quinta-feira, novembro 27, 2008

Uma leitura interrompida

Uma leitura interrompida

UM FILHO, diz Cristovão Tezza no romance mais premiado deste ano, "é a idéia de um filho; uma mulher é a idéia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a idéia que fazemos delas; às vezes não".
A frase aparece nas primeiras páginas de "O Filho Eterno" (ed. Record), que ganhou os prêmios Jabuti, Bravo! e Portugal Telecom de 2008. Premiações nem sempre dizem muita coisa, mas a consagração de Cristovão Tezza é merecidíssima.
Eu tinha começado a ler "O Filho Eterno" há vários meses. Só que o meu plano de escrever sobre o livro ia sendo adiado. Tentei ler o romance três vezes. E paro sempre no mesmo ponto, aí pela página 40. Não porque o livro seja ruim. Ao contrário: é tão bom, tão maduro e verdadeiro que estremeço e não consigo prosseguir.
"Um filho é a idéia de um filho." Quem formula esse pensamento é o personagem principal do livro, abertamente autobiográfico. Trata-se de um rapaz de 28 anos, que naqueles finais da década de 70 guarda um bocado do ideário hippie. Acredita-se predestinado à literatura, há quatro anos é sustentado pela mulher e consegue arranjar alguns trocados fazendo a revisão gramatical de teses universitárias.
"Alguém provisório", define-se; "alguém que ainda não começou a viver". O livro começa com uma frase da mulher: "Acho que é hoje". Ela está no último mês da gravidez. Pai e filho, de certo modo, começarão a viver no mesmo dia.
Na sala de espera da maternidade, o protagonista mantém a atitude desligada e humorística que o caracterizou até ali. Se um filho é apenas "a idéia de um filho", a realidade daquele momento (o futuro pai fumando na sala de espera) também é apenas "a idéia" de um futuro pai fumando na sala de espera. Uma cena meio cômica, "um cartum", resume o autor.
A arte de Cristovão Tezza se assemelha à de uma cobra que se encolhe antes de dar o bote. O leitor simpatiza com esse pai cuca-fresca e reconhece a sua sensação de que, em qualquer acontecimento importante da vida, existe algo de engraçado e irreal. É como se participássemos de um roteiro repleto de lugares-comuns, como se a idéia pré-fabricada que temos das coisas tirasse delas o seu significado mais profundo.
Quem lê compartilha esse olhar humorístico, de "cartunista", do narrador. Mas logo se percebe uma diferença entre o "modo de ver" e o "modo de falar" empregado nas primeiras páginas do livro. As cenas e pensamentos são delineadas com leveza, como se feitas a lápis; mas a elocução, a sintaxe, a ordem das frases, é compactada e densa.
O narrador cochila no sofá. O recém-nascido chega: um "pacotinho suspirante". A mãe "vê o filho ser depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mas ninguém sorri".
Um médico dá início à preleção.
"Observem os olhos, que têm a prega nos cantos, a pálpebra oblíqua... o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro... achatamento da parte posterior do crânio..."
O pai, que pouco tempo antes fizera a revisão de uma tese sobre síndrome de Down, entende na hora do que se trata. Mas como entender? "Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando no espaço estreito da fila do matadouro; recusava-se mesmo a olhar para a cama, onde todos se concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma maldição inesperada."
Copiando este trecho, vejo que talvez tenha sido uma atitude semelhante a que me impediu de continuar o livro. Leio e releio essas páginas iniciais. Depois, digo para mim mesmo, eu continuo.
Enquanto isso, descubro novas belezas em "O Filho Eterno". Por exemplo. Antes da revelação terrível, o pai brinca com os parentes, que lhe perguntam com quem se parece o recém-nascido. Ele o vira apenas através dos vidros do berçário.
Repete a piada clássica: o filho parece um joelho. Pensa também, ao ver tantos bebês juntos: "Somos de fato todos irmãos, tão parecidos uns com os outros!"
Nem todos.
Antes ainda, enquanto transcorria o parto, o protagonista se lembra (é muito distraído) de avisar a família.
Compra umas fichas de telefone. Na calçada, fora do hospital, há uma fileira de telefones públicos, "um deles com o fone arrancado e um patético fio solto".
Uma ligação eterna se fará, sabemos, entre pai e filho. Mas interrompo a leitura, e este artigo também.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 12 de novembro de 2008.


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