2007, para 103, em 2008 (conforme o artigo "Inusitado aumento da produção científica", de Rogerio Meneghini, publicado neste espaço na última terça).
Os mais otimistas dizem que, com 30 mil artigos (2,12% do total mundial), estamos próximos da Coreia, um posto acima, com 35 mil. Um país que, por usar sua ciência para fazer tecnologia e desenvolver a economia, estaria nos mostrando o caminho que vai dos artigos ao bem-estar social.
Mas há setores da comunidade de pesquisa que questionam o significado disso que é visto como o Campeonato Mundial da Ciência, no qual os artigos publicados nas revistas em que se joga o jogo são os gols marcados pelos cientistas-jogadores. Quase todas essas revistas, aliás, em países desenvolvidos.
Os questionamentos podem ser entendidos como associados a outros quatro campeonatos.
O primeiro, interno ao "campo" da ciência, sugere que o Campeonato da Ciência Publicada é a "segunda divisão". A primeira seria o Campeonato da Ciência Citada. Nele, o gol não é o número de artigos publicados, mas o número de vezes que ele é citado.
Dizem os críticos: os artigos de brasileiros são citados bem abaixo da média mundial, e estimativas mostram que a superioridade coreana nesse campeonato é de quase 3 para 1.
O segundo questionamento avança para o Campeonato da Tecnologia. Os gols, aqui, são as patentes depositadas nos EUA. Os artilheiros, diferentemente do que ocorre lá, não são as empresas, mas as universidades. Apesar do seu paradoxal esforço, a superioridade coreana é de 30 para 1.
Os críticos dizem que o resultado desse campeonato não depende daquele da ciência e que o crescimento das publicações é simples consequência do aumento do número de mestres e doutores. Como as empresas não precisam fazer pesquisa, não os empregam e não patenteiam -e esse campeonato também está perdido.
O terceiro envolve o Campeonato da Produção, entendido pela comunidade de pesquisa como o penúltimo elo da cadeia linear de inovação que ela usa como modelo para elaborar a política de ciência e tecnologia. Nele, o gol é a participação dos produtos "high-tech" nas exportações do país.
Aqui, a superioridade do país tomado como modelo (Coreia) é de 3 para 1.
Como no Campeonato da Tecnologia, os críticos estão mais interessados no jogo que ocorre no "campo" da empresa, da produção. Eles têm mostrado aos que elaboram a política de C&T, e que só jogam no "campo" da ciência, que seus campeonatos são de outros esportes. E que o sucesso no Campeonato da Ciência Publicada pode ser bom para quem dele participa, mas não para o que eles alegam ser os "interesses do país".
O quarto questionamento tem a ver com o Campeonato da Tecnologia Social. Nele, o "campo" não é o da empresa, mas o dos movimentos sociais. Aqui, fazer gol é aplicar diretamente nosso potencial de C&T para o desenvolvimento social sem esperar que ele ocorra por meio das empresas. É lutar para sair da "lanterna" nesse torneio.
Os críticos sabem que isso exige muita criatividade, originalidade e conhecimento. Não há receita de como desenvolver, com os empreendimentos solidários, soluções adequadas do ponto de vista social, técnico e ambiental. Isso que é imprescindível na nossa situação e nunca foi feito antes.
Nesse caso, o poder dos críticos é muito menor. Mas eles estão conseguindo mostrar a seus pares que querem um país mais justo e sustentável que seu campeonato é o mais importante. E que centenas de trabalhos científicos já mostraram que vencê-lo não é consequência linear de bons resultados nos campeonatos anteriores.
O fato de não sabermos produzir conhecimento científico e tecnológico compatível com valores morais (e ambientais) e interesses econômicos alternativos nem conceber mecanismos institucionais para fomentá-lo exige uma reorientação da política de C&T. É injustificável que nosso plano de C&T aloque menos de 2% de seus recursos para o seu quarto eixo, "C&T para o Desenvolvimento Social".
Depende da capacidade de mobilização e convencimento desses jogadores-críticos que estão entrando em campo para transformar o Campeonato da Ciência Publicada no Campeonato da Tecnologia Social, nossa chance de construir um país melhor.
RENATO DAGNINO , 59, mestre em economia do desenvolvimento e doutor em ciências humanas, é professor titular de política científica e tecnológica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 14 de maio de 2009.
Marcadores: Brasil, educação, produção científica brasileira
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