sábado, agosto 14, 2010

Morre o historiador Tony Judt

Aos 62, historiador britânico Tony Judt morre nos EUA

Ele sofria desde 2008 de doença neuromuscular progressiva que deixou seu corpo paralisado

Intelectual conhecido pelo livro "Pós-Guerra - Uma História da Europa desde 1945" se manteve ativo até o fim da vida

DE SÃO PAULO

O historiador britânico Tony Judt, 62, autor de "Pós-Guerra - Uma História da Europa desde 1945", morreu na última sexta-feira, segundo nota divulgada ontem pela Universidade de Nova York, onde Judt lecionava.
O historiador -provavelmente o principal intelectual social-democrata em atividade- lutava desde 2008 contra uma esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença neuromuscular progressiva que em poucos meses resultou na paralisia de seu corpo.
Conhecido como doença de Lou Gehrig -em alusão ao jogador de beisebol que morreu aos 37 anos da enfermidade-, o mal provoca a morte das células nervosas. "A ELA constitui uma prisão progressiva sem condicional", escreveu ele, em janeiro, na "The New York Review of Books".
Judt respirava com a ajuda de aparelhos, mas manteve-se ativo, publicando artigos e livros que atacavam o pensamento conservador e a crescente desigualdade econômica na Europa e nos EUA. Formado em instituições-símbolo da academia europeia -a Universidade de Cambridge e a Escola Normal Superior, em Paris-, Judt lecionou em universidades americanas durante a maior parte de sua carreira.
Nascido em Londres, de família judia, foi partidário da política israelense quando jovem. Mas ficou conhecido por críticas à política externa americana, ao futuro da Europa e a Israel.
Em 2006, envolveu-se em uma polêmica ao declarar que "Israel é hoje ruim para os judeus".
Nas palavras do "New York Times", Judt falava "verdades mal-educadas" que despertavam tanto admiração quanto críticas de outros intelectuais. Judt morava em Manhattan, era casado e pai de dois filhos, de 15 e 12 anos.

OBRAS
Sua carreira foi marcada por opiniões contundentes e críticas aos discursos políticos hegemônicos. Dois de seus livros, lançados no Brasil em 2008, defendem ideias polêmicas. Em o "Passado Imperfeito" (Nova Fronteira), acusa intelectuais franceses do pós-Guerra de fazerem vista grossa às perseguições cometidas pelo comunismo.
Já em "Pós-Guerra" (ed. Objetiva), Judt critica Israel por esvaziar o significado do Holocausto. Com quase 900 páginas, o livro faz um denso panorama da história europeia contemporânea.
Seu livro "Reflexões Sobre um Século Esquecido" foi lançado em maio no Brasil. "Ill Fares the Land", sua última obra, ainda é inédita em português.

A DOENÇA
Em texto publicado no caderno Mais! em 10 de janeiro, o historiador descreve a percepção progressiva da doença no próprio corpo.
"O que é diferente na ELA é, em primeiro lugar, que não há perda de sensação (uma bênção dúbia) e, em segundo, que não há dor."
"Em comparação com quase todas as outras doenças graves ou mortais, ficamos à vontade para contemplar tranquilamente e com mínimo desconforto o avanço catastrófico de nossa própria deterioração."
A tecnologia tem ajudado as vítimas da doença, que progride com rapidez diferente em cada paciente. O físico britânico Stephen Hawking, também portador da ELA, consegue trabalhar e se comunicar graças a softwares desenvolvidos no Vale do Silício (EUA).

Notícia publicada na Folha de São Paulo, de 8 de agosto de 2010.


Judt preencheu vazio intelectual no pós-Guerra Fria

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Apesar de ter iniciado carreira acadêmica nos anos 70, Tony Judt emergiu como intelectual público no final dos anos 80 e só em 1993 publicou seu primeiro artigo na "New York Review of Books", da qual se tornaria colaborador frequente.
O fato de ter sido desde sempre um social-democrata -e ao mesmo tempo conhecedor profundo das tradições marxista e conservadora europeias- permitiu que ele ocupasse um lugar de ponta no questionamento da euforia livre-mercadista dos anos 90, quando parte da esquerda ainda se debruçava sobre os escombros do Muro de Berlim.
Judt destacou-se pela crítica da predominância do cálculo econômico na definição das políticas públicas.
Costumava lembrar que os elos de responsabilidade coletiva forjados pelo Estado de bem-estar representaram um antídoto contra o risco autoritário de direita e de esquerda nas democracias de massa no século 20 - risco que temia ser esquecido.
Nos EUA, onde vivia há 23 anos, Judt marcou distância da arrogância resultante do excesso de poder que se seguiu à vitória do país na Guerra Fria.
Em 2006, pondo em questão o discurso renovado da "missão civilizatória" ocidental, cobrou dos americanos uma revisão do seu próprio histórico de apoio a ditaduras e massacres no antigo Terceiro Mundo.
Mas ele era um polemista nem sempre previsível, e não se enquadrava em grupos políticos ou correntes acadêmicas -embora tivesse a ambição de transmitir em sua obra um "quadro amplo" da história, como o também britânico Eric Hobsbawm, cujo trabalho admirava, mas de quem divergia.
Diferentemente de outros intelectuais que basearam sua trajetória na crítica ao stalinismo, como Bernard-Henri Lévy e Christopher Hitchens, Judt não aderiu à cruzada contra um suposto "fascismo islâmico" no pós-11 de Setembro.
Chamou de "idiotas úteis de [George W.] Bush" os progressistas que endossaram a "guerra ao terror".
Mas antes disso apoiou as intervenções da Otan (aliança militar ocidental) nos Bálcãs quando da dissolução da antiga Iugoslávia, distanciando-se de expoentes da esquerda anti-imperialista, como Noam Chomsky.
"Não acredito que deveríamos ter regras morais que se apliquem a tudo para a ação política internacional. A política diz respeito ao possível", disse à revista "Prospect".

Texto também da Folha de São Paulo. Se bem que eu acho meio forte falar em "vazio intelectual do pós-guerra fria".

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segunda-feira, junho 22, 2009

"Baseado em fatos reais"

Baseado em fatos reais


Em "O Crime do Restaurante Chinês", o historiador Boris Fausto reconstitui uma chacina ocorrida em São Paulo em 1938

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Se a prática da micro-história tivesse por parâmetro a qualidade do recente livro do historiador e colunista da Folha Boris Fausto, "O Crime do Restaurante Chinês -Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos Anos 30", cairiam no vazio as acusações de que ela é uma contrafação da escrita da história.
A micro-história é um modo do fazer historiográfico que se impôs desde a década de 1970, contrastando com os quadros panorâmicos de épocas marcantes, configurados, conforme a orientação ideológica do autor, seja por grandes heróis, seja por graves transformações infraestruturais.
Considerada de maneira não preconceituosa, a micro-história encontra seu primeiro grande exemplo na análise da duplicidade do comportamento religioso dos chamados nicodemistas -aqueles que, convertendo-se à Reforma, continuavam a participar das cerimônias da igreja de Roma.
Foi realizada por Carlo Ginzburg em "Il Nicodemismo - Simulazione e Dissimulazione Religiosa nell'Europa del 500" (O Nicodemismo - Simulação e Dissimulação Religiosa na Europa do Quinhentos, 1970). Sua peça mais conhecida é, entretanto, "O Queijo e os Vermes" (1976), do mesmo autor [no Brasil, pela Cia. das Letras].
Para a localização do leitor não especializado, vale considerar que o surgimento da micro-história é uma das consequências do questionamento da escrita da história, realizado sobretudo na década de 1970.
Essa década, bastante fecunda para o redirecionamento das ciências sociais, se caraterizou, do ponto de vista dessas, pela crítica acerba do positivismo ainda vigente -como vigente ainda permanece-, com sua ênfase na factualidade, no empirismo da análise, no primado de pressupostos teóricos não questionados, assim como pela discussão do papel da narrativa, na escrita da história.

Narrativa literária
Tal questionamento ainda se articulava com a fecundidade então alcançada pelos estudos teórico-literários.
Daí a transversalidade de questões como a da própria narrativa. Se a narrativa é um recurso frequente na escrita da história e na ficção romanesca, seria correto manter-se a distinção entre elas?
Além do mais, como a narrativa se impõe nas reportagens jornalísticas e televisivas, por que essas não teriam a "dignidade" acadêmica reservada à história e aos gêneros literários? Tais perguntas se tornavam particularmente sérias porque se referiam a áreas que sempre haviam desdenhado a indagação teórica.
Daí derivavam renhidos antagonismos. Assim, um dos principais representantes da micro-história, o já citado Carlo Ginzburg, se tornaria um ardoroso adversário de Hayden White porque, em sua "Meta-História" [Edusp], o ensaísta norte-americano advogava uma proximidade entre narrativa literária e historiográfica, simplesmente intolerável a um discípulo de Arnaldo Momigliano [1908-87], como Ginzburg.
Ora, a leitura de "O Crime do Restaurante Chinês" será um instrumento indispensável para o leitor que se levante essas questões.
A micro-história não é um gênero ficcional porque não sai do círculo do documentado.
Não é que as conclusões estejam documentadas (!) -o que tornaria a pesquisa ociosa-, mas sim que só se baseiam em elementos inferidos a partir de documentos.
A ficção pode bem partir da mesma massa documental, sem por isso estar obrigada a segui-la fielmente.
Um bom exemplo seria "A Sangue Frio" (1966), de Truman Capote [Cia. das Letras]. Já a reportagem, porque se supõe manter fiel aos fatos sucedidos, sem deixar de recorrer a recursos ficcionais (sobretudo de ordem sensacionalista), é, ao menos para alguns de seus defensores, a "prova" de que a separação entre escrita da história e ficção não passaria de uma "ficção" acadêmica.

Além do folclore
O espaço de que disponho não me permite mais do que apontar o problema.
Tenho a meu favor a qualidade do livro que resenho: ele demonstra que um exercício de micro-história não precisa se confundir com um documentalismo estéril ou folclórico; que, na verdade, os eventos históricos são grandes ou pequenos menos em razão de si mesmos do que da excepcionalidade ou da mediocridade dos que os examinam.
Neste sentido, a própria articulação indicada pelo subtítulo do livro, entre futebol, Carnaval e Justiça, depende muito menos da coincidência do crime com o Carnaval e as proximidades da Copa do Mundo de 1938 do que da capacidade do autor em relacioná-los.
Mas não basta assinalá-lo.
Será ainda preciso chamar a atenção para o fato de que a micro-história não é apenas uma via daquilo que, vindo do particular, terminaria por reiterar os resultados passíveis de serem atingidos pela macro-história. Quando assim sucede a concordância apenas confirma algum clichê a ser compartilhado por historiadores e leitores.
É bem o contrário que ocorre no caso presente.
Boris Fausto ressalta que a absolvição do acusado da chacina sucedida em um modesto restaurante chinês, em março de 1938, evidencia que "a circunstância da pobreza se converte em traço de simpatia aos olhos da opinião pública", sem que, por isso, as reiteradas alusões à cor do acusado deixem de confirmar o racismo presente em toda a circunstância.
Da mesma maneira, ante o caráter duvidoso das provas incriminatórias, "um corpo de jurados constituído por gente da elite paulistana e juízes togados" decide em favor do réu, quando a suposição usual seria de que sucedesse o contrário.
Que isso significa senão que a escrita da história é bem mais imprevisível do que pretendem os clichês acerca das ciências ditas "duras"?


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS
Autor: Boris Fausto
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 45 (264 págs.)

Texto do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 19 de abril de 2009.

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quinta-feira, outubro 02, 2008

Quase memória

Quase memória


Relação do brasileiro com seu passado é mais tênue do que aquela construída nos países europeus e mesmo nas demais nações latino-americanas



PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Na última geração, os europeus experimentaram um "boom de memória", uma onda de interesse, tanto acadêmico quanto popular, pelas lembranças; não apenas memórias individuais, mas também coletivas -em outras palavras, imagens compartilhadas do passado.
Essa onda de interesse foi ao mesmo tempo expressada e incentivada pela série de sete livros de enorme sucesso lançada pelo estudioso-editor Pierre Nora entre 1984 e 1993, sob o título "Les Lieux de Mémoire" [Os Lugares de Memória].
A idéia central de Nora foi pedir a seus colaboradores que se concentrassem em lugares associados a memórias coletivas do passado francês - lugares geográficos, como Versalhes ou o Panteão, mas também lugares metafóricos, como a "Enciclopédia Larousse" ou mesmo a "Marselhesa".
A série foi imitada em outros países europeus, como a Alemanha e a Itália. Poderia ou deveria ser imitada também no Brasil?
Poder-se-ia afirmar que no Brasil ou em outros lugares do Novo Mundo um empreendimento como o de Nora seria inadequado, pois, em comparação com a Europa, nas Américas um edifício é considerado antigo quando data da década de 1930, e a população de muitos países é relativamente jovem e mais voltada para o futuro do que para o passado.
Na verdade, os brasileiros parecem ainda menos preocupados com o passado do que as populações de outros países latino-americanos, especialmente a Argentina.
De todo modo, o Brasil tem seus próprios "lugares de memória". Os nomes de muitas localidades, de Iguaçu a Paraíba, têm um significado em tupi e assim nos lembram, ou deveriam lembrar, os tupinambás e outros "primeiros povos".

Cidades, pessoas
As cidades, por outro lado, muitas vezes evocam memórias da Europa. Os imigrantes tentaram recriar nas Américas um mundo conhecido, batizando suas cidades de Belém, Nova Friburgo, Nova Odessa e assim por diante.
Em comparação, os escravos africanos que foram trazidos para o Brasil contra a sua vontade não tiveram a oportunidade de impor nomes familiares à paisagem estranha. No entanto tentaram a reconstrução simbólica do espaço africano nos terreiros de candomblé.
As memórias locais também são importantes. Os nomes de algumas cidades e muitas ruas se referem a líderes e acontecimentos locais -João Pessoa, avenida Nove de Julho etc. Nomes como esses foram conseqüência de iniciativas oficiais.
Um testemunho mais direto de memórias populares ou atitudes em relação ao passado vem dos nomes pessoais.
Para um visitante europeu, é uma espécie de surpresa descobrir quantos brasileiros têm nomes de heróis culturais como Edison, Milton, Newton ou Washington.
O único problema é descobrir se esses nomes foram escolhidos pelos pais por sua sonoridade ou por sua associação com o Reino Unido, os EUA, a ciência ou a democracia.
Um equivalente brasileiro a "Os Lugares de Memória", se fosse publicado, como espero que um dia o seja, naturalmente incluiria as comemorações oficiais de eventos como a descoberta do Brasil pelos portugueses ou a expulsão dos portugueses da Bahia em 1823.
Como no caso da Europa, os locais de memória incluiriam museus e monumentos (embora os visitantes europeus possam se surpreender ao ver monumentos aos imigrantes no Brasil).
Também haveria espaço para pinturas históricas como "Independência ou Morte", de Pedro Américo, ou suas imagens da guerra contra o Paraguai.
De todo modo, os principais lugares de onde a maioria dos brasileiros extrai suas visões do passado são certamente o Carnaval e a telenovela.
Temas históricos são comuns nos enredos das escolas de samba do Rio e seus equivalentes em outras cidades -eventos como a descoberta do Brasil ou a abolição da escravatura e indivíduos como Zumbi ou o imperador d. Pedro 2º. Quanto às telenovelas, pense-se no sucesso de "A Escrava Isaura" em 1976 e novamente em 2004; e de "Sinhá Moça" em 1986 e também 20 anos depois, assim como novelas relacionadas à história mais recente, de "Éramos Seis" (1994) a "Terra Nostra" (1999).

Novelas e Carnaval
Com um pouco de exagero, poderíamos comparar as visões do passado brasileiro apresentadas nesses dois meios de comunicação. A visão carnavalesca tende a ser crítica e a apresentar o ponto de vista do escravo. Por exemplo, em 1988, centenário da abolição da escravidão, o tema da Mangueira foi "Cem Anos de Liberdade - Realidade ou Ilusão?".
As novelas, por sua vez, geralmente apresentam uma visão de harmonia social -embora apareçam os fazendeiros e capatazes cruéis, os protagonistas (em geral brancos ou mestiços) são generosos e idealistas.
Em suma, poder-se-ia dizer que o Brasil tem o que poderíamos chamar de um "regime de memória" próprio. Em contraste com a França e outras partes da Europa, há menos preocupação com o passado, e os lugares associados às memórias também são diferentes.
O contraste entre o regime de memória do Brasil e o de seus vizinhos hispano-americanos não é menos notável. As estátuas eqüestres de líderes como Bolívar, San Martín e Artigas não são muito presentes no Brasil (com exceção do Rio Grande do Sul, pelo menos), uma lembrança de que o Brasil conquistou a independência por meios mais pacíficos do que a América espanhola.
Uma estátua foi oferecida a dom Pedro 2º depois da Guerra do Paraguai, mas o imperador a recusou, enquanto o marechal Deodoro teve de esperar até 1937 e as políticas de comemoração do regime Vargas para que sua estátua eqüestre fosse erguida no Rio.
Outro contraste entre o Brasil e seus vizinhos, especialmente a Argentina, o Chile e o Peru, se refere às memórias recentes de regimes autoritários e às pessoas "desaparecidas".
O Brasil não tem equivalente à Comissão da Verdade chilena -embora uma equipe de pesquisadores patrocinada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, ex-arcebispo de São Paulo, tenha publicado "Brasil, Nunca Mais", um relato dos abusos aos direitos humanos durante a ditadura militar.
Até agora a anistia e a amnésia -conceitos associados- predominaram. Essa situação vai mudar em um futuro próximo ou o regime de memória do Brasil continuará original?


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 28 de setembro de 2008.


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quarta-feira, setembro 10, 2008

O roubo da história

O roubo da história

Antropólogo fundamental, Jack Goody ataca a superioridade do Ocidente e diz que democracia e capitalismo já existiam no Oriente

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Muitos se perguntam se num futuro mais ou menos próximo o Ocidente perderá para a China a hegemonia mundial. Mas, para o britânico Jack Goody, um dos principais antropólogos vivos, a superioridade ocidental é em grande parte irreal também se olharmos para o passado.
Trata-se, para ele, de uma ilusão sustentada num modo distorcido de ver a história -um "roubo" da história.
É justamente esse o nome do denso e polêmico livro que o professor emérito da Universidade de Cambridge acaba de lançar na Inglaterra e que está saindo também no Brasil.
Goody não deixa pedra sobre pedra ao criticar autores clássicos como Karl Marx, Max Weber, Norbert Elias, e ao mostrar que democracia, capitalismo, liberdade e até o amor estão longe de ser invenções especificamente ocidentais ou conquistas de um processo histórico supostamente exclusivo.
Tal engano não é senão fruto do etnocentrismo que tenta justificar ou mesmo eternizar, no plano das idéias, uma dominação no nível dos fatos, construída pelos regimes coloniais e pela Revolução Industrial, diz Goody na entrevista abaixo.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif

FOLHA - O que o sr. quer dizer com "roubo da história"?
JACK GOODY
- Quero dizer que os europeus escreveram a história a partir de seu ponto de vista, que parte da vantagem e excepcionalidade do Ocidente e dá muito pouca atenção às realizações do resto, especialmente Ásia e Oriente Próximo.

FOLHA - Como este livro se articula com seus trabalhos anteriores?
GOODY
- Em vários trabalhos tentei mostrar como as sociedades letradas da Eurásia oriental e ocidental têm muito mais em comum do que a ciência social sugere. O Ocidente não foi "único", como se poderia pensar -não na maneira profunda como muitos estudiosos sugerem.

FOLHA - As ciências sociais estão ainda dominadas pelo etnocentrismo, mesmo depois do boom dos estudos culturais e da antropologia pós-moderna?
GOODY
- É verdade que a antropologia fez alguma coisa para modificar o etnocentrismo, mas ela se comprometeu com uma distinção entre sociedades tradicionais e modernas, a qual comete negligências e endossa uma visão ocidental e contemporânea da modernidade.

FOLHA - O sr. concorda com a interpretação de Claude Lévi-Strauss segundo a qual a história é um mito ocidental?
GOODY
- Não penso que toda história seja um mito ocidental. Outras sociedades examinaram seu passado, mas isso foi amplamente negligenciado pelo Ocidente, especialmente em sua explicação da modernização e do capitalismo.

FOLHA - A democracia não foi criada em Atenas, como se pensa?
GOODY
- Não. Atenas pode ter desenvolvido uma forma particular de democracia com a votação por escrito, mas a democracia existia em Cartago, em algumas cidades da Mesopotâmia, na Índia, na China e em muitas sociedades "tribais".

FOLHA - Por que Karl Marx e Max Weber têm teses erradas sobre as origens do capitalismo?
GOODY
- Porque o capitalismo estava muito mais disseminado -mesmo o industrial, embora tenha se desenvolvido mais com o uso da energia a vapor na Inglaterra. Mas ele foi um prolongamento da produção de algodão e seda na Índia e na China. Esses autores negligenciaram a contribuição da Ásia quando se referem ao seu modo de produção [Marx] e à ausência de ética protestante [Weber].

FOLHA - Por que o sr. também critica tão enfaticamente as obras de Norbert Elias e Fernand Braudel?
GOODY
- Elias me parece atribuir a civilização à Europa e negligenciar o resto. Braudel é muito mais aceitável, mas põe ênfase excessiva na contribuição européia à modernidade, o que parece ser um equívoco, tendo-se em vista o que está acontecendo na China e na Índia.

FOLHA - O sr. parece sugerir o abandono do conceito de capitalismo. Por quê?
GOODY
- Penso que esse termo é usado para sobrevalorizar a diferença entre a Europa (que o inventou) e a Ásia (que não pôde). Isso parece ser um conceito do século 19 que deveria ser usado com mais cuidado.

FOLHA - Medievalistas como Jacques le Goff tendem a distorcer o que foi a verdadeira Idade Média, quando combatem o estereótipo de "idade das trevas"?
GOODY
- Só houve um Renascimento na Europa justamente porque esse continente havia se submetido a uma "idade das trevas", que rejeitava as realizações greco-romanas na pintura (exceto a religiosa), escultura, teatro, exceto com propósitos religiosos. A ciência também sofreu um retrocesso e nos atrasamos com relação à Ásia de muitas maneiras, como [Joseph] Needham mostrou.

FOLHA - O sr. também afirma que o amor romântico esteve longe de ser uma invenção ocidental, como medievalistas apontam. Poder-se-ia então dizer que se trata de um sentimento universal, e não de uma construção histórica?
GOODY
- A maioria das sociedades têm o amor romântico, embora algumas lhe dêem maior importância do que outras. Ele é especialmente desenvolvido em culturas letradas.

FOLHA - Como essa nova visão da história que o sr. defende ajuda a pensar o significado e a tendência da atual globalização?
GOODY
- A Ásia sempre foi parte da cena "global". A China foi a maior potência exportadora no século 18. Nós voltamos agora a uma posição anterior aos desenvolvimentos industriais do século 19. A atual "globalização" significou a disseminação global sobretudo da cultura americana, em termos de filmes e música, mas a Ásia também deixa sua marca nesse aspecto. A comunicação não se dá de uma forma única, mas a eletrônica certamente lhe deu escala mundial, em termos de mídia.

FOLHA - Os Jogos Olímpicos de Pequim serão vistos no futuro como uma espécie de celebração da nova hegemonia mundial da China?
GOODY
- Eles não celebram a nova hegemonia mundial da China, mas assinalam o fim do predomínio europeu, que sua própria visão teleológica [da história] considera começar na Antigüidade grega.


O ROUBO DA HISTÓRIA
Autor:
Jack Goody
Tradução: Luiz Sérgio D. Silva
Editora: Contexto (0/xx/11/3832-5838)
Quanto: R$ 49,90 (368 págs.)

Do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 31 de agosto de 2008.

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sábado, maio 10, 2008

História Contrafactual

História contrafactual

DOIS PODEROSOS símbolos históricos brasileiros estavam em exibição nesta semana, ou deveriam estar. Em resumo, "Tiradentes", de um lado, e "1808", do outro.
Trata-se de mitologias em certa medida inventadas: o mito cultivado pela Velha República, no século 19, em torno do alferes Joaquim José da Silva Xavier, ante a nova mitologia que vem emergindo com a reabilitação do príncipe herdeiro dom João no bicentenário de sua chegada ao Rio de Janeiro a fim de estabelecer uma corte européia transoceânica em solo brasileiro.
Os mineiros modernos fazem tudo o que podem a cada Dia de Tiradentes, como fizeram na segunda-feira, para fazer da solene lembrança de aspirações tragicamente abortadas de independência, república progressista e constitucional e soberania nacional -defendidas por Tiradentes e seus colegas de conspiração em 1789- um circo político paroquiano. Os cariocas, enquanto isso, fizeram da celebração do 1808 uma desculpa para "re-portuguesar" a historiografia do período e celebrar todas as coisas que Tiradentes havia tentado rejeitar e repudiar: monarquia, deferência e sujeição às preocupações e envolvimentos europeus.
Estranhamente, não sabemos que aparência tinha Tiradentes. Os fragmentos de documentação que sobrevivem do século 18 indicam, porém, que era carismático, persuasivo, contencioso, inimigo das convenções e corajoso. Para "1808", por outro lado, temos um rosto definido com muita clareza em múltiplos retratos: o príncipe regente, dom João, era certamente desprovido de carisma, cronicamente indeciso, muito acomodado e excessivamente gordo e feio.
Mas um desses homens, Tiradentes, fracassou, enquanto o outro, dom João, apesar de toda a sua indecisão, agiu quando era necessário agir e tomou a extraordinária medida de transferir a corte portuguesa ao Brasil -onde ele estaria seguro contra as ameaças de Napoleão e do exército deste, bem como mais independente da Grã-Bretanha e de sua poderosa marinha. Tiradentes tentou mudar a história; dom João conseguiu.
As conseqüências desse fracasso e desse sucesso, sem dúvida, ajudaram a fazer do Brasil o que ele é. O legado de dom João envolvia continuidade, autoridade, centralismo, burocracia e unidade territorial. O caminho da rebelião, democracia, federalismo e cidadania participativa que Tiradentes propunha não foi seguido.
Será que o Brasil teria se saído melhor caso Tiradentes tivesse triunfado? É impossível dizer. Mas certamente teria sido diferente.

Texto de Kenneth Maxwell, com tradução de Paulo Migliacci, na Folha de São Paulo, de 24 de abril de 2008 (para assinantes).

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terça-feira, outubro 09, 2007

Das Crônicas do Heuser: A História Reescrita

Lembrei-me de uma aula de Psicologia da Educação B, ao ler o jornal que mencionava um artigo publicado na revista francesa L'Express da semana passada. Aquela aula foi prática. Grupos de alunos, de cada área, davam aulas aos colegas. Os alunos da Licenciatura em História prepararam uma aula sobre exatamente isso: História. Mostraram como se observa a história, as fontes, etc. Ficou bem claro que ao falarmos de história, falamos de eventos no tempo, protagonizados por alguém e observados por alguém. Não há história sem o homem.

Parece bem evidente que os mesmos eventos podem ser vistos com olhos diferentes, conforme o tempo. Reescrevemos a história, conforme caem barreiras, pudores, preconceitos e medos. Vilões de hoje poderão ser os heróis de amanhã, e vice-versa. Adolf Hitler foi de ídolo a vilão, para não se dizer monstro. Entre os heróis de ontem e vilões de hoje, incluía-se Josef Stalin, o Paisinho dos Povos, aquela figura com cara de vovô bondoso e hábitos genocidas. Pois o Painho soviético mandou matar entre três milhões de pessoas, na estatística mais otimista, e nove milhões de pessoas. Outros falam de números ainda maiores. Stalin disputa o troféu do genocídio com Hitler, com o cambojano Pol Pot e outros não tão bem – ou mal – sucedidos, alguns bem atuais.

Stalin passou de herói a vilão. Até há pouco. O governo russo mandou seus historiadores reescreverem a história russa, materializando o livro História Contemporânea da Rússia – 1945-2006. E o Painho soviético brilhou novamente como herói. Esqueceram-se da época em que o homem esteve mais ocupado, exterminando gente, antes de 1945. Em abril de 1940, na floresta polonesa de Katyn, 22.500 oficiais poloneses foram mortos pelas tropas russas, comandas por Beria, braço direito (e esquerdo?) de Stalin. Hitler acabou levando a culpa pelo episódio, somente esclarecida oficialmente em 1992. Na nova releitura da história russa, Stalin aparece como o homem que transformou a Rússia na superpotência do pós-guerra, o que não deixa de ser verdade. Porém, esquecer as purgas políticas é um grande erro histórico. Os Gulags, as Katyns, os expurgos e as deportações foram esquecidos. Restou o bom homem. Muitos historiadores reclamaram. O governo russo, no entanto, alega que os historiadores que estudaram História, pagos pelo estado, devem escrever aquilo que o povo (governo?) quer ler. Ou seja, mandam reescrever a história conforme lhes convêm. Sabe-se que a história muito recente pode ser relatada de modo muito diferente pelos periódicos, conforme seus alinhamentos políticos. Contudo, um estado moderno mandar reescrever a história não tão recente, dessa forma, é bizarro. O que descobriremos a seguir? Tenho medo das releituras que farão por aqui.


www.pauloheuser.blogspot.com


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