Wikipédia
Ensaio - Noam Cohen
A Wikipédia e a urbanidade
Em seus sete anos de existência, a Wikipédia tornou-se um dos dez principais sites globais. Ela tem muito menos visitantes que o Google, mas está próxima da Amazon e do eBay. Centenas de milhares de pessoas —algumas anônimas, algumas usando pseudônimos, outras que são quem dizem ser— se uniram até agora para colaborar.
Mas ultimamente os contribuintes da Wikipédia têm-se perguntado em voz alta se estão ficando sem assunto. Artigos óbvios, como "China" e "Moisés", foram reescritos centenas de vezes. Há mais de 2,8 milhões de artigos somente na versão em inglês da Wikipédia. Em março, a enciclopédia ganhou sua primeira memória séria, "The Wikipedia Revolution", por Andrew Lih, um dos primeiros wikipedianos, que escreve sobre como "um bando de desconhecidos criou a maior enciclopédia do mundo".
Mas essas preocupações parecem deslocadas —a Wikipédia não pode ser concluída, assim como a cidade de Nova York. Na verdade, com seus milhões de visitantes e centenas de milhares de voluntários, um número de artigos e línguas faladas sempre em expansão, a Wikipédia talvez seja a coisa mais próxima de uma metrópole on-line.
Como uma cidade, a Wikipédia é maior que a soma de suas partes; por exemplo, os encontros aleatórios lá são muitas vezes mais interessantes que os próprios artigos. A busca por informação parece um passeio por um quarteirão densamente construído de uma antiga capital. Os artigos da Wikipédia podem mandá-lo por caminhos improváveis. Há links que o dirigem para o mesmo artigo em outra língua, o que dá esclarecimentos sobre uma cultura. Passe algum tempo na Wikipédia alemã e você encontrará músicos de jazz com artigos mais longos do que os originais em inglês; há também áreas estranhas de profundo interesse, como "pecherei", a extração de resinas de árvores e as 15 ferramentas diferentes necessárias para esse trabalho.
Em segundo, no final da maioria dos artigos há categorias —bairros improvisados ou organizações cívicas, que dão unidade à enciclopédia virtual.
Até recentemente, a Wikipédia operava com um orçamento de menos de US$ 3 milhões por ano. Hoje ainda são apenas US$ 7 milhões, tudo em doações.
Em "The City in History" (A cidade na história), Lewis Mumford explica como as cidades passaram a existir: "Nos primeiros aglomerados ao redor de um túmulo ou de um símbolo pintado, uma grande pedra ou uma caverna sagrada, temos o início de uma série de instituições cívicas que vão do templo ao observatório astronômico, do teatro à universidade".
Na Wikipédia, um único artigo, por exemplo, sobre os atentados em Mumbai no ano passado, pode ter mais de mil colaboradores. Suas discussões sobre a melhor maneira de escrever o artigo podem ocupar páginas, todas conduzidas por um dos princípios fundamentais da Wikipédia: "Suponha a boa-fé".
A Wikipédia incentiva os colaboradores a imitar a civilidade básica, a confiança, a aceitação cultural e a auto-organização conhecidas de qualquer morador de uma cidade. Por que as pessoas não atacam umas às outras no caminho para casa? Por que elas fazem fila no banco? A polícia pode ser uma resposta óbvia. Mas isso não leva em conta o pacto entre moradores. Desde sua criação, as cidades tiveram de aceitar estranhos, e os habitantes aprendem a ser sutilmente acomodados.
A maravilha da Wikipédia —e das cidades— é que todo o intercâmbio e o estímulo espiritual não tornam a vida lá impossível. Ao contrário, são exatamente o que torna a vida possível.
Como as cidades, a Wikipédia também provoca profunda inquietação. Assim como o mundo teve muitos criacionistas, sociedades de abstinência e ruralistas, há uma classe profissional de céticos da Wikipédia. Eles também têm um comportamento seriamente depravado a denunciar: a Wikipédia constitui um mundo sem especialistas! Um mundo sem canais de notícias comerciais! Um mundo sem uma distinção entre o trivial e o profundo! Um mundo repleto de fatos, mas carente de julgamento!
Tudo isso é vestígio das acusações feitas contra as cidades: elas não produzem nada! Tudo o que fazem é fofoca! Elas não sabem o que é trabalho de verdade!
A discussão representa um verdadeiro choque de ideias. Fica claro pelo relato de Lih que, quase sempre que a Wikipédia encontrou obstáculos, e o projeto poderia ter decidido impor mais restrições sobre quem poderia editar o quê, ela preferiu não o fazer. Isso fez toda a diferença. O acerto dessas opções —pela Wikipédia e pelas cidades— é comprovado a cada vez que um estranho supera seus temores e decide fazer uma visita e passar algum tempo por lá.
Texto do The New York Times, na edição de 06/04/2009, da Folha de São Paulo.
Marcadores: conhecimento, economia do conhecimento, Web, Web 2.0, Wikipédia
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