quinta-feira, novembro 13, 2008

Insônia

Insônia

CANSEI da filosofia. Essa é uma frase comum de se ouvir.
Denota um certo cansaço chique, quase blasé. No meu caso é uma mentira porque não sei fazer outra coisa além da filosofia. A opção pela filosofia não foi fruto de nenhuma virtude especial (afora a disciplina e o gosto da leitura), mas sim fruto da incapacidade de fazer qualquer outra coisa. Eu seria um médico preguiçoso.
Mas, por outro lado, essa frase descreve uma certa verdade. Explico-me: interessa-me mais falar com pessoas reais do que discutir "questões filosóficas".
Há uma certa impostura na filosofia pura. Quanto mais impura e suja, mais a filosofia me interessa. Quanto mais suja, mais precisa ela é. Suja como as pessoas. Isso não quer dizer que eu esteja interessado em filosofia como forma de fazer a vida melhor. Deixo isso para os charlatães da alma, que mentem por aí. Cuidado com eles, caro leitor.
Tampouco considero os seres humanos dignos em si mesmos. O pressuposto da dignidade "natural" do ser humano vale em guerras e misérias sociais (assim como uma ficção que combate a crueldade de que somos capazes), mas no pensamento tal pressuposto é infantil como a Cinderela. Muitas vezes somos apenas bestas banais. A paixão pela igualdade nos torna ridículos. Não somos todos iguais, alguns de nós são piores do que os outros.
Há algo no desespero comum que me comove. O medo nos humaniza, exatamente porque nos traz para perto da fraqueza que nos habita. Cansei do uso unicamente "profissional" da filosofia. Antes de mim, grandes filósofos disseram algo semelhante, por caminhos distintos: Montaigne, Pascal, Schopenhauer, Nietzsche, Cioran.
Muitas vezes penso que a literatura ou a crônica efêmera podem ser mais filosóficas do que a filosofia do "rigor". Por exemplo, o conhecimento exigido num comentário sobre, digamos, a segunda edição alemã da "Crítica da Razão Pura", de Kant, me parece excessivamente puro. Essencial, sem dúvida, na formação. Risco inevitável de cegueira sofisticada para o filósofo adulto.
Afinal de contas, a idéia de que possamos fundamentar a moral na razão sempre me pareceu uma brincadeira de crianças inteligentes. Ou de orgulhosos que tremem diante do fracasso da filosofia. A razão corre atrás da vida, mas nunca a alcança.
A mania da filosofia de salvar o mundo desde o século 18 é uma praga. Quando o pensamento se faz engenharia da vida, sempre fica idiota porque tem de mentir. Ou se transforma em assassino sistemático, como prova a história contemporânea.
Melhor tomar remédios, ir aos consultórios das psicólogas, ao confessionário ou aos centros espíritas e terreiros de candomblé. Há uma falta triste de bons sacerdotes.
E as ciências sociais, caro leitor? Essas foram parceiras irmãs de toda forma de violência ao longo do século 20 quando decidiram salvar o mundo. Sua objetividade já foi tão cruel quanto a fissura do átomo, a publicidade racista ou a fabricação de gazes letais pela química industrial. Seu olhar sobre as pessoas é inevitavelmente violento porque elas só vêm grandes quantidades. Sua pretensa santidade é sempre perigosa.
A cegueira das ciências sociais já foi objeto de reflexão por parte de sociólogos como Norbert Elias e Zygmunt Bauman. No Holocausto, o marketing e a sociologia tiveram um importante papel científico. Eles trabalharam na construção dos campos de concentração com sua precisão na análise dos comportamentos que geram medo e resignação.
Como diz a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís no seu maravilhoso livro "Contemplação Carinhosa da Angústia", hoje em dia todos querem agradar e salvar-nos: o professor, o metafísico, o artista, todos querem agradar. Como crianças, querem nossa atenção. Mas a criança quer atrair a atenção dos adultos porque no fundo sofre do terrível trauma da fragilidade de sua condição de criança. Devemos abraçar as crianças, mas não roubar o medo delas.
Aliás, a fragilidade das crianças deveria nos ensinar qual é nosso lugar no mundo. Somos obrigados a agir sem certezas, amar sem sermos sempre correspondidos, trabalhar sem justiça, responder sem saber as respostas. Enquanto elas dormem, ficamos acordados, atentos aos seus pesadelos. A contemplação de pesadelos é uma atividade insone. A boa filosofia é feita da mesma matéria da insônia.

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo, de 27 de outubro de 2008.


Marcadores: , ,