Palavras também sofrem desgaste. É o que muitas vezes acontece com o adjetivo "épico", quando ele é posto no vocabulário esportivo fazendo um par nada romântico com "conquista", "triunfo" e outros quetais. Mas há momentos em que, por baixo da camada de banalidade, uma palavra e seu significado brilham, polidos pelo surpreendente paradoxo da realidade que se torna mito.
E nesse caso, o termo "épico", embora banalizado pelo uso constante durante a semana, pode ser uma boa palavra para o que se viu pelas ruas da Capital entre o apito final do jogo entre Inter e Barcelona, em Yokohama, no domingo, e a apoteose dos jogadores colorados no Beira-Rio lotado, na terça-feira, recebidos em triunfo como conquistadores romanos voltando de terras longínquas.
O épico é o canto de um povo, o poema ou narrativa que, em volta de um mito fundador de um país ou nação, tece o cântico às virtudes de uma raça ou às façanhas aventurescas de um herói representativo de uma gente. E o que se viu naquele estádio japonês foi épico porque, apesar dos 97 anos de história colorada, o título conquistado por Fernandão e companhia é, mais do que uma coroação da trajetória quase centenária do clube, o mito fundador de uma nova realidade. A recepção da massa indistinta de torcedores (da "nação", que seja, mas sem o sentimento fascista que as organizadas imprimem ao termo, por favor) aos heróis que permitiram, com seu gesto e sua aventura, que o torcedor do Internacional se sentisse merecedor da glória.
Este jornalista tinha cinco anos em 1979, quando o time liderado por Falcão e Valdomiro encerrou com título a campanha invicta no Brasileirão. Cinco anos, e a idade é pouca para que a memória retenha jogos, passes, dribles, mesmo os gols. As lembranças que ficaram são a da multidão do lado de fora da casa de meu avô e a de uma bandeira colorada que me havia sido presenteada dias antes, e que aos meus olhos infantis tinha as dimensões de uma tenda árabe. E é nítido na memória o passeio de Kombi pelas ruas da cidade de São Gabriel, na Campanha. E, acima de tudo, o momento em que alguém na multidão que se alinhava na calçada da Rua Tristão Pinto puxou a bandeira das minhas mãos pouco firmes - bandeira que sumiu pela janela do carro e foi engolfada pela multidão.
E um dos dias de maior alegria na vida de um colorado de cinco anos terminou com choro infantil e a tristeza de haver perdido algo. Uma sensação amarga que dava a impressão de uma alegria transitória e incompleta. Mescla de emoções contraditórias, familiar a muitos colorados nas últimas décadas: triunfo seguido de uma derrota banal, tornando inútil o esforço heróico de antes.
A vitória no Gre-Nal do Século levando a uma derrota na final contra o Bahia, em casa, em 1988. A goleada contra o Peñarol para mais adiante cair no Beira-Rio, com vantagem, diante do Olímpia. A possibilidade de uma Copa do Brasil em 1999 destruída com uma goleada humilhante em casa contra o Juventude. A lista é infinita. Mesmo a Copa do Brasil conquistada em 1992 ficou para sempre sob o signo da polêmica, marcada como a do "pênalti duvidoso" - ou "pênalti roubado", como querem os gremistas. E, como o inferno são os outros, os gremistas e sua fulgurante galeria de títulos recentes contribuíam para acentuar o desconforto colorado, uma sensação de que a glória completa era para outros, outros times, outras torcidas, outros heróis.
No campo, um time representa seu torcedor. Mas, em um esporte tão popular e arraigado no imaginário brasileiro como o futebol, o sujeito na arquibancada ou o que sofre enrolado na bandeira na frente da TV enxerga seu time não como um representante, e sim como uma extensão de si mesmo - projeta na equipe tudo o que ele é e o que ele quer ser. E conscientemente, esse mesmo torcedor sabe: quem perdeu foi o time. Mas no instável terreno das paixões mais íntimas, o torcedor sente que o derrotado foi ele mesmo.
E por isso chegar à final da Libertadores e confirmar a vantagem foi só o primeiro passo, porque muitos acreditavam que o torneio da América seria a glória que precederia o desastre. A vitória contra o Barcelona, límpida, em campo, no tempo regulamentar, sem lances duvidosos e expulsões discutíveis, foi, para a torcida, não só a mais feliz quebra de prognósticos. Foi o início de uma nova história. O canto de nascimento de uma nova nação, calcada em um brilhante mito fundador, um sinal de que o colorado não precisa mais associar cada pequena vitória com uma derrota subseqüente.
Foi a aclamação dos heróis que mostraram que a alegria é um objetivo possível.
( carlos.moreira@zerohora.com.br ) |
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