quarta-feira, agosto 20, 2008

Ordem submete corpos e vontades

Ordem submete corpos e vontades



LEANDRO KARNAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Abertura impressionante: corpos em uníssono, marchando, cantando, voando e produzindo algumas das imagens mais belas que já vi.
Eu estava acompanhado por um simpático grupo de estudiosas em Tamboré. Manifestei, para surpresa de algumas, minha angústia.
Eu tive a mesma sensação quando vi um espetáculo de crianças acrobatas em Pequim, há dois anos. Eram crianças que, pela excelência da apresentação, certamente passavam por algo como dez horas diárias de treinamentos.
Imaginei se aquelas crianças sofreriam dos males das brasileiras. Por certo não tinham traumas, não ficavam doentes, não tinham as constantes dores de barriga e gripes que assolam menores ocidentais.
Não deveria existir, igualmente, a pororoca de mães zelosas para que seus filhos não fossem tão exigidos. Pelo contrário. Imaginei, como exercício de sonho, que após horas sob o olhar espartano do treinador, haveria mais pressão nos lares chineses pela excelência do desempenho delas.
O leitor já deve ter adivinhado um espírito suíno guinchando neste texto. Por que eu não consigo ver simplesmente a beleza de uma nação orgulhosa, preparada, com esforço colossal, ocupando seu local de destaque no mundo? Após dois séculos de opressão, ressurgiria o Império do Meio no pódio do planeta? Sim. É possível ser o rasteiro desdém da raposa diante dos cachos inalcançáveis. Faríamos igual no Maracanã? Provavelmente não.
Vejo na ordem contemplada no Ninho do Pássaro a mesma e a perfeita sincronia dos desfiles da Guarda Vermelha de 1968.
Atletas e coreógrafos têm semelhança terrível com soldados em passo de ganso. Ordem total implica submissão absoluta de corpos e vontades. Sincronia irretocável pode ser linda de ser assistida, mas é acompanhada de uma conta alta.
Passar por cima de todos os obstáculos implica uma energia que pode serpentear por milhares de quilômetros em muralhas ou construir algo como a represa das Três Gargantas. Não há meio ambiente ou montanha que não possa ser domado pela razão de Estado.
Não há indivíduo que não possa ceder a este imperativo categórico. Carros parados, fábricas fechadas, pessoas impedidas de sair de suas casa e quase um ano de ensaios exaustivos: tudo foi perfeito. Nada errado ocorreu. Uma pequena chinesa coçou o nariz sentada a um piano.
Teria sido ensaiado para provocar simpatia?
A aula de história e de política foi dada. A genialidade da civilização chinesa transbordou nos tipos móveis de imprensa, no papel e na pólvora. A bússola e os barcos de Zeng He voltaram ao seu berço criativo. Fadas dançaram contrariando Newton, afinal, o pai da física era um mero ocidental.
Tudo foi incrivelmente belo.
A beleza no sentido que Rainer Maria Rilke definiu no início das elegias de Duíno esteve todo o tempo na minha mente: "Pois o que é o Belo senão o grau do terrível que ainda suportamos porque, impassível, desdenha destruir-nos?" O século 21 será chinês? Suspeito que sim. Pior? Temo que acharemos lindo na tela... em mandarim.


LEANDRO KARNAL é professor de história na Unicamp

Texto publicado no Folha de São Paulo, em 14 de agosto de 2008.

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