Fim da Privacidade
Sabe aquilo que chamávamos privacidade?
FÁBIO ULHOA COELHO |
A PRIVACIDADE acabou. Câmaras de vídeo estão espalhadas por estacionamentos, lojas, bancos, edifícios, ruas, por todos os lugares. Sofisticados apetrechos eletrônicos gravam conversas à distância, dispensando a implantação de microfones no ambiente monitorado.
Telefonemas e mensagens transmitidas pela internet são interceptados sem dificuldade. Já se organizam gigantescos bancos de dados reunindo simplesmente todas as informações existentes sobre todos nós.
Nem mesmo nossos pensamentos e desejos íntimos parecem estar a salvo. Está em fase de finalização para lançamento no mercado a Epoc, uma máquina que lê pensamentos. Ainda é um tanto rude e sua eficácia depende, às vezes, de movimentos "interpretativos" dos braços. Será inicialmente usada para entretenimento em jogos eletrônicos, mas, logo mais, virão o aperfeiçoamento e outros usos; nem meditando teremos sossego.
A tecnologia acabou com a privacidade e vai acabar com o direito à privacidade. Por algum tempo, legisladores e juízes ainda vão fingir que o protegem, mas esse direito, como tantos outros, não resistirá ao cerco da tecnologia. O constitucionalista norte-americano Lawrence Lessig insiste, há quase duas décadas, que a lei não é mais feita pelos legisladores, e sim pelos programadores de informática. O software ("code") é a lei. Ou, de modo mais geral, a tecnologia é a lei.
Dou dois exemplos de morte de direitos consagrados na ordem jurídica, mas que deixaram de existir porque os tribunais simplesmente não conseguem deter a avassaladora evolução tecnológica.
O primeiro é o direito de autor e conexos relacionados à obra musical.
Músicos, cantores, compositores, arranjadores e produtores não têm mais, hoje em dia, como impedir a reprodução pirateada de suas obras e interpretações pela internet. Evaporou-se em poucos anos a chance de ganho desses criadores com a venda de CDs. A lei continua a garantir o direito deles, mas, como tornar esse direito efetivo se, para tanto, seria necessário identificar e processar milhões de usuários de programas de compartilhamento?
O segundo exemplo busco na declaração de advogado da Microsoft, feita em julho de 2007, de que a empresa tinha decidido não promover ações judiciais contra o desrespeito a mais de duas centenas de suas patentes por vários programas de código livre, incluindo o Linux, em razão dos custos.
Se a poderosíssima Microsoft não vê mais vantagem econômica em acionar o aparato judicial para tentar defender suas patentes, então não existe de fato o direito que a lei teoricamente lhe concede.
O direito à privacidade terá o mesmo fim. A disseminação dos meios tecnológicos de invasão da esfera privada de nossa vida será de tal ordem que pouco ou nada poderão fazer os legisladores e juízes no mundo todo. Para muitos, um mundo sem privacidade é algo a lamentar. Os que mais reclamam do novo cenário evidentemente são os que cometem crimes, traem ou fazem algo errado.
Mas, talvez, não seja o caso de nutrir tanto pessimismo. Por paradoxal que possa parecer, um mundo sem privacidade pode ser mais seguro e tolerante.
Privacidade e segurança estão relacionadas de modo complexo. O sigilo bancário deve ser resguardado para a segurança das pessoas contra seqüestro, por exemplo. Mas não faz o menor sentido protegê-lo para dificultar a identificação e a punição de corruptos, corruptores, sonegadores de impostos ou lavadores de dinheiro.
Em termos gerais, no entanto, todos conseguem perceber que o aumento da segurança implica certa restrição à privacidade, e as câmaras instaladas nos elevadores dos prédios onde moramos e trabalhamos nos provam isso.
Além de mais seguro, o mundo sem privacidade pode ser também mais tolerante. Deixando de lado os que desejam encobrir crimes, traições ou deslizes morais, quem mais zela por sua privacidade são as vítimas de preconceito. Elas o fazem de modo legítimo. Mas, quanto menos barreiras separarem as pessoas, mais elas irão se conhecer. Quanto mais íntimos forem umas das outras, crescem as chances de se compreenderem e se aceitarem. O excessivo apego à privacidade pode nos conduzir a uma sociedade de falsos, patéticos avatares.
O fim da privacidade e do direito à privacidade talvez não seja, enfim, uma má notícia.
FÁBIO ULHOA COELHO , advogado, doutor em direito, é professor titular de filosofia do direito, direito comercial e empresarial da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 21 de agosto de 2008.
Marcadores: Big Brother, fim da privacidade, privacidade
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home