sexta-feira, julho 17, 2009

Velórios de vida e morte e uma ínfima lição de filosofia

Velórios de vida e morte

NUNCA FUI de curtir velórios. Na realidade, detesto ir a qualquer compromisso social: batizados, casamentos, aniversários, noites de autógrafos, estreias teatrais. Dos enterros, sobretudo, procuro conservar a máxima distância. Costumo romper relações sociais com os amigos que morrem, fico na saudade e fico bastante. Cerimônias festivas ou fúnebres, só mesmo quando não dá para arranjar uma desculpa posterior, ou quando sou apanhado em flagrante.
Acontece que esse horror aos enterros tem agora uma justificativa: é que a plebe está aproveitando a ocasião para fazer festanças. Não sei se foi sempre assim, mas a mania propagou-se e não poupa defunto, ilustre ou não. No enterro do Glauber Rocha, por exemplo, foram feitas e ditas tantas besteiras que por pouco o Glauber não se levantava e dava banana do caixão.
Aos poucos, os velórios estão ficando parecidos com noites de autógrafos, festivais disso ou daquilo, shows promocionais de lançamentos musicais, exposições de variadas artes. Tudo bem, espetáculo é espetáculo, o show deve continuar -dizem os entendidos. Para o velório de Michael Jackson, o mais recente em escala mundial, distribuíram (ou venderam) 17 mil ingressos, com direito a barraquinhas de pipoca e cachorro quente nas imediações. Até do Camboja veio equipe de tevê para gravar a cerimônia.
Muitas vezes o evento fúnebre é aproveitado para declarações de princípios, que muitas vezes não são os mesmos do falecido. Lembro o velório do Mário Pedrosa, um sujeito curioso, papa absoluto da nossa crítica de artes plásticas, que apesar dos 80 anos dava a impressão de ter quinze. Sua trajetória na cultura nacional foi marcada pela dignidade, pela paixão, pela pureza. A exaltação que colocava na política tornou-se até anedótica.
Sofreu exílios, prisões, mas foi em frente. Abriu clareiras em nosso feudo acadêmico e tal como Otto Maria Carpeaux, que ficou enjoado da literatura e nos últimos anos de vida só pensava em política, Mário Pedrosa chutou a arte para corner e meteu os peitos na participação política, que para ele era uma forma de viver superior à arte.
Mas nem Mário Pedrosa foi grande o bastante para que o pessoal ficasse calado em seu velório. O que houve de bobagem daria para encher uma biblioteca. Cito apenas o exemplo: um psiquiatra nativo (parece que nascido em Minas, mas era nativo assim mesmo) disse que havia aprendido com Mário que "não há socialismo sem liberdade nem liberdade sem socialismo".
Bem, não conheci a obra toda de Mário para conferir. De qualquer forma, creio que o psiquiatra se excedeu. A primeira parte de sua afirmação é válida. O socialismo tende à liberdade. Abolindo o lucro, ele estabelece uma relação entre a sociedade e o Estado, e entre os indivíduos entre si, desvinculada de qualquer interesse que não o social.
O lucro, no sistema capitalista, fatalmente gera compartimentos econômicos que transformam cada setor numa gaiola da qual só se sai pela droga, pelo roubo ou pela competição doentia, tornando-se selvagem.
Agora, quanto à segunda parte ("não há liberdade sem socialismo") a besteira é primária. Liberdade faz parte da "essentia" humana. O socialismo, como qualquer outro "ismo!", é "acidens". Ou seja, acidente.
Não estou aqui para ensinar lógica aristotélica de graça, mas confundir um valor essencial com um valor acidental é burrice que não pode ser atribuída nem ao Mário nem a ninguém. A liberdade não foi criada pelo ser humano, pela sociedade humana. Tal como a consciência, ela é um valor em si, uma categoria "apta inesse pluribus", ou se quiserem, universal.
Já o socialismo, como o tribalismo, o teosofismo, o catolicismo, o canibalismo, o fascismo, o filatelismo, o escotismo e o feminismo são bolações humanas, feitas pelo homem e para uma espécie de homem, são acidentais e incidentais. Algumas prestam, outras nem tanto e muitas são perniciosas. A liberdade é apenas como a vida e a morte. Um valor absoluto que se conquista durante a vida e em alguns casos só se ganha depois da morte.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 10 de julho de 2009.


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