domingo, setembro 13, 2009

23/06/2009: A Folha apresenta Chris Marker

Um mito da caverna

O ermitão Chris Marker, cineasta e fotógrafo parisiense que não se deixa fotografar, é tema de duas mostras em São Paulo

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Chris Marker se esconde atrás do sorriso de um gato. Não se deixa fotografar e deu sua última entrevista, evasiva até não poder mais, no Second Life. Diz que se informa pela Al Jazeera e pelo canto dos passarinhos do 20º arrondissement. Dá suas opiniões nas tiras do gatinho Guillaume, que publica em jornais franceses.
Nascido Christian François Bouche-Villeneuve, o parisiense de 87 anos simplificou até o nome para o sintético Chris Marker. Prefere o silêncio à fala, a tarja preta no lugar de imagens que não interessam.
Duas mostras em São Paulo vão tentar jogar luz sobre o ermitão Marker. Começa amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil um festival com 33 de seus filmes. Em julho, o Museu da Imagem e do Som abre mostra com 200 fotografias de Marker feitas entre 1952 e 2006. Uma galeria de Nova York e outra de Moscou também fizeram há pouco retrospectivas da obra do artista.
Marker não saiu de Paris e seguiu por e-mails lacônicos os preparativos. "Ele é famoso pela reclusão", diz Bill Horrigan, que cuidou da mostra no MIS e diz ser o único curador a fazer contato, uma vez por ano, com Marker. "Ele protege sua privacidade num grau excessivo."
Também exagera nas doses de modéstia. Marker não se considera um cineasta, mas já ganhou o Urso de Ouro em Berlim por "Descrição de um Combate", de 1960. Filmou com Alain Resnais e Jean-Luc Godard, mas diz que só eles são diretores de verdade. Também não se diz fotógrafo, como foi seu amigo Henri Cartier-Bresson. Ele não gosta de alarde.
Talvez porque já disse tudo que tem a dizer em "Sans Soleil". No filme de 1982 que extrapolou os limites do documentário, ele dividiu o mundo em listas de coisas elegantes, coisas tristes, coisas que não valem a pena filmar e coisas que fazem bater o coração.
Não usa adjetivos, "etiquetas com o preço das coisas". Traduz a ideia de que o "horror tem um nome e tem um rosto" -de Francis Ford Coppola em "Apocalypse Now" e, por extensão, Joseph Conrad no livro "Coração das Trevas"- à noção de que "a beleza absoluta também tem nome e rosto".
Por isso não pensa duas vezes, tanto em seus filmes, quanto nas fotos que faz, em estilhaçar o tempo e manter só a fração, uma das 25 num segundo cinematográfico, detentora dessa beleza ou desse horror.

Instantes suspensos
"Ele amava a fragilidade desses instantes suspensos, essas lembranças que serviam apenas para deixar lembranças", diz a narradora de "Sans Soleil" sobre o protagonista oculto do filme, numa descrição que cabe sem exagero também a Marker.
Ao contrário do cinema tradicional, ele prefere que seus atores e os flagrados nas ruas encarem a câmera. Nas manifestações da juventude parisiense, de maio de 1968 a 2002, na Islândia, em Guiné-Bissau e em Tóquio, sai em busca desses instantes privilegiados.
Marker diz que rouba olhares como "um trombadinha rápido, correndo com seu tesouro". Naquele instante, e há centenas deles na mostra do MIS, ele costuma encontrar o que chama de "rosto da solidão".
"Naquela fração de segundo, o operário chileno sabia que a fábrica nacionalizada era propriedade sua, o boxeador tailandês sabia que tinha perdido, a esquerdista alemã sabia da derrota de seu partido", escreveu Marker sobre seus retratos.
Fez imagens das primeiras eleições na Alemanha depois da queda do Muro de Berlim, de ativistas no Brasil, do início da Perestroika em Moscou, mas não chama sua obra de política. "A política não me interessa", diz. "Me interessa a história."
E a memória. Registrou a mesma esquina de Paris em 1961 e 2001 para mostrar como cresceu ali uma árvore, enquanto o resto do mundo permaneceu igual. "Nós não lembramos, recriamos a memória, como recriamos a história."
Ele acredita na fabricação da narrativa e do real, usando a memória como motor estético. Em "La Jetée", filme de 1962, seu melhor exemplo desse tempo desconstruído e refeito, usou só os fotogramas cruciais para contar a história.
"É preciso que o abandono seja uma festa, que o adeus receba também uma cerimônia."

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 23 de junho de 2009.

Marker reescreve cenas do passado

Artista francês usa imagens antigas, suas e de outras pessoas, para criar obras potentes e atuais; CCBB-SP exibe 33 filmes

Haverá exibição do filme "Sans Soleil" e de documentário sobre Akira Kurosawa; mostra no CCBB-Brasília vai até domingo

PEDRO BUTCHER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Não é o passado que nos domina, são as imagens do passado." Epígrafe do filme "O Túmulo de Alexandre", a frase do pensador e crítico literário George Steiner poderia se aplicar a toda a obra do artista francês multimídia Chris Marker.
Ao reinventar e recontextualizar materiais captados por outras pessoas, em outros tempos, não raro misturando imagens colhidas por ele mesmo, Marker confere aos registros do passado nova potência e atualidade, retirando deles sua condição de fantasma.
Nascido em 1921, na França, Marker é de uma geração formada pelo cinema (e pelos traumas da Segunda Guerra).
Mas, possivelmente, foi o único "cineasta" de sua geração capaz de abraçar de imediato as novas tecnologias da imagem, sem se atrelar à película. Uma decisão que contribuiu para mantê-lo à margem, mas que, com o tempo, mostrou-se visionária.
Uma ideia de cinema, no entanto, sempre serviu de baliza para seu trabalho: aquela do filme-ensaio, proposta pelo cineasta russo Sergei Eisenstein.
Para além da montagem dialética, a operação envolve novas conexões que incluem, sobretudo, o som. Não por acaso, boa parte de seus filmes é narrada em primeira pessoa.
Marker não é um "cineasta político", mas um pensador e poeta da história. Em rara entrevista ao jornal francês "Libération", em 2003, ele falou sobre o estigma do diretor engajado: "Para muitos, engajado quer dizer político, e a política, arte do compromisso -o que lhe diz respeito de fato. Retirado o compromisso, só existem relações de força bruta (...). O que me apaixona é a história, e a política me interessa somente na medida em que ela é o recorte da história no presente".
Mesmo "La Jetée" (a plataforma), um de seus raros trabalhos ficcionais, realizado com fotografias fixas, fala da questão do tempo. O ponto de partida são duas imagens presentes na memória do personagem central, sobrevivente de uma hecatombe nuclear: o rosto de uma mulher e a morte de um homem. Mas o passado, aqui, é também futuro -uma bela síntese dos objetivos de Marker.
Em meio a uma obra farta, que mistura suportes e, em alguns casos, liberta-se da projeção diante de uma plateia (ele foi um dos primeiros artistas a produzir um CD-Rom, por exemplo), dois filmes se destacam na mostra do Centro Cultural Banco do Brasil. Não por acaso, são reflexões sobre o comunismo e sua derrocada: "O Fundo do Ar É Vermelho" (1977), e "O Túmulo de Alexandre" (1992). O primeiro é um épico de três horas, movido pelo contraste entre os movimentos de esquerda do fim dos anos 60 e o autoritarismo soviético, tomando como ponto nevrálgico maio de 68, na França, e a invasão de Praga, em agosto daquele mesmo ano. O uso do material de arquivo é assombroso.
O segundo é formado por seis cartas dirigidas ao cineasta russo Alexandre Medvedkine, autor de "A Felicidade" (1934), uma figura que, na visão de Marker, foi injustamente excluída dos cânones cinematográficos. (detalhe: "A Felicidade" também está na mostra).
Merecem atenção, ainda, "As Estátuas Também Morrem" (1953), correalizado com Alain Resnais, "A.K." (1995), belíssimo filme sobre as filmagens de "Ran", de Akira Kurosawa, e "Um dia de Andrei Arsenevich" (1999), sobre Andrei Tarkovski.


MOSTRA CHRIS MARKER: BRICOLEUR MULTIMÍDIA
Quando: a partir de amanhã, até 5/ 07; qua. a dom. (bb.com.br/cultura)
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil - São Paulo (r. Álvares Penteado, 112, tel.: 0/xx/11/ 3113-3651)
Quanto: R$ 4 (classificação: 12 anos)

Texto também publicado na Folha de São Paulo, de 23 de junho de 2009.


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