Clarice Lispector
Escrever é procurar.
Clarice Lispector
Certa vez uma amiga mencionou um livro de Clarice Lispector numa entrevista de emprego num grande jornal e foi rechaçada: “Por que você gosta dela? Você é deprimida?”. O entrevistador foi eleito há pouco tempo para a Academia Brasileira de Letras e com a cultura nacional com esse tipo de luminar, não surpreende que a reflexão sobre a mais importante autora do país venha de fora, das mãos do americano Benjamin Moser. “Clarice,” (no original em inglês, “Why this world?”) é uma excelente biografia daquela que Moser classifica como “a melhor escritora judia desde Kafka” e descreve como “uma mulher que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virgina Woolf”.
A família Lispector enfrentou provações trágicas em sua Ucrânia natal. Com o caos da guerra civil que se seguiu à Revolução Russa, a população judaica foi alvo de massacres tanto pelos comunistas quanto pelos monarquistas. Um dos avôs de Clarice foi assassinado num pogrom, e sua mãe, estuprada por um grupo de soldados russos. Contraiu sífilis, e a doença e o trauma psicológico acabaram por matá-la precocemente. Os Lispector conseguiram fugir da Ucrânia e foram para o Nordeste brasileiro, onde tinham parentes. Clarice ainda era bebê. Viveram em Maceió e no Recife e após a morte da mãe se mudaram para o Rio de Janeiro. A família tinha condições modestas de vida, mas as três filhas – Elisa, Tânia e Clarice – eram inteligentes, dedicadas e trabalhadoras. Todas se destacaram nos estudos e Elisa e Clarice tiveram carreiras como escritoras e profissionais liberais.
Clarice se formou em Direito – algo raro para uma mulher no Brasil da década de 1940. Ainda na faculdade, começou a trabalhar como jornalista e conheceu o escritor Lúcio Cardoso, por quem teve uma paixão platônica – ele era homossexual – e que foi amigo íntimo por toda a vida. Clarice era muito bonita e tinha diversos admiradores. Casou-se cedo com Mauro Gurgel Valente, um colega de universidade que se tornou diplomata. Como sua esposa, passou cerca de 15 anos no exterior, na Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos e Polônia.
Escrevia desde menina, quando seus contos eram rejeitados pelos suplementos infantis dos jornais por não seguirem as fórmulas convencionais do “era uma vez”. Publicou contos quando repórter e o primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, pouco antes de deixar o Brasil. O livro teve excelente recepeção, mas o longo período no exterior foi uma época difícil para Clarice. O marido era apaixonadíssimo por ela, tiveram dois filhos (um dos quais tornou-se esquizofrênico) e um círculo de amigos amplo e instigante, que incluía o escritor Érico Veríssimo, os jornalistas Samuel e Bluma Wainer, o poeta João Cabral de Mello Neto, o banqueiro Walther Moreira Salles, a filha de Getúlio Vargas, Alzira do Amaral Peixoto e os diplomatas Vasco Leitão de Cunha e João Araújo Castro. Ainda assim, Clarice com frequencia ficava deprimida e com saudades do Brasil e da família. Ressentia-se do formalismo e dos protocolos da vida diplomática, e tais sensações aparecem no que escreveu na época, sobretudo o romance “A Cidade Sitiada”.
A correspondência de Clarice com os amigos no Brasil foi farta e muito calorosa, Moser faz excelente uso delas na biografia. Destacam-se as cartas para as irmãs e para os escritores Lúcio Cardoso, Fernando Sabino e Rubem Braga. Além de mantê-la a par das novidades, ajudavam com sua carreira literária e tentavam lhe encontrar editores. Ela fazia sucesso junto a um círculo restrito de admiradores, mas tinha dificuldade em publicar. Seu estilo introspectivo e mesmo sua aparência, nome e sotaque causavam estranhamento, como se fosse estrangeira.
Clarice terminou se separando do marido e voltando em definitivo ao Brasil no início da década de 1960, vivendo no Rio até morrer em 1977. Foi uma fase de grande produtividade artística e literária, com reconhecimento público crescente e a publicação de seus livros mais celebrados, como “A Paixão Segundo G.H.”, “Laços de Família” e “A Hora da Estrela”. Mas também momentos pessoais de solidão, isolamento, depressão, a doença mental do filho, problemas com o abuso dos tranquilizantes e dificuldade de aceitar o envelhecimento.
Moser analisa de maneira clara os principais temas da obra de Clarice – a impossibilidade em se ajustar ao cotidiano, a ruptura caótica que se esconde em gestos banais, a dificuldade em se abrir para os outros, a procura de uma identidade e de um lugar no mundo. Credita esse aspecto sombrio à trágica história familiar dos Lispector, mas também mostra o lado luminoso de Clarice: as invenções linguísticas, as relações ternas com crianças e animais. Um lado muito interessante são os pontos em comum entre sua literatura e o misticismo judaico, de Spinoza aos cabalistas, sobretudo no que diz respeito à procura (ou invenção) de Deus e sobre a incapacidade das palavras expressarem a realidade.
Este texto é originário do blog Todos os Fogos o Fogo.
Clarice Lispector
Certa vez uma amiga mencionou um livro de Clarice Lispector numa entrevista de emprego num grande jornal e foi rechaçada: “Por que você gosta dela? Você é deprimida?”. O entrevistador foi eleito há pouco tempo para a Academia Brasileira de Letras e com a cultura nacional com esse tipo de luminar, não surpreende que a reflexão sobre a mais importante autora do país venha de fora, das mãos do americano Benjamin Moser. “Clarice,” (no original em inglês, “Why this world?”) é uma excelente biografia daquela que Moser classifica como “a melhor escritora judia desde Kafka” e descreve como “uma mulher que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virgina Woolf”.
A família Lispector enfrentou provações trágicas em sua Ucrânia natal. Com o caos da guerra civil que se seguiu à Revolução Russa, a população judaica foi alvo de massacres tanto pelos comunistas quanto pelos monarquistas. Um dos avôs de Clarice foi assassinado num pogrom, e sua mãe, estuprada por um grupo de soldados russos. Contraiu sífilis, e a doença e o trauma psicológico acabaram por matá-la precocemente. Os Lispector conseguiram fugir da Ucrânia e foram para o Nordeste brasileiro, onde tinham parentes. Clarice ainda era bebê. Viveram em Maceió e no Recife e após a morte da mãe se mudaram para o Rio de Janeiro. A família tinha condições modestas de vida, mas as três filhas – Elisa, Tânia e Clarice – eram inteligentes, dedicadas e trabalhadoras. Todas se destacaram nos estudos e Elisa e Clarice tiveram carreiras como escritoras e profissionais liberais.
Clarice se formou em Direito – algo raro para uma mulher no Brasil da década de 1940. Ainda na faculdade, começou a trabalhar como jornalista e conheceu o escritor Lúcio Cardoso, por quem teve uma paixão platônica – ele era homossexual – e que foi amigo íntimo por toda a vida. Clarice era muito bonita e tinha diversos admiradores. Casou-se cedo com Mauro Gurgel Valente, um colega de universidade que se tornou diplomata. Como sua esposa, passou cerca de 15 anos no exterior, na Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos e Polônia.
Escrevia desde menina, quando seus contos eram rejeitados pelos suplementos infantis dos jornais por não seguirem as fórmulas convencionais do “era uma vez”. Publicou contos quando repórter e o primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, pouco antes de deixar o Brasil. O livro teve excelente recepeção, mas o longo período no exterior foi uma época difícil para Clarice. O marido era apaixonadíssimo por ela, tiveram dois filhos (um dos quais tornou-se esquizofrênico) e um círculo de amigos amplo e instigante, que incluía o escritor Érico Veríssimo, os jornalistas Samuel e Bluma Wainer, o poeta João Cabral de Mello Neto, o banqueiro Walther Moreira Salles, a filha de Getúlio Vargas, Alzira do Amaral Peixoto e os diplomatas Vasco Leitão de Cunha e João Araújo Castro. Ainda assim, Clarice com frequencia ficava deprimida e com saudades do Brasil e da família. Ressentia-se do formalismo e dos protocolos da vida diplomática, e tais sensações aparecem no que escreveu na época, sobretudo o romance “A Cidade Sitiada”.
A correspondência de Clarice com os amigos no Brasil foi farta e muito calorosa, Moser faz excelente uso delas na biografia. Destacam-se as cartas para as irmãs e para os escritores Lúcio Cardoso, Fernando Sabino e Rubem Braga. Além de mantê-la a par das novidades, ajudavam com sua carreira literária e tentavam lhe encontrar editores. Ela fazia sucesso junto a um círculo restrito de admiradores, mas tinha dificuldade em publicar. Seu estilo introspectivo e mesmo sua aparência, nome e sotaque causavam estranhamento, como se fosse estrangeira.
Clarice terminou se separando do marido e voltando em definitivo ao Brasil no início da década de 1960, vivendo no Rio até morrer em 1977. Foi uma fase de grande produtividade artística e literária, com reconhecimento público crescente e a publicação de seus livros mais celebrados, como “A Paixão Segundo G.H.”, “Laços de Família” e “A Hora da Estrela”. Mas também momentos pessoais de solidão, isolamento, depressão, a doença mental do filho, problemas com o abuso dos tranquilizantes e dificuldade de aceitar o envelhecimento.
Moser analisa de maneira clara os principais temas da obra de Clarice – a impossibilidade em se ajustar ao cotidiano, a ruptura caótica que se esconde em gestos banais, a dificuldade em se abrir para os outros, a procura de uma identidade e de um lugar no mundo. Credita esse aspecto sombrio à trágica história familiar dos Lispector, mas também mostra o lado luminoso de Clarice: as invenções linguísticas, as relações ternas com crianças e animais. Um lado muito interessante são os pontos em comum entre sua literatura e o misticismo judaico, de Spinoza aos cabalistas, sobretudo no que diz respeito à procura (ou invenção) de Deus e sobre a incapacidade das palavras expressarem a realidade.
Este texto é originário do blog Todos os Fogos o Fogo.
Marcadores: Clarice Lispector, literatura
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