Feriado de 16 de dezembro na África do Sul
Em uma África do Sul dividida, feriado da conquista branca persiste
Barry Bearak
Em Pretoria (África do Sul)
O dia 16 de dezembro era celebrado por feriados rivais na África do Sul, dois fluxos opostos de memória colidindo em uma intersecção. Os africânderes, descendentes dos colonos brancos, celebravam o Dia da Promessa, um pacto que teria sido feito entre seus ancestrais e Deus em 1838, que levou à matança de 3.000 zulus. Os negros comemoravam o mesmo dia marcando o início da luta armada contra o regime do apartheid pelo Congresso Nacional Africano em 1961.
Com a chegada da democracia multirracial em 1994, os legisladores consideraram sábio manter o dia 16 de dezembro como feriado, proclamando-o Dia da Reconciliação, momento para todas as raças se unirem no espírito da unidade nacional.
Contudo, 15 anos depois, esse final feliz está muito distante e o ideal de uma nação de todas as cores agora parece pouco mais do que uma frase bem articulada. De acordo com uma pesquisa divulgada na semana passada pelo respeitado Instituto de Justiça e Reconciliação, 31% dos sul-africanos acham que as relações de raça não melhoraram desde o fim do apartheid e 16% de fato acham que pioraram (cerca de 50% dizem que melhoraram).
Quanto ao feriado, a maior parte dos africânderes teve dificuldade em colocar de lado uma de suas ocasiões mais sagradas e, na quarta-feira, milhares deles se reuniram, como fazem todos os anos, dentro da câmara de mármore de um enorme monumento de granito perto de Pretoria. A estrutura é um templo em homenagem à Grande Marcha, quando os pioneiros brancos migraram para o Norte com suas carroças e mosquetes, completando uma conquista que viam como a realização de uma missão divina.
"O Dia da Reconciliação pode ser uma boa ideia, mas o Dia da Promessa ainda é o que está em nossos corações. Este é um feriado religioso baseado na história de nosso povo", disse Johan de Beer, 46, professor, esperando a abertura do portão do monumento cedo pela manhã.
Em seu discurso de posse, Nelson Mandela falou de um pacto próprio, no anseio de "uma nação das cores do arco-íris, em paz consigo mesma e com o mundo". Quem assistiu ao novo filme americano "Invictus" talvez seja tentado a concluir que tal harmonia racial prevaleceu após uma briga em um jogo de futebol americano.
Os recentes resultados de pesquisa provavelmente chocariam uma pessoa que tivesse dormido durante o apartheid e acordado no presente. Afinal, os negros não apenas controlam o governo, mas também frequentam os melhores restaurantes e shoppings. Os heróis da luta pela libertação, os chamados diamantes negros, foram recebidos nos conselhos das maiores corporações do país.
Contudo, enquanto a África do Sul é o mais rico país do continente, a desigualdade de renda continua sendo das piores do mundo. Cerca de 29% dos negros estão desempregados, comparados com 5% dos brancos, de acordo com números recentes. Quando as estatísticas incluem os trabalhadores desestimulados -que deixaram a força de trabalho- o desemprego sobe para quase 50%. A maior parte dos desempregados nunca teve um único emprego, de acordo com um estudo de um conselho de economistas internacionais.
Os recentes resultados de pesquisa também mostraram que quase um em cada quatro sul-africanos nunca fala com pessoas de outras raças em um dia normal. "Nos grupos de maior renda, há muita integração, mas muito pouca entre os pobres", disse Fanie Du Toit, diretor executivo do instituto que divulgou a pesquisa. "De 40 a 50% dos negros moram em favelas ou no campo e nunca entram em contato com brancos".
No Monumento Voortrekker, entre os que celebram do Dia da Promessa, não se vê negros além dos homens uniformizados recolhendo lixo. "Não sei nada sobre o feriado deles", disse um dos garis, Elias Selema.
Os visitantes que chegaram cedo se sentaram abaixo do domo do monumento, na nave principal, uma enorme sala cercada por frisos de mármore italiano que retratam a migração épica. Outros ficaram em um nível abaixo, cercando o cenotáfio, túmulo vazio que é o local de descanso simbólico dos que morreram durante a marcha. Outros se sentaram nos gramados e jardins em volta.
"Este é meu dia de Ação de Graças", disse Callie van Merwe, 89, vestida com o hábito largo e o boné de algodão branco dos colonos. Ela acrescentou: "Hoje é um dia feliz, mas me sinto mal em relação ao futuro. Este país está mudando, mudando muito."
Há diversas versões do Dia da Promessa e da Batalha do Rio de Sangue que se seguiu. O registro histórico é tendencioso, e não há dúvidas que, com o tempo, desenvolveram-se mitos. Um historiador, Leonard Thompson, disse que a mitologia pode servir ao propósito político de justificar a opressão racial do apartheid como vontade de Deus.
Na versão mais comum da história, a brigada de 468 voortrekkers, ou pioneiros, e cerca de 60 de seus escravos partiram para vingar centenas de mortes nas mãos dos zulus. Seu líder, Andries Pretorius, espertamente selecionou um local para acampar que era protegido por uma ravina profunda e o rio Ncome, que se alargava naquele ponto em uma piscina profunda de hipopótamo.
Antes do ataque zulu que certamente viria, os pioneiros se reuniram para ler um pacto. Em parte, dizia: "Se ele nos proteger e nos der nossos inimigos em nossas mãos, vamos manter este dia e esta data todo ano como dia de ação de graças, como um sabá, e vamos erguer uma igreja em sua honra."
Os africânderes acorrentaram suas carroças cobertas, colocando arbustos espinhosos em baixo. Os zulus atacaram em ondas, tentando usar suas lanças curtas em combate próximo, mas morrendo em pilhas quando a fumaça subia dos mosquetes e canhões. Segundo a história, 3.000 zulus morreram e os brancos sofreram apenas três ferimentos. Tantos guerreiros morreram no Ncome que ficou conhecido como rio de sangue.
"Acreditamos que era a vontade de Deus que os cristãos liderassem esta terra", disse Lukas de Kock, um dos líderes da adoração de quarta-feira. "Naquele dia, no Dia da Promessa, Deus fez uma declaração clara que esta era sua vontade para a África do Sul."
A leitura da promessa é hoje um dos momentos mais solenes da missa. O outro vem precisamente ao meio dia, quando as famílias se debruçam sobre os parapeitos para olhar o cenotáfio.
Os projetistas fizeram cálculos cuidadosos de forma que exatamente ao meio dia de cada 16 de dezembro o sol brilhasse por uma pequena fresta no domo, iluminando a tumba vazia 42 metros abaixo, novamente assinalando para muitos que era a vontade de Deus que a terra fosse sua.
Tradução: Deborah Weinberg
Texto do The New York Times, reproduzido no UOL.
Barry Bearak
Em Pretoria (África do Sul)
O dia 16 de dezembro era celebrado por feriados rivais na África do Sul, dois fluxos opostos de memória colidindo em uma intersecção. Os africânderes, descendentes dos colonos brancos, celebravam o Dia da Promessa, um pacto que teria sido feito entre seus ancestrais e Deus em 1838, que levou à matança de 3.000 zulus. Os negros comemoravam o mesmo dia marcando o início da luta armada contra o regime do apartheid pelo Congresso Nacional Africano em 1961.
Com a chegada da democracia multirracial em 1994, os legisladores consideraram sábio manter o dia 16 de dezembro como feriado, proclamando-o Dia da Reconciliação, momento para todas as raças se unirem no espírito da unidade nacional.
Contudo, 15 anos depois, esse final feliz está muito distante e o ideal de uma nação de todas as cores agora parece pouco mais do que uma frase bem articulada. De acordo com uma pesquisa divulgada na semana passada pelo respeitado Instituto de Justiça e Reconciliação, 31% dos sul-africanos acham que as relações de raça não melhoraram desde o fim do apartheid e 16% de fato acham que pioraram (cerca de 50% dizem que melhoraram).
Quanto ao feriado, a maior parte dos africânderes teve dificuldade em colocar de lado uma de suas ocasiões mais sagradas e, na quarta-feira, milhares deles se reuniram, como fazem todos os anos, dentro da câmara de mármore de um enorme monumento de granito perto de Pretoria. A estrutura é um templo em homenagem à Grande Marcha, quando os pioneiros brancos migraram para o Norte com suas carroças e mosquetes, completando uma conquista que viam como a realização de uma missão divina.
"O Dia da Reconciliação pode ser uma boa ideia, mas o Dia da Promessa ainda é o que está em nossos corações. Este é um feriado religioso baseado na história de nosso povo", disse Johan de Beer, 46, professor, esperando a abertura do portão do monumento cedo pela manhã.
Em seu discurso de posse, Nelson Mandela falou de um pacto próprio, no anseio de "uma nação das cores do arco-íris, em paz consigo mesma e com o mundo". Quem assistiu ao novo filme americano "Invictus" talvez seja tentado a concluir que tal harmonia racial prevaleceu após uma briga em um jogo de futebol americano.
Os recentes resultados de pesquisa provavelmente chocariam uma pessoa que tivesse dormido durante o apartheid e acordado no presente. Afinal, os negros não apenas controlam o governo, mas também frequentam os melhores restaurantes e shoppings. Os heróis da luta pela libertação, os chamados diamantes negros, foram recebidos nos conselhos das maiores corporações do país.
Contudo, enquanto a África do Sul é o mais rico país do continente, a desigualdade de renda continua sendo das piores do mundo. Cerca de 29% dos negros estão desempregados, comparados com 5% dos brancos, de acordo com números recentes. Quando as estatísticas incluem os trabalhadores desestimulados -que deixaram a força de trabalho- o desemprego sobe para quase 50%. A maior parte dos desempregados nunca teve um único emprego, de acordo com um estudo de um conselho de economistas internacionais.
Os recentes resultados de pesquisa também mostraram que quase um em cada quatro sul-africanos nunca fala com pessoas de outras raças em um dia normal. "Nos grupos de maior renda, há muita integração, mas muito pouca entre os pobres", disse Fanie Du Toit, diretor executivo do instituto que divulgou a pesquisa. "De 40 a 50% dos negros moram em favelas ou no campo e nunca entram em contato com brancos".
No Monumento Voortrekker, entre os que celebram do Dia da Promessa, não se vê negros além dos homens uniformizados recolhendo lixo. "Não sei nada sobre o feriado deles", disse um dos garis, Elias Selema.
Os visitantes que chegaram cedo se sentaram abaixo do domo do monumento, na nave principal, uma enorme sala cercada por frisos de mármore italiano que retratam a migração épica. Outros ficaram em um nível abaixo, cercando o cenotáfio, túmulo vazio que é o local de descanso simbólico dos que morreram durante a marcha. Outros se sentaram nos gramados e jardins em volta.
"Este é meu dia de Ação de Graças", disse Callie van Merwe, 89, vestida com o hábito largo e o boné de algodão branco dos colonos. Ela acrescentou: "Hoje é um dia feliz, mas me sinto mal em relação ao futuro. Este país está mudando, mudando muito."
Há diversas versões do Dia da Promessa e da Batalha do Rio de Sangue que se seguiu. O registro histórico é tendencioso, e não há dúvidas que, com o tempo, desenvolveram-se mitos. Um historiador, Leonard Thompson, disse que a mitologia pode servir ao propósito político de justificar a opressão racial do apartheid como vontade de Deus.
Na versão mais comum da história, a brigada de 468 voortrekkers, ou pioneiros, e cerca de 60 de seus escravos partiram para vingar centenas de mortes nas mãos dos zulus. Seu líder, Andries Pretorius, espertamente selecionou um local para acampar que era protegido por uma ravina profunda e o rio Ncome, que se alargava naquele ponto em uma piscina profunda de hipopótamo.
Antes do ataque zulu que certamente viria, os pioneiros se reuniram para ler um pacto. Em parte, dizia: "Se ele nos proteger e nos der nossos inimigos em nossas mãos, vamos manter este dia e esta data todo ano como dia de ação de graças, como um sabá, e vamos erguer uma igreja em sua honra."
Os africânderes acorrentaram suas carroças cobertas, colocando arbustos espinhosos em baixo. Os zulus atacaram em ondas, tentando usar suas lanças curtas em combate próximo, mas morrendo em pilhas quando a fumaça subia dos mosquetes e canhões. Segundo a história, 3.000 zulus morreram e os brancos sofreram apenas três ferimentos. Tantos guerreiros morreram no Ncome que ficou conhecido como rio de sangue.
"Acreditamos que era a vontade de Deus que os cristãos liderassem esta terra", disse Lukas de Kock, um dos líderes da adoração de quarta-feira. "Naquele dia, no Dia da Promessa, Deus fez uma declaração clara que esta era sua vontade para a África do Sul."
A leitura da promessa é hoje um dos momentos mais solenes da missa. O outro vem precisamente ao meio dia, quando as famílias se debruçam sobre os parapeitos para olhar o cenotáfio.
Os projetistas fizeram cálculos cuidadosos de forma que exatamente ao meio dia de cada 16 de dezembro o sol brilhasse por uma pequena fresta no domo, iluminando a tumba vazia 42 metros abaixo, novamente assinalando para muitos que era a vontade de Deus que a terra fosse sua.
Tradução: Deborah Weinberg
Texto do The New York Times, reproduzido no UOL.
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