sexta-feira, setembro 05, 2008

Vira-latas compensatórios

Vira-latas COMPENSATÓRIOS

MITO SOBRE INCAPACIDADE DO BRASILEIRO DE SUPORTAR PRESSÃO EM MOMENTOS DECISIVOS DECORRE DE INVEJA E BAIXA AUTO-ESTIMA


A inveja é também o que leva a desqualificar o triunfo: "Foi só por um centímetro que Maurren Maggi ganhou a medalha"



RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

O erro que custou a Diego Hypólito uma medalha tida por todos como certa reativou um fantasma recorrente: a crença na vocação do brasileiro para fracassar nos momentos decisivos. Por alguma característica da alma nacional, não seríamos capazes de suportar tal pressão, o que se evidenciaria com particular clareza nas finais esportivas em que somos considerados favoritos.
Daí a expectativa que cercava as "meninas do vôlei": por terem perdido algumas partidas finais, elas haviam sido tachadas de "amarelonas", "pipoqueiras" e outras gentilezas do mesmo teor.
Daí também a atitude condescendente para com as futebolistas que, repetindo Atenas, "deixaram escapar o ouro" e os muxoxos com que foram recebidas as medalhas de prata e bronze em outras modalidades.
"Não temos vocação para perder", exclamou Ronaldinho após a derrota para a Argentina. "Bronze envergonhado", dizia a manchete de "O Estado de S. Paulo" no dia seguinte.
Por que tamanha tolice ressurge periodicamente "nos lares e nos bares", na televisão e na imprensa? Eu mesmo recebi telefonemas de jornalistas interessados em ouvir o que um psicanalista teria a dizer sobre a insidiosa inibição supostamente responsável pelo "fracasso do Brasil na Olimpíada", como formulou um deles.
O fato de a pergunta ser descabida -é óbvio que não existe nada disso- não nos exime de investigar por quais motivos ela pode parecer legítima.
É certo que Freud, num pequeno artigo de 1916 intitulado "Vários Tipos de Caráter Descobertos no Trabalho Psicanalítico", falou dos que "fracassam ao triunfar", e atribuiu o fenômeno aos sentimentos de culpa associados ao complexo de Édipo: colher um êxito ardentemente desejado é para certas pessoas equivalente a uma agressão contra o pai ou a mãe -e a consciência moral, opondo-se energicamente a isso, interfere para as impedir de atingir o alvo.
Mas nada sugere que tal seja o caso das jogadoras de futebol, dos competidores em vôlei de praia e dos demais atletas -brasileiros e de outras nacionalidades- que conquistaram medalhas de prata e de bronze, para não falar dos que não conseguiram subir ao pódio.
É a obsessão nacional pelo "ouro", e a atitude frente à vitória ou à derrota que nela transparece, que merecem um pouco de reflexão.

Auto-engano
"Não estamos acostumados a perder", exclamou um desconsolado Ronaldinho após a derrota para os argentinos. "Não pensamos em prata: nosso objetivo é o ouro. Mas ainda não ganhamos nada", ecoou Marta ao terminar a semifinal contra as alemãs.
Frases como essas sugerem que muitos atletas compartilham a convicção de que é possível ganhar sempre, que o segundo lugar é apenas um "prêmio de consolação" e que o bronze não tem valor nenhum.
O que neles era latente se torna explícito na postura do presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira -não haveria prêmios monetários caso as seleções de futebol voltassem sem os respectivos títulos, o que acabou acontecendo.
Querendo isentar-se da responsabilidade pelas condições precárias em que boa parte dos esportistas teve de se preparar, outros dirigentes recorreram à surrada fórmula do "bronze que vale ouro", versão cabocla do "jogo do contente" inventado por Poliana.
Se a platéia não as aceitasse, porém, ninguém se lembraria de invocar tais desculpas esfarrapadas, e é a cumplicidade dela na operação de mascaramento da realidade que chama a atenção.
Uma das razões dessa atitude é sem dúvida de natureza projetiva: os esportistas carregam nos ombros a responsabilidade de "representar a nação".
Vencendo, inflam nossa auto-estima e, fazendo-nos crer que somos tão bons quanto os melhores, nos proporcionam uma satisfação narcísica rala, mas de certo modo eficaz; se perderem, confirmam a crença na pouca valia dos nossos conterrâneos e, portanto, de nós mesmos.
O segundo motivo para desprezar os "perdedores" é a inveja, pois jamais chegaremos a realizar nada parecido com as proezas de que são capazes esses jovens. Como a inveja não é um sentimento nobre, negamo-la atribuindo o "fracasso" não às circunstâncias específicas que o provocaram, mas a algo cuja função é nos tornar mais uma vez semelhantes aos que, no fundo, não podemos deixar de admirar -mas agora pelo avesso: se a incapacidade de transformar o favoritismo em realizações é uma trágica fatalidade do caráter brasileiro, então os atletas não podiam mesmo conquistar a almejada vitória.
A inveja é também o que leva a desqualificar o triunfo efetivamente obtido -"foi só por um centímetro que Maurren Maggi ganhou aquela medalha" [ouro no no salto em distância].
O absurdo dessa afirmação fica patente se lembrarmos que, nesse nível altíssimo de desempenho, a diferença entre vencedores e vencidos é sempre diminuta -alguns centésimos de segundo numa das vitórias de Michael Phelps, entre o terceiro e o quarto lugares no revezamento masculino 4 x 100 m e em outros casos relatados pela imprensa.
Será que os vencedores dessas provas são realmente tão superiores aos outros participantes? Excetuando alguns casos extraordinários, como os de Usain Bolt [Jamaica, atletismo] e Michael Phelps, isso não é verdade.
A prova? Em competições anteriores, foram vitoriosos os derrotados de agora e vice-versa: a seleção feminina de futebol perdeu para as alemãs o campeonato mundial de 2006, mas ganhou delas em Pequim; o time masculino de vôlei venceu os italianos, mas havia perdido para eles em 2004; Tatiana Lebedeva [Rússia, salto em distância] foi campeã na Olimpíada de Atenas e vice na da China; e assim por diante.

Virtù e fortuna
Para o esporte vale o que escreveu Maquiavel a propósito da política: o sucesso não depende apenas da "virtù", mas também da "fortuna".
"Virtù" é o que o combatente traz consigo: seu preparo técnico, seu conhecimento do terreno e do adversário, a qualidade de suas armas. "Fortuna" é o fator imprevisível que favorece um ou outro -a lama no campo de batalha, o erro do oponente, a vara que faltava no estojo de Fabiana Murer.
A contusão de Liu Xiang [China, atletismo] é obra da "fortuna", assim como o imbecil que agarrou Valdemar Cordeiro na maratona de 2004 ou a falha de Diego Hypólito no instante final.
"Faço este movimento desde os 12 anos, nunca errei", lamentava-se ele ao rever o filme da prova. Até que um dia...
Na mesma entrevista, o ginasta reconheceu onde estava sua fraqueza: "Creio que poderia não ter criado tanta expectativa quanto ao ouro". Ou seja, além da pressão da torcida, o próprio atleta acaba se persuadindo da obrigação de vencer, e isso o perturba no momento decisivo.
Inconformada com o resultado da partida final, o rosto molhado de lágrimas, a capitã Marta se perguntava: "Meu Deus, o que foi que eu fiz de errado?". A resposta é: nada. O que determinou o 1 a 0 foi apenas que naquele dia as americanas jogaram mais que as brasileiras.
Por outro lado, a "virtù" contribuiu, e muito, para alguns bons resultados em Pequim. Entre outros exemplos, ressalto o trabalho psicológico com a equipe feminina de vôlei, o cuidado das velejadoras Fernanda Oliveira e Isabel Swan em estudar as condições do lugar em que iriam competir, a equipe multiprofissional de que se cercou a lutadora Natália Falavigna no taekwondo, o apoio dado pela família a César Cielo, a determinação de Ketleyn Quadros e de Maurren Maggi.
O que esta escreveu na carta ao seu técnico -"dei duro e estou preparada"- não garantia a vitória, mas sem isso ela jamais chegaria.
Contraprova: a "pátria de chuteiras", com muita empáfia e pouco treino, tinha chances remotas contra uma Argentina que se preparou melhor -e merecidamente levou o título.
É tempo de deixarmos de lado o que Nelson Rodrigues chamava de "complexo de vira-lata". Ao invocar absurdos como a suposta incapacidade nacional para manter a cabeça fria na hora H, não apenas estamos faltando com a verdade -desde a invenção dos esportes modernos, inúmeros brasileiros venceram finais com tranqüilidade, assim como outros foram prejudicados pelo nervosismo ou pela arrogância- mas ainda apequenamos o valor de resultados conseguidos com esforço hercúleo, independentemente do metal das medalhas -ou da ausência delas.
Acaso aquelas duas famosas polegadas tornavam Martha Rocha menos bonita? Que o diga quem se lembrar do nome da Miss Universo de 1954.


RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .

Texto do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 31 de agosto de 2008.


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