sexta-feira, abril 04, 2008

GLOBALIZAÇÃO E QUALIDADE DE VIDA

Palestra de Mário Sérgio Cortella, filósofo paulista, recebida pelo correio eletrônico. O texto é longo, talvez longuíssimo em se tratando de Internet, mas vale a pena.


GLOBALIZAÇÃO E QUALIDADE DE VIDA*


Mário Sérgio Cortella – Palestra proferida no SESC – SP - 1998

* Esta conferência é uma elaboração ampliada e modificada de outra feita pelo autor (Repensando o Envelhecer: entre o Mito e a Razão) no Seminário Nacional "O Brasil e os Idosos" (SESC-SP, 1996); resultante de uma exposição oral, guarda o caráter coloquial.

Qualidade de vida é o grande tema deste século. Quando falamos em final de século, estamos nos referindo a algo que está muito próximo de nós. Há pessoas que olham o mundo atual e dizem: "Esse mundo está mudando". Aliás, tem gente que diz coisa pior: "Esse mundo está perdido". Eu costumo inclusive dizer que quem fala demais essa frase é porque começou a se perder nesse mundo, e a perder as referências. Quanta gente diz "esse mundo está mudando", e quantas vezes falamos isso para os nossos filhos, assim como nossos pais falaram para nós? O mundo sempre esteve mudando, não há novidade nenhuma nisso. Mas há, sim, uma novidade.

A novidade não é a mudança do mundo. A novidade é a velocidade da mudança. Nunca o mundo mudou tão velozmente quanto muda hoje. A tal ponto que acabamos nos perdendo dentro das relações. Um exemplo concreto: choque de gerações. Durante séculos e séculos, o choque de gerações era choque entre pais e filhos. Geração era entendida como um período de 25 anos, porque supostamente aos 25 anos as pessoas já teriam descendentes, isto é, uma outra geração. Hoje, choque de gerações é imediato. Por exemplo, meu filho de 21 anos é considerado ultrapassado pela minha filha de 19 anos. Por sua vez, o de 21 e a de 19 são considerados ultrapassados pelo meu filho de 15 anos. Imaginem como eu sou considerado por eles! Aliás, eles demonstram isso na linguagem. Eles se referem, por exemplo, ao tempo em que eu tinha 20 anos, que para mim foi agora, sempre como antigamente. Aliás, eles falam: "Pai, é verdade que antigamente...". Quando eu era criança, antigamente era um termo que a gente usava para se referir a gregos e troianos na antigüidade clássica. Eles falam em antigamente fazendo referência ao agora e sentem isso, não apenas falam. Aliás, quando eles querem desqualificar alguma coisa, como algo já ultrapassado, dizem: "Ah, pai, você está falando isso porque você é de outra década". Até o dia em que descobri a resposta e nunca mais eles falaram. Na última vez que eles falaram isso, eu disse: "Ah filho, fica sossegado porque o seu filho vai dizer que você é de outro século ou, pior ainda, de outro milênio".

Quando líamos a biografia do Machado de Assis, aparecia algo assim: "Machado de Assis, nascido em meados do século passado". Daqui a dois anos, serei apresentado assim: "Mário Sérgio Cortella, nascido em meados do século passado". Isso tem um peso. Aqui neste auditório há dezenas de pessoas que nasceram antes da Segunda Guerra Mundial. Se alguém falar para um jovem que nasceu antes da Segunda Guerra Mundial, guerra que acabou há 54 anos, há mais de meio século, ele não vai acreditar porque para ele a Segunda Guerra Mundial é passado longínquo. Está tão longe para ele quanto para nós está a Guerra do Paraguai, a luta napoleônica na Europa, etc.

As coisas mudam com tanta velocidade que acabamos perdendo as referências. Muitos de nós tínhamos como referência de coisas do nosso dia-a-dia o fim da Segunda Guerra ou a chegada do homem à Lua. Faz 30 anos que o homem chegou à Lua. Se falarmos isso para um jovem, ele achará que se trata de um fato antiqüíssimo. Hoje, a sucessão dos acontecimentos é tão veloz que freqüentemente não lembramos mais deles. Querem um exemplo? Vocês se lembram do assassinato do primeiro-ministro de Israel, o Itzak Rabin, que comoveu a humanidade? Em que ano foi? Vocês se lembram do terremoto em Kobe, no Japão? Em que ano foi? Vocês se lembram do escândalo dos anões do orçamento no Congresso Nacional? Em que ano foi? Ah, isso é todo ano! Mas, quando foi aquele que teve uma CPI? Vocês se lembram? Daqui a alguns meses vai fazer dois anos que morreu a Lady Di. Já? Quando foi que morreram os Mamonas Assassinas, em 96 ou 97? Já estamos de novo perto do dia de Tiradentes, e daqui a pouco é Natal outra vez. Acabamos de sair do Nata! Muita atenção nisso: quem não prestar atenção a esse fenômeno não conseguirá entender algumas coisas que estão acontecendo.

A velocidade das mudanças é tão grande que nós mudamos até a nossa noção de tempo. Por exemplo, antigamente, ou seja, há 20 anos atrás, olhávamos o relógio para ver que horas eram. Hoje, olhamos o relógio para ver quanto falta. Temos outra idéia de tempo. Atualmente estamos sempre correndo. More alguém numa cidade como São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte; more alguém no interior de Rondônia, no interior do Amapá ou de Santa Catarina, está correndo. O dia é mais curto. Por exemplo, na cidade onde eu moro há 30 anos, que é São Paulo, as pessoas sabem quem não é de São Paulo. Sabem por quê? Porque a pessoa faz uma coisa inacreditável quando está andando na rua: ela para! Ela para e fica olhando ao redor e atrapalha. Sabemos quem não é de São Paulo no metrô, porque no metrô tem escada-rolante. A pessoa de fora sobe junto com a escada! E a lógica aqui é que se vá pulando os degraus enquanto se sobe, senão perde-se tempo. Não temos paciência nem para esperar elevador, ficamos apertando o botão várias vezes. Se o telefone demora para discar, a pessoa se irrita. Caixa automático? Tem gente que já está numa correria tamanha, independente da idade, que fica irritado como se o caixa automático realmente demorasse para entregar o dinheiro. Não quer perder tempo com aquilo.

Sou do Interior, caipira de Londrina, no Paraná. Mas, vivo em São Paulo há 30 anos. Londrina é uma cidade grande, que perto de São Paulo é pequena. Me acostumei com a correria de São Paulo. Quando vou visitar parentes meus no Interior do Estado de São Paulo, numa cidade de 30 mil habitantes, não agüento três dias, porque tudo lá é devagar, é lento. No primeiro dia ainda tenho o que fazer. No segundo dia fica devagar. No terceiro é insuportável. Por quê? Porque é lento. Levanto cedo, que é o meu hábito, e tomo café. Leio o jornal inteirinho, olho no relógio: 8h05. E o almoço está longe. Aí saio, dou uma volta na praça; volto e sento outra vez: 9h10. Leio o jornal de novo, até anúncio fúnebre e anúncio de carro. Olho no relógio: 9h40. Aí encontro um parente que mora ali e ele fala assim: "Não agüento mais essa cidade, é uma correria sem fim. Não tenho tempo para nada, estou louco para chegar o fim de semana para ir para a chácara descansar um pouco". Descansar do quê? Ele corre? Corre. Ele corre numa cidade de 30 mil habitantes, assim como eu corro numa cidade de 12 milhões de habitantes; assim como alguém corre numa cidade como Londrina com 470 mil habitantes; assim como uma pessoa corre em Xavantes, perto da fronteira do Estado de São Paulo e do Paraná; assim como outra corre em Cacoal, em Vilhena, em Mossoró etc.

Estamos vivendo um período de muitas transformações. Somos a geração tem vivido a maior velocidade de mudança das sociedades humanas de toda a história. Por isso muitos de nós nos perdemos. Querem ver um exemplo concreto? Nós corremos, aceleramos, fazemos, tudo tem que ser rápido. Comida? Fast-food. Aliás, quando eu era criança, uma comida boa era aquela que demorava para ser preparada. Sou filho de italianos, macarrão bom era aquele cujo molho ficava dois dias fervendo para sair toda a acidez. O doce de abóbora ficava horas e horas no tacho. Hoje, temos redes de fast-foods que se orgulha e faz propaganda na televisão de que, se não entregar a comida em 40 segundos, dá um prêmio. Isso é uma mudança, é a comida rápida para não se perder tempo. Vou dizer uma coisa aqui que só quem é tão idoso quanto eu vai lembrar. Houve um tempo em que nós, humanos, aqui na nossa sociedade, na hora do almoço, por incrível que pareça, almoçávamos sentados junto à família. Depois "evoluímos", passamos a comer fora de casa com colegas de trabalho. "Avançamos" mais, passamos a comer fora de casa, sentados, sem os colegas de trabalho. "Avançamos" mais, passamos a comer fora de casa, em pé num balcão. "Avançamos" mais, passamos a comer fora de casa, em 15 minutos, em pé num balcão de frente para uma parede. "Avançamos" mais ainda, passamos a comer com a mão, que é uma forma de voltar ao primeiros estágios da evolução da espécie. Hoje, podemos entrar num fast-food em São Paulo, numa coisa fantástica chamada Drive Thru, que é para se entrar com o carro. Isso é fantástico: entrar com o carro, falar com a máquina, dar a volta e do lado de lá o sujeito entrega um saco com comida, uma bebida, e a pessoa sai guiando, comendo e bebendo, feliz da vida, e cheio de qualidade de vida. Tudo é rápido, é fast-food. Alguém já levou o carro para lavar num lugar chamado Lava Lerdo, Lava Lento? Não, embora saibamos que um carro bem lavado é aquele que demora para ser lavado. Mas, preferimos o lava rápido e o fast-food. Sabem o que mudou nas grandes cidades? Até o velório é fast. Antigamente, o velório era na casa da pessoa, a noite toda com os amigos e parentes, as mulheres na sala em volta do corpo fazendo orações, os homens do lado de fora contando piada, bebendo cachaça etc. O velório era uma cerimônia. Hoje, nas grandes cidades, o velório é fast-velório. Hoje é muito comum se ouvir dizer: "Eu vou dar uma passada lá". Uma passada significa: paro ao lado do corpo, faço alguma homenagem e saio porque não tenho tempo. Não posso homenagear as pessoas que gosto. Tem que ser rápido. Olha a frase: "Eu vou dar uma passada lá". É como se velório fosse igual a hospital em que se dá uma passada para visitar alguém. Isso é novidade. Mudou o nosso modo de compreender a morte, o nosso modo de compreender a comida, o nosso modo de compreender a vida, o nosso modo de compreender qualidade de vida.

Um outro exemplo. Como era a sala da minha casa em Londrina, há 30 anos? Num canto tinha uma mesa com cadeiras em voltas e nela fazíamos uma coisa inacreditável na hora do almoço: almoçávamos juntos, pais e filhos. No fundo tinha um guarda-comida, um armário onde a minha mãe guardava tudo o que ela tinha ganho no casamento para usar num dia especial, que nunca chegou; mas guardava. e com o tempo foi sendo distribuído para filhos e netos. Na sala tinha uma área de circulação para chegar na cozinha e num cantinho havia um altarzinho com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Havia ainda quatro poltronas. Por incrível que pareça, uma de frente para a outra de maneira que as pessoas, quando sentassem, pudessem fazer uma coisa antiga, que era se ver. E sabem o que fazíamos em casa, à noite? Só quem é idoso como eu vai saber. Sabem o que fazíamos? Conversávamos!. Conversavam pais com filhos, vinham os parentes. Vizinho era bem-vindo. Alguém se lembra desse tempo em que vizinho era bem-vindo? Ele vinha, trazia um bolo, conversava. Tinha que tomar café, comer um bolo, uma tapioca, o que fosse.

Um dia, há 30 anos, numa sexta-feira à tarde, tocou a buzina do jipe como meu pai fazia todo dia no fim da tarde (no Paraná se usava jipe na época, jipe de capota de lona) e nós, os filhos, saímos correndo e fomos lá para ver. Dentro tinha uma caixa grandona. Ele tirou a caixa e a colocou em cima da mesa da sala. Abriu e dentro tinha um aparelho de televisão Telefunken, preto e branco, à válvula, com os pezinhos de madeira. A partir desse dia, nossa vida mudou. Primeira modificação: saiu a imagem de Nossa Senhora Aparecida e em seu lugar entrou a Telefunken. Segunda modificação: as poltronas mudaram de lugar, ficaram todas de frente para aquilo. Terceira modificação: nunca mais nós conversamos. Aliás, nem podia. Pensamos estar ligando a televisão? A televisão é que nos liga. Todo dia à noite, 80 milhões de pessoas estão paradas defronte a um aparelho de TV, olhando, com um jornal no colo, um prato ou um tricô no colo, todas de boca aberta. De repente, faz plim-plim e levanta-se o jornal, pega-se o prato e sai. Aí faz plim-plim de novo, volta-se e fica-se ali até dormir. E se alguém resolve conversar? Não pode. Aí o filho fala: "Sabe, pai, hoje eu...". "Psiu, fica quieto. Você não está vendo que eu estou vendo o noticiário?". O sujeito quer saber de notícia que está acontecendo lá na Indochina, e não faz a mínima questão de saber o que está acontecendo à sua volta. "Olha, mãe, eu queria...". "Psiu, estou vendo a novela. Trabalho o dia inteiro, já estou por aqui. Agora você fica falando comigo?". Se o vizinho chegar é um inferno! Sabe por quê? Porque vai atrapalhar aquele nosso imenso ato de convivência, que é ficar cinco ou seis de boca aberta, olhando para um aparelho. Tem gente que nem desliga a televisão quando chega uma visita. Aí fica aquela coisa horrorosa, olho na TV e olho na visita; depois de dez minutos ela também está assistindo televisão.

O erro está na televisão? Não. Televisão é uma coisa maravilhosa, informa, distrai. O erro está na tecnologia que nos faz correr? Não. O erro está na concepção, no modo como entendemos a qualidade da nossa existência. Não são apenas os idosos que vivem assim. São gerações que estão vivendo desse modo, sem que a gente dê uma parada e fale: basta. Tecnologia é ferramenta, não é finalidade. Aparelho eletrônico é para melhorar a vida coletiva, e não para isolar as pessoas cada vez mais. Por que o idoso se dedica muito a assistir televisão? Porque não tem o convívio e aí tem que se limitar a ela. O grande escritor Fernando Sabino dizia que a televisão é o "chiclete dos olhos". Mesmo quando já se perdeu o sabor, continua sendo mastigado. As pessoas dizem: a televisão e o rádio são modos de fazer companhia. Isso é necessário em uma sociedade que tem milhões de pessoas? Para se sentir acompanhado, precisa-se de uma coisa eletrônica, que é ótima, mas que não precisaria ter essa função?

Mais outro exemplo. Para quem mora em cidade grande e se lembra como era uma casa de classe média, ou de gente pobre com recursos mínimos, há 30 anos? A casa tinha na frente uma sala. O que tinha na sala? Sofá, às vezes uma TV, aparelho de som, radiola, vitrola, e em alguns lugares era até um móvel que tinha bar dentro com espelho. No fundo havia vários quartos. O que tinha dentro do quarto? Um guarda-roupa e uma cama. No fim da tarde, lá pelas sete horas, alguém passava pela sala, ia até o quarto, trocava de roupa, punha um chinelo, uma bermuda ou um vestido mais leve, e voltava para a sala. Outros chegavam, iam para o quarto e voltavam para a sala. O que acontecia na sala? Uma coisa milagrosa, uma coisa chamada convivência, um viver junto. Hoje, a tecnologia avançou e barateou tanto que o que é que se tem na sala? A sala. E o que mais tem na casa? Tocas, tocas e tocas. O que se tem em cada toca, que antigamente era um quarto? Um aparelho de TV, às vezes um aparelho de som, um micro system. A pessoa chega do trabalho, seis ou sete horas da noite, passa pela sala, vai para a toca e fica. O outro passa, vai para a toca e fica. Mais outro passa, vai para a toca e fica. Quando essa família se encontra? Antigamente, ela se encontraria na hora da refeição, porque para esquentar a comida toda de uma vez só tinha que se juntar. Com o microondas, cada um come na hora que quiser e, de preferência, na toca. Essa família não se encontra. Sabe quando ela se encontra? No final de semana, na viagem, no casamento ou no batizado. Aí ela "quebra o pau", porque não mais se conhece. Chegamos a um ponto tal de distanciamento que uma das coisas que se instituiu em muitos lugares é que, no momento de uma festa ou de um aniversário, em vez de dar um presente para alguém, se dê para ele um vale-disco. Sabe qual é o argumento? É que a pessoa deve escolher. Eu não aceito vale-disco. Se alguém quiser me dar um vale-disco, que me dê dinheiro, porque aí eu decido se é disco ou não o que quero. O vale-disco é um jeito prático de não precisarmos pensar no outro.

Muitos podem estar pensando: que conferência maluca é esta, falando de má qualidade de vida? Não. Estamos falando do que perdemos e da velocidade do mundo atual. Há um outro lado: muitos de nós ainda não nos dispusemos a entrar nessa velocidade para poder olhar um pouco esse mundo de outro modo. Afinal de contas, muita coisa mudou nos últimos 30 anos. Só para termos uma idéia, a ciência calcula que nos últimos 50 anos a humanidade teve mais desenvolvimento tecnológico do que em toda a história anterior. Nos últimos 50 anos, houve mais mudança na tecnologia do que nos 39.950 anos anteriores. E nós nos perdemos muito nisso. Vamos fazer um passeio rápido de cabeça. O que não tinha dentro das casas há 30 anos? Microondas. Quantos anos tem o microondas? Tem dez anos aqui no Brasil, em larga escala. E tem gente que não sabe usá-lo até hoje, só usando como se fosse uma espiriteira eletrônica. Para aprender como manuseá-lo tentamos recorrer ao manual. Mas quem nos ensina é o neto, que ainda nos diz: "Ah, vô, só um tonto tem que ler manual para instalar uma coisinha dessa". Ele nasceu sabendo? Não. O que mais não tinha há 30 anos? Videocassete. De quando é o videocassete? Em larga escala no Brasil é de 1983; tem portanto 15 anos e era muito caro. E logo o videocassete acaba. Algumas TVs já estão saindo com ele embutido e com o DVD - Digital Vídeo Disc. Daqui a três anos vamos ter Internet a cabo, que vai conectar direto na locadora; não vai mais ter a fita, e o filme passa direto na TV. As coisas mudaram. Muitas pessoas não sabem programar videocassete. Quando estão viajando. O que se faz quando se quer gravar alguma coisa? É só se chamar o neto e pedir: "Arruma essa porcaria para mim". Como se sabe que numa casa não tem criança? Quando tem videocassete e o relóginho fica piscando. Tem gente que joga um lençol ou uma toalha em cima para aquilo não atrapalhar o sono, porque não sabe arrumar. Tem gente que não consegue lidar com um relógio digital ou um despertador. Tem gente que diz: "Eu não quero esse negócio de rádio-relógio para despertar; gosto daquele que dá corda". Porque não sabe programar aquilo. Aí vem um moleque de 12 anos e arruma tudo.

Onde ele aprendeu? Ele não nasceu sabendo. É que ele não tem medo de aprender. Aliás, ele não tem medo da novidade, que muitos de nós temos. Ele não tem medo de errar, por isso ele erra, mas faz. O computador tem 15 anos, e muita gente ainda tem medo dele, achando que não pode usar porque não sabe como funciona. Isso não tem nexo. Muitos não sabem como é feito um livro, todas as fases da edição, como é recolhido o petróleo para fazer tinta; não entendem de gráfica e mesmo assim lêem um livro. Quando alguém lê uma revista, não sabe como é feita, não entende nada de confecção de revista, mesmo assim usa a revista.

O que mais não tinha há 30 anos, e tem hoje no nosso dia-a-dia? Secretária eletrônica, telefone celular etc. Quando eu era criança em Londrina, o telefone tinha manivela, duas baterias de carbureto atrás; girava a manivela e a telefonista atendia. Nos anos 60 não tinha mais manivela. Depois passou a ter uma coisa revolucionária, um disco. Avançou, e nos anos 80 apareceu o telefone de tecla. Hoje, um telefone com disco te irrita porque demora demais. Nos anos 90 surgiu o celular; daqui a dois anos os japoneses estarão lançando no mercado o celular no relógio, e com imagem. Nem os Jetsons tinham isso! Apareceu o freezer. Antigamente, a humanidade guardava comida salgando-a ou, como acontece ainda com muita gente do interior, em uma grande lata de banha. Pegava-se um porco inteiro, fritava ele todo e o jogava numa latona de 60 litros; ali ficava um ano. Na hora de comer, a gordura era retirada com uma concha e jogada direto na frigideira; era só comer e as artérias iam estalando de colesterol. No entanto, nessa época andávamos e nos movimentávamos mais. Hoje, com a tecnologia à disposição, tem gente que, para ir à padaria que fica a três quarteirões de casa, é capaz de tirar o carro da garagem e ir de carro. Como é que alguém desloca duas toneladas de ferro para buscar 100 gramas de pão? E chamamos isso de conforto! Um dia, meus filhos me perguntaram: "Pai, é verdade que antigamente não tinha controle remoto? É verdade que você se levantava para mudar de canal?". Lembram? Levantava e girava o seletor. O controle remoto apareceu no Brasil em 1982. As TVs no máximo tinham um fio, grudado nela e se trocava só o canal. Hoje é impossível imaginar isso. É uma perda de tempo ter que levantar para mudar um canal.

Por que todas essas colocações? Porque muita coisa mudou, e hoje de fato nem sempre aprendemos com essas mudanças. Teve coisa que não foi mudada e precisaria mudar. Mas tem um dado concreto. Hoje, mundos diferentes convivem, gerações convivem. E aí tem uma realidade bem concreta: nem sempre sabemos conviver com as outras gerações. Precisamos abrir a porta para entrar nesses mundos. E aqui dou um conselho para quem tem filho ou neto jovem: nunca, jamais, em tempo algum, jogue videogame com eles. Você vai ser humilhado, triturado, arrasado; eles vão acabar com você. Eles até podem convidá-lo e, provavelmente, você dirá: "Ah, não. Isso não é para mim". Olhem que frase. Aí eles vão insistir e você aceitará o convite. Na primeira partida, é claro, eles ganham. Ficam achando que você deixou eles ganharem porque você é avô ou avó deles. Na segunda, ganham de novo e começam a ficar desconfiados. Na terceira vez que ganham, eles têm certeza de que você é um idiota; que você com 60 anos de idade não consegue, com uma mão só, mexer num console que tem 12 botões, três chaves e um manche. Eles já começaram a jogar e você ainda está olhando o que é o botão A ou o X. Sabe o que você faz? Larga aquilo e fala: "Isso é uma porcaria. Bom era no meu tempo, que a gente jogava bolinha de gude, empinava pipa, jogava pião, que fazia subir na fieira, punha na mão". Fazia uma coisa ultra-sofisticada que era correr com uma vareta e uma rodinha para lá e para cá. Jogava bilboquê, que é uma coisa com uma "tecnologia de alto nível" : um pedaço de pau com uma bola de pau. Ou brincavam com ioiô e bambolê. É bom isso? Quantos daqui usaram bambolê e as cinturas ficaram melhores. Atenção: não estou dizendo que esses brinquedos, a pipa, o pião, o bilboquê são velharia. São coisas de um outro tempo que não conseguimos trazer para cá, e é importante trazer. Sabem por que não conseguimos trazer esses brinquedos antigos para cá? Porque muitos de nós não conseguem fazer com que as crianças tragam as coisas com que elas brincam; porque não queremos aprender o que elas fazem. Só queremos que eles saibam o que nós fizemos, e esse é o primeiro passo para não conseguirmos lidar com uma relação. Queremos que eles saibam o quão importante é o pião, o bilboquê, a boneca de pano, mas não queremos participar do mundo deles.

Por que estamos falando em globalização e qualidade de vida? Porque boa parte dessas coisas mencionadas facilitam muito a nossa existência. A tecnologia, os remédios são resultantes sim de uma nova organização do mundo e também da idéia de globalização como uma integração mundial. Outro dia me perguntaram o que era globalização, mas queriam uma explicação simples. Globalização é um sistema de integração econômica, tão forte entre os principais países, que todo mundo depende de todo o mundo. É claro que os poderosos continuam poderosos. Aliás, com a globalização do jeito que está, ficarão mais ainda. A globalização é um sistema que descarta, coloca muita gente fora. Alguém tem ouvido falar em África? Acabou, porque não importa mais. Com a globalização a África não precisa ser incluída no processo capitalista; pode ficar de fora. Só se ouve falar em África quando se fala em doença ou em guerra. Com a tecnologia se pode produzir muito e vender muito sem necessidade dos africanos. Por que o mundo está se unindo em blocos econômicos? Porque quem não fizer isso cai, perece. Aí me perguntaram: "O que eu tenho a ver com a Bolsa de Valores de Tóquio, com o dólar na Tailândia, com a taxa de desemprego na Espanha?". Hoje, da maneira como a economia está organizada, tem muito a ver; porque o sistema é de tamanha interdependência com o controle, dos que já tinham controle, que uma coisa que mexe aqui afeta o outro canto do planeta. O exemplo para se saber o que é globalização e interdependência é assim: hoje de manhã o se chefe levantou e brigou com a sogra, que mora com ele; "quebraram o pau", discutiram, e ele já saiu bravo para trabalhar. No caminho o pneu do carro furou; ele teve que trocar o pneu e depois entrou na firma. Qual foi a primeira pessoa que encontrou? Você, que, alegre e feliz, chegou para ele e falou: "Chefe, dá para eu faltar hoje à tarde porque tenho uma consulta médica?". Era tudo o que ele precisava: "Você é um safado, vive faltando, vive pedindo coisas. Por que não marcou isso nas férias?". Isso é globalização. A sogra do seu chefe é também sua sogra. Esse é o sistema de interdependência. Não tem mais sogras individuais, a sogra de um é sogra de todos. Com um grande prejuízo: muitas pessoas acham que a globalização, do modo como está colocada, é inevitável. E não é, porque hoje a globalização da economia é o privilegiamento de alguns grupos econômicos e a exclusão de uma grande massa de pessoas. Tem vantagens? Tem. Quais? Tecnologia mais avançada, produtos a nossa disposição; uma sedução perigosa, a do consumo, do produto importado, do produto rápido. Basta observar que a indústria, de que muito se fala no Brasil e move as coisas, é a automobilística, da qual boa parte da população brasileira está fora, ou não tem carro ou tem um transporte coletivo de qualidade negativa; mas é o que move.

A Globalização tem vantagens? Tem. A vantagem dela é facilitar a vida, a chegada de medicamentos, as pesquisas, e permitir um intercâmbio cultural maior. Mas ela tem uma grande desvantagem da qual muita gente ainda não se deu conta: não colocou em discussão a qualidade de vida do conjunto da humanidade. Colocou em pauta a qualidade de vida só de uma pequena parcela da humanidade; e isso não é qualidade de vida. Aliás, muitas pessoas falam que precisam de qualidade total. Costumo dizer que numa sociedade igualitária, numa humanidade justa, uma pessoa só terá qualidade se tiver quantidade total. Sem quantidade total não existe qualidade. Se não tiver quantidade atendida na área de saúde, não tem qualidade. Não se pode falar em qualidade da educação se todos não estiverem freqüentando as escolas. Não se pode falar em qualidade de habitação se todas as pessoas ainda não estiverem morando adequadamente.

O que é qualidade de vida no final do século XX? O século XX nos trouxe algumas coisas muito interessantes. A maior delas talvez seja, neste final de século, a revolta dos idosos. É mais do que revolta, é uma rebelião dos idosos que, de repente, ou não tão de repente, decidiram se manifestar: "Nós não somos descartáveis". Isso é muito interessante. Tem um princípio, uma frase, que vigora na nossa sociedade, que é um absurdo: ninguém é insubstituível. Isso é um absurdo humano. Ninguém é substituível. O que é substituível é o que eu faço, porque isso outro pode fazer. A função de professor pode ser feita por outro. Cada ser humano, cada homem e cada mulher representa um dos arranjos da vida, desse maravilhoso mistério que é a vida, e é insubstituível. Querem ver um exemplo? O assassinato do Itzak Rabin, o primeiro-ministro de Israel. Uma das cenas que mais me emocionou foi a do enterro. Todos os governantes do mundo estavam lá. A última pessoa a falar foi a neta do Itzak Rabin. Ela subiu ao palanque e disse: "Aqui já falaram todos os grandes homens do mundo, os grandes presidentes, os grandes reis, os grandes governantes, os grandes líderes". Ela apontava para o caixão: "Já falaram sobre o grande líder militar Itzak Rabin; já falaram sobre o grande estrategista político Itzak Rabin; já falaram sobre o grande sionista Itzak Rabin; já falaram sobre o grande primeiro-ministro Itzak Rabin. Agora eu queria pedir desculpas a todos para falar um pouco sobre o meu avô Itzak Rabin". Aí ela falou sobre o seu avô. O avô é insubstituível. O primeiro-ministro é substituível, tanto que tem outro. O líder político é substituível, tanto que tem outro. O líder militar é substituível, tanto que tem outro. O Itzak Rabin é insubstituível, assim como cada um nós é insubstituível.

Precisamos pensar isso inclusive a partir de uma referência. Há pessoas que dizem: "Eu já estou muito velho para essas coisas; não dá para ficar pensando em convivência, em mundos". Outra frase, falsa e circulando no dia-a-dia das pessoas, é a que diz que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica. Isso é um absurdo, não faz sentido filosófico. Para que alguém quanto mais vivesse mais velho ficasse teria que ter nascido pronto e vir se gastando. Isso não acontece com gente; acontece com sapato, com fogão, com geladeira. Sapato, fogão e geladeira vêm prontos e vão se gastando. Humanos nascem não-prontos e vão se fazendo. Eu, Mário Sérgio, não nasci pronto e vim me gastando. Sou em 1999 a minha mais nova edição, revista, um pouco ampliada mas a minha mais nova edição. O Mário Sérgio que sou hoje não é aquele que nasceu pronto e veio gastando. Sou em 1999 um Mário Sérgio inédito, que nunca existiu. Não sou totalmente original, porque muito do que sou eu trouxe; mas não sou o mesmo de antes.

A maior dificuldade para as pessoas pensarem em qualidade de vida é acharem que têm que ser como sempre foram. A coisa mais difícil na vida é mudar um ser humano. Sabem por que? Porque mudar exige coragem para se desequilibrar. Um exemplo concreto: estou aqui agora em pé, estável, seguro, equilibrado e parado. Se eu quiser mudar de lugar, ou se precisar mudar de lugar, a primeira coisa que tenho que fazer é tirar uma perna do chão e ficar desequilibrado por alguns segundos. Aí ponho a perna no chão e levanto a outra. O ato de andar é um ato de correr o risco do desequilíbrio. Tanto que nós não nascemos sabendo andar, tivemos que ser ensinados. Como se ensina um filho ou um neto a andar? O pai de um lado, a mãe do outro, o avô de um lado, a avó do outro, largam a criança e ela vai. Qual é o lugar mais cômodo? O berço. Mas o berço é um lugarzinho do mundo; o berço não é a vida. Temos muita dificuldade para mudar. Temos tanta dificuldade que somos apegados às coisas, porque é isso que nos dá segurança. Exemplo: tem gente que come no mesmo lugar à mesa há 40, 50 anos; dorme do mesmo lado da cama. Tem gente que viaja, vai para Rondônia chega lá e na hora de almoçar procura uma comida idêntica a que comeria na cidade onde mora. Não é interessante viver a novidade, experimentar, comer alguma coisa diferente? Um sujeito entra num restaurante, em Belém do Pará por exemplo, e em vez de experimentar alguma coisa com cupuaçu ou com tucupi, pede um filé com fritas, porque aquilo dá segurança para ele. Não dá segurança, aquilo o imobiliza.

Ora, o que é qualidade de vida? Qualidade de vida não é a qualidade individual para um, ou para outro. Qualidade de vida é aquela que parte de uma idéia. Qualidade de vida é a idéia da qualidade coletiva da vida. Tem uma frase que diz: a minha liberdade acaba quando começa a do outro. Isso é um absurdo. Ser humano é ser junto. A minha liberdade acaba quando acaba a do outro. Nenhum ser humano é livre. Se algum ser humano não é livre da fome, ninguém é livre da fome. Se algum ser humano não é livre da falta de remédio, ninguém é livre da falta de remédio. Se alguma mulher não for livre da opressão, nenhum homem e nenhuma mulher são livres. Se alguma criança não for livre da falta de escola, da falta de lazer, da falta de amor, ninguém é livre. A minha liberdade não acaba quando começa a do outro. A minha liberdade acaba quando acaba a do outro. Se algum ser humano não for livre, ninguém é livre. Se algum idoso não for livre, nenhuma criança é livre. Se alguma criança não for livre da violência, da falta de lar, ninguém é livre. Ser humano, repito, é ser junto.

Vou contar uma historinha rápida. Talvez, para entender melhor a nossa realidade, precisemos do olhar do outro, de alguém que não é daqui. Conto sempre essa história; gosto de contá-la. Imaginem que nós estejamos agora num local como esta belíssima Colônia de Férias do SESC, que é uma das entidades neste País que auxilia a rebelião dos idosos, porque a entende como uma luta correta de combater o bom combate, como diz uma das religiões. Estamos nesse campo, e de repente atrás de nós baixa uma nave do planeta Marte. Saem de lá dois marcianos; vêm a nós, nos olham e perguntam: "Onde estamos?". Aí dizemos: "Vocês estão na Terra, vizinha de vocês no sistema solar". Eles falam: "Sim, mas na Terra, onde estamos?". Aí começamos a descrever o nosso país e dizemos: "Este é um país chamado Brasil. É o quinto país deste planeta em tamanho; menor do que a Rússia, a China, o Canadá e os Estados Unidos, mas é o primeiro em terras aproveitáveis. Tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados e apenas 160 milhões de habitantes. Extremamente favorecido, portanto, na relação demográfica. Tem 8 mil quilômetros de costa marítima; tem as duas maiores reservas de biodiversidade do planeta Terra, que são a Amazônia e a Mata Atlântica; tem as maiores reservas de minério, ainda não exploradas, no planeta Terra; tem as maiores bacias hidrográficas para a geração de vida, de energia e de transporte; tem as maiores reservas de petróleo para consumo próprio que, se parassem hoje no planeta, dariam para 30 anos ainda". Já imaginaram o olhar dos marcianos? Onde eles imaginariam ter baixado a sua nave? Num paraíso! E aí a gente continua descrevendo para os marcianos: "Este é um país que não tem terremoto forte, não tem vulcão, não tem maremoto, não tem ciclone, não tem deserto, não tem nevasca, não tem tufão, não tem geleira, não tem escola, não tem hospital, não tem comida". Os marcianos olhariam para nós e provavelmente abririam os 14 olhos, que cada um deles deve ter, e nos perguntariam: "Como é possível? Como aqui pode ser desse jeito?". Se a gente contasse para eles que no nosso país diariamente 20 milhões de pessoas passam fome, sendo que metade dos que passam fome, 10 milhões, estão na produção de alimentos, eles não compreenderiam. E nós compreendemos? Se compreendemos, o que fazemos? Se não compreendemos, por que não compreendemos? Como é possível? Talvez a nossa resposta para os marcianos fosse: "É desse jeito".

Não precisamos pegar o olhar dos marcianos; podemos pegar uma outra sociedade para nos olhar. Uma história real, verdadeira: os índios. Em 1974, dois caciques da nação Xavante vieram visitar a cidade de São Paulo. Na época, os xavantes não usavam o dinheiro como meio de troca. Para eles qualidade de vida era comida porque eles não costumavam acumular comida. Imaginem o impacto que tiveram quando sobrevoaram a cidade de avião. É o impacto que nós temos ao olhar a Amazônia de cima. Foram dormir num hotel na Vila Clementino, um bairro na cidade de São Paulo; e no dia seguinte foram levados a passear. Onde levaríamos dois caciques da nação xavante para passear? Nem ao Ibirapuera, nem ao zoológico, é claro! Levaríamos para conhecer uma novidade: um shopping. Já havia dois em São Paulo naquela época. Hoje tem dezenas. Foram levados à avenida Paulista com aquelas catedrais financeiras imensas; para andar de metrô, que tinha acabado de ser inaugurado; foram levados também num lugar belíssimo no centro de São Paulo, o Mercado Municipal, uma espécie de Ceasa ou Ceagesp. É uma belíssima construção, obra do Ramos de Azevedo, o mesmo arquiteto que projetou o Teatro Municipal. Foram levados lá porque tinha uma coisa que a gente queria que eles vissem: comida acumulada. Imaginem a cena: os dois caciques entraram; deram alguns passos e ficaram boquiabertos. O que eles viram? Pilhas de alface, de cenoura, de laranja, de tomate. Ficaram com o olhar que cada um de nós ficaria entrasse no cofre de um banco, porque para nós o dinheiro é meio de qualidade de vida. Começaram a andar, a andar... até que, de repente, um deles viu uma coisa que nenhum de nós veria: notaram um menino negro, pobre (nós sabemos que era pobre pela roupa; eles não saberiam), guardando restos de verduras num saquinho. Nenhum de nós notaria isso, porque isso para nós é normal; mas eles viram e quiseram saber porque o garoto estava pegando essa comida do chão. Alguém explicou: "Porque ele precisa comer". Ficaram calados durante algum tempo, até que um deles disse: "Não entendi. Por que ele está pegando essa comida podre se aqui tem pilhas de comida boa?". Alguém tentou explicar: "É que para pegar comida das pilhas precisa de dinheiro". "E ele não tem dinheiro?" perguntou o cacique. "Não, ele não tem dinheiro". "Por que ele não tem dinheiro? insistiu". Onde o cacique estava mexendo? Na nossa base de qualidade de vida, no que nós entendemos como qualidade de vida. Aí falamos: "Ele não tem dinheiro porque é criança". "Ah, e o pai dele tem?". "Não, o pai dele não tem". "Então não entendi. Por que você, que é grande, tem dinheiro e o pai dele, que é grande, não tem?". A única resposta possível para o cacique, naquele momento, foi: "Sabe o que é? É que aqui é assim". Aí eles disseram uma frase inesquecível: "Vamos embora". E foram embora de São Paulo. Não conseguiram compreender essa coisa tão banal, que é uma criança com fome ter que comer uma comida podre, mesmo que esteja em frente a uma comida boa. Não conseguiram entender. Por isso eles são selvagens, não são civilizados. Talvez compreenderiam se tivessem nascido em muitas das nossas famílias, freqüentado muitas das nossas escolas, ido a muitas das nossas igrejas, assistido a muitas das nossas TVs. Aí Talvez um dia, ao passar frente a uma criança pegando comida estragada para poder se alimentar, eles achassem normal. Aqui é assim.

Existe globalização, mas ela não é fatal. Nós só podemos aceitar a idéia de globalização quando ela puder favorecer a vida coletiva. Não adianta dizer que aqui é assim. E a globalização? Ela é assim, não tem jeito, somos vítimas, sempre vai ter desemprego? Não, não é verdade. Nós podemos ser diferentes. Queria encaminhar exatamente esse raciocínio: ser humano é ser capaz de dizer não à ditadura dos fatos; ser humano é ser capaz de recusar aquilo que parece impossível de ser transformado; ser humano é ser capaz de se rebelar contra aquilo que parece não ter saída. Qual é a primeira palavra que um ser humano aprende a dizer na vida? Não é mamãe. Mamãe é a Segunda, porque a mãe treina, e papai é a terceira, porque a mãe fica com dor na consciência e treina também a criança. Mas a primeira palavra que um ser humano aprende a falar e entender na vida é "não". Alguém vai com a mamadeira e ele: "Não". Força e ele cospe. Se alguém quer levá-lo, e ele não quer ir, esperneia, berra. Ele é livre. Só quem pode dizer "não", pode dizer "sim". Se um gato encostar a pata numa tomada e levar um choque, nunca mais põe a pata nessa tomada. Um ser humano, não. Uma criança vem, alguém fala: "Cuidado com a tomada, não põe o dedinho". Ela põe o dedo e toma um choque. Alguém fala: "Está vendo? Faz dodói". No dia seguinte, ela põe o dedo de novo. Coloca-se um protetor de tomada, ela arranca e põe o dedo outra vez. Põe-se uma fita crepe, ela puxa e coloca o dedo outra vez. Aquele ditado, que diz que gato escaldado tem medo de água fria, vale para gato; não vale para humano. Ser humano, é ser capaz de ter utopia. Ser humano é ser capaz de recusar aquilo que parece não ter alternativa. Ser humano é ser capaz de sonhar.

Como diz muito bem o teólogo Leonardo Boff: é a utopia que impede o absurdo de tomar conta da História. É um absurdo crianças não terem casa, família, comida e lazer. É um absurdo homens e mulheres não terem trabalho, hospital, casa e saneamento. É um absurdo idosos não terem a proteção mínima numa sociedade que deles tanto exauriu. É a utopia que impede esse absurdo de tomar conta da História. E a prova da utopia está nesta Assembléia, nessas centenas de pessoas que vieram de todos os lugares, dos 8,5 milhões de quilômetros que temos, para dizer não. Não ao massacre da dignidade da nossa vida; não a uma globalização que exclui e humilha; não a uma sociedade que não protege os seus; não a uma situação em que se imagina que o idoso não tem mais utilidade; não a uma sociedade que acha que as crianças podem ser massacradas pelo abandono, pela falta de escola, pela falta de comida. Esta Assembléia Nacional é uma utopia; e é disso que a humanidade vive. É isso que faz com que o mundo seja diferente. Cuidado para não cair na armadilha de que utopia é uma coisa negativa e impossível. A palavra utopia, na origem, não significa lugar nenhum. A palavra utopia significa ainda não. Este encontro fortalece a utopia. Qual utopia? A utopia apoiada em uma idéia pequenininha: a idéia de que fomos feitos para ser felizes.

Concluo lembrando que, de vez em quando, nós desanimamos, cansamos. Vamos para encontros, para assembléias, aqui, ali; lutamos e as coisas, muitas vezes, não andam. Mas temos que sempre ter esperança; só que a esperança do verbo esperançar. Muita gente tem esperança do verbo esperar; e esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. "Eu espero que resolvam", "eu espero que dê certo"; "eu espero que o governo faça". Isso não é esperança, é espera. Esperançar é ir atrás; é buscar; é arrancar. Muitos dizem: "Mas eu não consigo sozinho". Claro que não. Tem gente que olha a situação do jeito que está e diz: "Do jeito que a coisa está, se ficar o bicho come, se correr o bicho pega". Falta a terceira parte. É essa terceira parte que define a vida humana. De fato, se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Mas, se juntar, o bicho foge.

Mas eu também desanimo, e concluo exatamente com isso. Sempre conto essa história. Quando quero desanimar, lembro de uma pessoa que conheci em 1991, uma das pessoas mais importantes da História. Em 1991, tive a honra de conhecer Nelson Mandela pessoalmente, e de conversar com ele. Quando encontrei com Nelson Mandela, aquele negro bonito de 70 anos de idade, cabelos brancos, alto, digno, e quando apertei a mão de Nelson Mandela, as minhas pernas bambearam. Sabem por que? Porque eu não estava apertando a mão do homem; estava apertando a mão da esperança. Mandela ficou 27 anos preso, e18 anos numa solidária, em nome de uma idéia: as pessoas não são diferentes por causa da cor da pele. Ficou vinte e sete anos preso, e não desistiu. Talvez tenham dito a ele: "Nelson, faz cinco anos que você está preso, deixa disso, assina lá os papéis, uma hora vai acabar o Apartheid, a segregação racial". Ele não desistiu. "Nelson, faz 15 anos que você está preso, larga disso, nós não vamos vencer. Eles são os donos das leis, os donos das armas, os donos do dinheiro". Ele não desistiu. "Nelson, faz 25 anos que você está preso, um quarto de século. Espera, outros virão, uma hora acaba o Apartheid. Eles são os donos da política, os donos das fábricas, os donos dos juízes". E ele não desistiu; ficou 27 anos preso, e hoje é o Presidente da África do Sul. Começou a destruição de um dos maiores nojos da história humana, o da segregação e discriminação de qualquer tipo, a discriminação racial, religiosa, política, de etnia.

Qual é a nossa tarefa na vida? Temos uma tarefa na vida: transformar em verbo as pessoas que a gente acha que encarnam a esperança. Nossa tarefa na vida é "mandelar": eu mandelo, tu mandelas, ele mandela, nós mandelamos; eu Jesus Cristo, tu Jesus Cristas, ele Jesus Crista; eu Sidarta Gautama, tu Sidarta Gautamas, ele Sidarta Gautama; eu Martinho Lutero, tu Martinho Luteras, ele Martinho Lutera; eu madre Teresa de Calcuteio, tu madre Teresa de Calcuteias, ela madre Teresa de Calcuteia.

Transformar em verbo e não desistir por uma razão. Aos domingos tem visita na penitenciária em São Paulo. Pavilhão 11, marginais, assassinos, estupradores. É dia de visita. Quero que eles fiquem lá para sempre. Pena de morte não, porque sou contrário, mas quero que eles fiquem lá. Há fila na hora da visita ao pior preso que está lá dentro. Sabe o que vai acontecer amanhã à tarde? O pai já não vai mais visitar, os filhos desistiram, os amigos desapareceram há anos, a mulher já não quer nem saber, e os parentes também não vão. Sabem quem está lá na fila, às três horas da tarde, para ser revistada e com uma sacolinha na mão? A mãe. Quem ama não desisti. Se alguém desistiu de algo, é porque deixou de amar. Sabem quando um preso é perigoso? Quando nem a mãe vai visitá-lo mais. Aliás, em rebelião essa é uma das técnicas de controle; identificam os presos para saber se eles têm mãe, e se elas vão visitá-los. Se um preso tem mãe e ela não vai visitá-lo, ele não tem mais nada a perder na vida. E não é só porque é a mãe dele; é porque ele não tem a última ligação que tinha com a humanidade, ou seja, o fato de que alguém não desistiu dele. Quem ama não desiste, e nós não desistiremos. Vamos mandelar, esperançar e fazer.

Concluo deixando duas idéias. Uma é a do grande médico europeu Albert Schweitzer. Jovem recém-formado, teria uma brilhante carreira na Europa, mas foi para a África, onde ficou 50 anos trabalhando com pessoas necessitadas. Schweitzer ( pensando sobre o fato de que a verdadeira tragédia não é quando um homem morre) disse o seguinte: "A tragédia do homem é o que morre dentro dele, enquanto ele ainda está vivo". E o que não pode morrer? A esperança, a recusa à ditadura dos fatos. Não pode morrer a rebelião contra aquilo que parece não ter alternativa. Por que está acontecendo esta assembléia? Porque as pessoas presentes têm um documento que vai ser lido e aprovado. Porque aqui estão homens e mulheres de muitas idades que não desistiram da vida e da sacralidade da vida; homens e mulheres que acreditam concretamente que aquilo que alguém tem é o presente que Deus deu para esse alguém. Aquilo que alguém faz, com o que tem, é o presente que dá a Deus. Cada homem e cada mulher recebeu a vida como um dom sagrado; e pode devolver esse dom lutando pela dignidade da vida de todos e de todas.

Não vamos desistir, porque amamos a vida; a vida de todos, a vida coletiva como algo sagrado. Termino com um ditado chinês. Quero deixá-lo como mensagem. Isso é importante, principalmente quando os marcianos ou os xavantes voltarem, para podermos dizer a eles que aqui não é mais assim. O ditado diz: "Dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um pão; quando se encontram, se eles trocarem os pães, cada um vai embora com um pão. Mas, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um com uma idéia; quando se encontram, se eles trocarem as idéias, cada um vai embora com duas idéias". É o que todos nós estamos fazendo neste encontro: trocar idéias para que todos tenham pão. Essa é a função da vida e a nossa função na vida...

Mário Sérgio Cortella é Filósofo e Doutor em Educação, Docente do Departamento de
Teologia e Ciências da Religião e do Pós-Graduação em Educação (Currículo) da PUC-SP.

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