sábado, agosto 14, 2010

Morre o historiador Tony Judt

Aos 62, historiador britânico Tony Judt morre nos EUA

Ele sofria desde 2008 de doença neuromuscular progressiva que deixou seu corpo paralisado

Intelectual conhecido pelo livro "Pós-Guerra - Uma História da Europa desde 1945" se manteve ativo até o fim da vida

DE SÃO PAULO

O historiador britânico Tony Judt, 62, autor de "Pós-Guerra - Uma História da Europa desde 1945", morreu na última sexta-feira, segundo nota divulgada ontem pela Universidade de Nova York, onde Judt lecionava.
O historiador -provavelmente o principal intelectual social-democrata em atividade- lutava desde 2008 contra uma esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença neuromuscular progressiva que em poucos meses resultou na paralisia de seu corpo.
Conhecido como doença de Lou Gehrig -em alusão ao jogador de beisebol que morreu aos 37 anos da enfermidade-, o mal provoca a morte das células nervosas. "A ELA constitui uma prisão progressiva sem condicional", escreveu ele, em janeiro, na "The New York Review of Books".
Judt respirava com a ajuda de aparelhos, mas manteve-se ativo, publicando artigos e livros que atacavam o pensamento conservador e a crescente desigualdade econômica na Europa e nos EUA. Formado em instituições-símbolo da academia europeia -a Universidade de Cambridge e a Escola Normal Superior, em Paris-, Judt lecionou em universidades americanas durante a maior parte de sua carreira.
Nascido em Londres, de família judia, foi partidário da política israelense quando jovem. Mas ficou conhecido por críticas à política externa americana, ao futuro da Europa e a Israel.
Em 2006, envolveu-se em uma polêmica ao declarar que "Israel é hoje ruim para os judeus".
Nas palavras do "New York Times", Judt falava "verdades mal-educadas" que despertavam tanto admiração quanto críticas de outros intelectuais. Judt morava em Manhattan, era casado e pai de dois filhos, de 15 e 12 anos.

OBRAS
Sua carreira foi marcada por opiniões contundentes e críticas aos discursos políticos hegemônicos. Dois de seus livros, lançados no Brasil em 2008, defendem ideias polêmicas. Em o "Passado Imperfeito" (Nova Fronteira), acusa intelectuais franceses do pós-Guerra de fazerem vista grossa às perseguições cometidas pelo comunismo.
Já em "Pós-Guerra" (ed. Objetiva), Judt critica Israel por esvaziar o significado do Holocausto. Com quase 900 páginas, o livro faz um denso panorama da história europeia contemporânea.
Seu livro "Reflexões Sobre um Século Esquecido" foi lançado em maio no Brasil. "Ill Fares the Land", sua última obra, ainda é inédita em português.

A DOENÇA
Em texto publicado no caderno Mais! em 10 de janeiro, o historiador descreve a percepção progressiva da doença no próprio corpo.
"O que é diferente na ELA é, em primeiro lugar, que não há perda de sensação (uma bênção dúbia) e, em segundo, que não há dor."
"Em comparação com quase todas as outras doenças graves ou mortais, ficamos à vontade para contemplar tranquilamente e com mínimo desconforto o avanço catastrófico de nossa própria deterioração."
A tecnologia tem ajudado as vítimas da doença, que progride com rapidez diferente em cada paciente. O físico britânico Stephen Hawking, também portador da ELA, consegue trabalhar e se comunicar graças a softwares desenvolvidos no Vale do Silício (EUA).

Notícia publicada na Folha de São Paulo, de 8 de agosto de 2010.


Judt preencheu vazio intelectual no pós-Guerra Fria

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Apesar de ter iniciado carreira acadêmica nos anos 70, Tony Judt emergiu como intelectual público no final dos anos 80 e só em 1993 publicou seu primeiro artigo na "New York Review of Books", da qual se tornaria colaborador frequente.
O fato de ter sido desde sempre um social-democrata -e ao mesmo tempo conhecedor profundo das tradições marxista e conservadora europeias- permitiu que ele ocupasse um lugar de ponta no questionamento da euforia livre-mercadista dos anos 90, quando parte da esquerda ainda se debruçava sobre os escombros do Muro de Berlim.
Judt destacou-se pela crítica da predominância do cálculo econômico na definição das políticas públicas.
Costumava lembrar que os elos de responsabilidade coletiva forjados pelo Estado de bem-estar representaram um antídoto contra o risco autoritário de direita e de esquerda nas democracias de massa no século 20 - risco que temia ser esquecido.
Nos EUA, onde vivia há 23 anos, Judt marcou distância da arrogância resultante do excesso de poder que se seguiu à vitória do país na Guerra Fria.
Em 2006, pondo em questão o discurso renovado da "missão civilizatória" ocidental, cobrou dos americanos uma revisão do seu próprio histórico de apoio a ditaduras e massacres no antigo Terceiro Mundo.
Mas ele era um polemista nem sempre previsível, e não se enquadrava em grupos políticos ou correntes acadêmicas -embora tivesse a ambição de transmitir em sua obra um "quadro amplo" da história, como o também britânico Eric Hobsbawm, cujo trabalho admirava, mas de quem divergia.
Diferentemente de outros intelectuais que basearam sua trajetória na crítica ao stalinismo, como Bernard-Henri Lévy e Christopher Hitchens, Judt não aderiu à cruzada contra um suposto "fascismo islâmico" no pós-11 de Setembro.
Chamou de "idiotas úteis de [George W.] Bush" os progressistas que endossaram a "guerra ao terror".
Mas antes disso apoiou as intervenções da Otan (aliança militar ocidental) nos Bálcãs quando da dissolução da antiga Iugoslávia, distanciando-se de expoentes da esquerda anti-imperialista, como Noam Chomsky.
"Não acredito que deveríamos ter regras morais que se apliquem a tudo para a ação política internacional. A política diz respeito ao possível", disse à revista "Prospect".

Texto também da Folha de São Paulo. Se bem que eu acho meio forte falar em "vazio intelectual do pós-guerra fria".

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