Próxima parada, avenida Paulista
Próxima parada, avenida Paulista
A MENOS QUE a recessão seja ainda pior do que dizem, há coisas em São Paulo que nunca param de crescer e que afastam qualquer idéia de que possam diminuir um dia.
A decoração natalina é uma delas: segue a lei do acúmulo, da superposição, do entupimento. Não há como esperar, de um ano para outro, versões mais econômicas, mais "clean".
O vazio não é tolerado; sempre se encontra espaço, numa árvore ou numa fachada de loja, para enfiar um enfeite a mais onde já não cabia mais nenhum.
Como há ainda mais carros do que lampadazinhas natalinas na cidade (não sei se já fizeram o cálculo comparativo), o congestionamento noturno tem sido intenso em lugares como a avenida Paulista e as imediações do Ibirapuera.
Pelo parque Ibirapuera só passei de dia. O cone gigantesco que instalaram ali não evoca em mim antigas imagens de pinheiros de Natal: parece mais algum equipamento de emergência do Detran para evitar o engarrafamento de trenós.
Na avenida Paulista, o prêmio vai para aquela esquina do Banco de Boston. Nem sei se o banco já mudou de nome.
O fato é que, de ano para ano, amontoam-se ao redor daquele palacetezinho branco mais e mais reis magos, embalagens de presente, bolotas, pirulitos, camelos, neves, santos e trombetas, numa congestão comemorativa capaz de fazer de qualquer igreja barroca uma aula de despojamento e sensatez.
Pouco importa; nada disso foi feito para agradar a críticos e arquitetos, mas sim às crianças que levamos para passear por lá.
Fiz a experiência num sábado e aprendi bastante sobre a cidade em que vivo. Saí do carro e, com dois meninos pequenos ao meu lado, passei uma hora e pouco na condição de pedestre na Paulista.
É um dos pontos de São Paulo em que ser pedestre não inspira medo.
Nada mais incomum por aqui do que a sensação, corriqueira em qualquer cidade do mundo, de que a rua pertence a quem anda nela. Pelas calçadas largas da Paulista, a cidade entretanto se abre aos seus habitantes, como se fosse um formidável e grotesco presente.
Lembro-me de ter recebido, quando criança, alguns presentes assim. Certo caminhão de madeira, grande demais para brincar de carrinho, pequeno demais para que uma criança se instalasse em cima dele. Uns tantos pacotões de gesso, argila e alvaiade destinados a transformar-me em pequeno escultor.
Apareceu até (doloroso confessar) um conjunto de carimbos e tipos móveis de borracha, com o qual se esperava que eu compusesse, por conta própria, meu pequeno jornal.
Quem sabe ainda reencontro, entre os guardados, esse brinquedo.
Coisas impossíveis, coisas inadministráveis, coisas maiores do que nós: lá estavam os bonecos, pacotes, renas e prédios da Paulista montados numa calçada acolhedora, por onde pais, crianças, e essas crianças de outro tipo, os turistas, podiam aparentemente andar sem medo.
E conversar também. Camelôs, vendedores de milho verde e jornaleiros não são pessoas com quem temos tempo ou disposição para trocar idéias. Na companhia de crianças, tudo muda. Meus filhos (e eu também) maravilharam-se com a quantidade de línguas e sotaques que se cruzavam pela rua.
Uma mulher, vendendo água e refrigerante, falava árabe e francês.
Veio do Líbano, tivera uma banca de tapioca, odiosamente confiscada pelas autoridades. Tratava de reconstruir a vida com sua geladeirinha de isopor. Belo pacote, sem dúvida, ao pé de uma imensa instalação natalina organizada pelo banco tal e tal.
Encontrei no passeio um brinco prateado, oculto num canteiro sujo.
Como logo ali ao lado um artesão expunha jóias e badulaques para vender, estimulei meu filho maior a perguntar-lhe se a peça não era sua. O artesão respondeu em portunhol.
Outra conversa começou.
O homem não era espanhol, era chileno. Falava castelhano, mas sua família era catalã. Os espanhóis, garantiu, eram todos ladrões, exploradores, assassinos. Só os catalães prestavam.
Uma espécie de trenzinho de Papai Noel estava sendo construído na fachada de outro banco. Meus filhos quiseram entrar nele; não estava pronto ainda. Desconfio que não fique pronto nunca.
Voltamos para casa, sem trenzinho, de metrô. Meus filhos talvez não se lembrem de nada disso no futuro, mas eles avançaram algumas estações na viagem que fazem pelo mundo.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 24 de dezembro de 2008.
A MENOS QUE a recessão seja ainda pior do que dizem, há coisas em São Paulo que nunca param de crescer e que afastam qualquer idéia de que possam diminuir um dia.
A decoração natalina é uma delas: segue a lei do acúmulo, da superposição, do entupimento. Não há como esperar, de um ano para outro, versões mais econômicas, mais "clean".
O vazio não é tolerado; sempre se encontra espaço, numa árvore ou numa fachada de loja, para enfiar um enfeite a mais onde já não cabia mais nenhum.
Como há ainda mais carros do que lampadazinhas natalinas na cidade (não sei se já fizeram o cálculo comparativo), o congestionamento noturno tem sido intenso em lugares como a avenida Paulista e as imediações do Ibirapuera.
Pelo parque Ibirapuera só passei de dia. O cone gigantesco que instalaram ali não evoca em mim antigas imagens de pinheiros de Natal: parece mais algum equipamento de emergência do Detran para evitar o engarrafamento de trenós.
Na avenida Paulista, o prêmio vai para aquela esquina do Banco de Boston. Nem sei se o banco já mudou de nome.
O fato é que, de ano para ano, amontoam-se ao redor daquele palacetezinho branco mais e mais reis magos, embalagens de presente, bolotas, pirulitos, camelos, neves, santos e trombetas, numa congestão comemorativa capaz de fazer de qualquer igreja barroca uma aula de despojamento e sensatez.
Pouco importa; nada disso foi feito para agradar a críticos e arquitetos, mas sim às crianças que levamos para passear por lá.
Fiz a experiência num sábado e aprendi bastante sobre a cidade em que vivo. Saí do carro e, com dois meninos pequenos ao meu lado, passei uma hora e pouco na condição de pedestre na Paulista.
É um dos pontos de São Paulo em que ser pedestre não inspira medo.
Nada mais incomum por aqui do que a sensação, corriqueira em qualquer cidade do mundo, de que a rua pertence a quem anda nela. Pelas calçadas largas da Paulista, a cidade entretanto se abre aos seus habitantes, como se fosse um formidável e grotesco presente.
Lembro-me de ter recebido, quando criança, alguns presentes assim. Certo caminhão de madeira, grande demais para brincar de carrinho, pequeno demais para que uma criança se instalasse em cima dele. Uns tantos pacotões de gesso, argila e alvaiade destinados a transformar-me em pequeno escultor.
Apareceu até (doloroso confessar) um conjunto de carimbos e tipos móveis de borracha, com o qual se esperava que eu compusesse, por conta própria, meu pequeno jornal.
Quem sabe ainda reencontro, entre os guardados, esse brinquedo.
Coisas impossíveis, coisas inadministráveis, coisas maiores do que nós: lá estavam os bonecos, pacotes, renas e prédios da Paulista montados numa calçada acolhedora, por onde pais, crianças, e essas crianças de outro tipo, os turistas, podiam aparentemente andar sem medo.
E conversar também. Camelôs, vendedores de milho verde e jornaleiros não são pessoas com quem temos tempo ou disposição para trocar idéias. Na companhia de crianças, tudo muda. Meus filhos (e eu também) maravilharam-se com a quantidade de línguas e sotaques que se cruzavam pela rua.
Uma mulher, vendendo água e refrigerante, falava árabe e francês.
Veio do Líbano, tivera uma banca de tapioca, odiosamente confiscada pelas autoridades. Tratava de reconstruir a vida com sua geladeirinha de isopor. Belo pacote, sem dúvida, ao pé de uma imensa instalação natalina organizada pelo banco tal e tal.
Encontrei no passeio um brinco prateado, oculto num canteiro sujo.
Como logo ali ao lado um artesão expunha jóias e badulaques para vender, estimulei meu filho maior a perguntar-lhe se a peça não era sua. O artesão respondeu em portunhol.
Outra conversa começou.
O homem não era espanhol, era chileno. Falava castelhano, mas sua família era catalã. Os espanhóis, garantiu, eram todos ladrões, exploradores, assassinos. Só os catalães prestavam.
Uma espécie de trenzinho de Papai Noel estava sendo construído na fachada de outro banco. Meus filhos quiseram entrar nele; não estava pronto ainda. Desconfio que não fique pronto nunca.
Voltamos para casa, sem trenzinho, de metrô. Meus filhos talvez não se lembrem de nada disso no futuro, mas eles avançaram algumas estações na viagem que fazem pelo mundo.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 24 de dezembro de 2008.
Marcadores: Marcelo Coelho, Natal, Natal 2008, São Paulo
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