Lisboa Alegre
Lisboa Alegre
Amilcar Bettega
De Lisboa
Já perdi a conta das vezes em que estive em Lisboa. Na primeira eu tinha vinte e poucos anos, muita vontade de viajar e nenhuma ideia do que iria fazer da minha vida - era uma época ao mesmo tempo feliz e de grandes inquietações. A última foi há dois meses, ou melhor, a penúltima, pois agora escrevo estas linhas sentado à esplanada de uma pastelaria no Rossio, sob essa luz ao mesmo tempo crua e doce que só Lisboa possui.
Já ouvi falar que tem a ver, a luz, com a topografia particular da cidade, que a deixa meio inclinada sobre esse imenso espelho d'água que é o Tejo, a multiplicar uma luminosidade por si só bastante generosa. Uma luz que se intensifica ainda nas lajes brancas da Praça do Comércio, nas pedras brancas das calçadas do Rossio, no casario branco da Baixa.
Lisboa é branca. E azul também, ou amarela - em todo caso Lisboa é clara. Mesmo à noite, nos becos apertados da Mouraria, mesmo quando chove ou há nuvens, mesmo quando faz frio, mesmo quando é triste (porque Lisboa pode ser triste também), ela é sempre clara e luminosa, uma cidade solar.
Já perdi a conta das vezes em que cá estive. E cada vez que volto é a mesma coisa. É como se eu voltasse a uma casa da infância ou a um bairro onde vivi muito tempo, sinto que revisito um espaço familiar, mas mais do que isso: sinto-me feliz e tranquilo como quando se regressa à casa depois de muito tempo viajando.
Quando percorro o Bairro Alto, procuro os mesmos bares e sou capaz de reconhecer rostos familiares lá dentro. Na rua do Loreto, entro no Casa da Índia, a réplica lisboeta da Lancheria do Parque, o melhor lugar para tomar cerveja em Porto Alegre (eu sei, minha opinião é baseada meramente em critérios afetivos mas, enfim, as opiniões são sempre isso). O mesmo e longo balcão à esquerda de quem entra, com bancos onde se bebe, come, conversa ou simplesmente fica-se. O mesmo e amplo (é verdade que um pouco menor do que o da Lancheria) espaço com as mesas onde se bebe, come e conversa. O mesmo e intenso (e exagerado) ruído sonoro que vem unicamente das vozes (aumentadas pelo consumo do álcool e do próprio ruído ambiente que faz com que se fale cada vez mais alto se a intenção é ser ouvido), transformando aquele espaço todo em uma ampla caixa de ressonância. Não há música, seria impossível ter música ali. Há balbúrdia. Os mesmos garçons e a mesma fauna humana. E uma tremenda alegria.
Entro no Casa da Índia, na rua do Loreto em Lisboa, tomo uma cerveja e saio da Lancheria do Parque, na Oswaldo Aranha em Porto Alegre (eu sei, isso é um pouco cortazariano mas, enfim, sou um pouco isso também).
Sempre estou saindo em Porto Alegre, onde quer que eu esteja, onde quer que eu entre. Trago-a inscrita em mim - já escrevi isto em algum lugar -, tem cidades que são assim e que funcionam, sem serem um permanente elemento de comparação, à maneira de um suporte sobre o qual uma outra cidade pode se assentar e tornar-se então visível e reconhecível. Porto Alegre é assim para mim. Lisboa não, é outra coisa, mas que há muito já faz parte da minha memória urbana afetiva. Já não precisa de suporte algum, suas ruas, fachadas, cheiros, caras e cores já estão em mim, mesmo que à noite, caminhando nas imediações do Bairro Alto, eu entre no Casa da Índia e saia na Lancheria do Parque.
Texto originário do Terra Magazine.
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