O fim do livro impresso
O fim do livro impresso
VENHO DE alguns dias em Lisboa, onde mal informados de lá me colocaram no júri que avaliou os originais concorrentes ao primeiro Prêmio LeYa -novo grupo editorial que destinou cem mil euros ao vencedor. O regulamento estabelecia que seriam julgadas somente obras inéditas, embora os autores pudessem ter publicados outros textos no mesmo gênero literário. O sigilo foi absoluto, somente após a decisão dos julgadores seria aberto o envelope com o nome do vencedor. Até então, todo o material do concurso correria com um pseudônimo. Um sistema bastante usual, levado a sério, sem tramóias ou pressões, funciona com a isenção desejada para este tipo de avaliação.
O prêmio tinha caráter internacional, abrangia Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e Timor Leste. E o júri também o era, com representantes de países lusófonos, sob a presidência do escritor Manuel Alegre, poeta, romancista, vice-presidente do Congresso e ex-candidato à presidência da República.
Foi impressionante o número de concorrentes: 422. Numa época em que se discute o funeral do romance e o fim do livro impresso, a vitalidade do gênero, pelo menos em língua portuguesa, continua em alta. Oito originais foram selecionados pela própria editora e submetidos a um júri em que havia apenas um gato pingado que era eu próprio.
Predominaram brasileiros nas duas fases do prêmio. Dos oito finalistas, somente um era português. E por seis a um, ganhou um mineiro de 60 anos, Murilo Antônio de Carvalho, com um longo e bem elaborado romance, "O Rastro do Jaguar". Ao comunicarmos a vitória, ele custou a entender do que se tratava, estava numa canoa, perdido num rio da Amazônia, a três dias de distância do povoado mais próximo. Informou que havia escrito o livro havia tempo, soube do concurso pela imprensa e mandara o original para ver no que podia dar. E deu.
Bem, esta seria a notícia em si, mas ela exige um comentário de minha parte. Continua-se escrevendo -ou, como dizem os portugueses, continua-se "a escrever". Por isso ou aquilo, há dentro de cada ser humano um escritor potencial, ou seja, uma pessoa que tem o gosto ou a necessidade de transmitir aos outros a sua visão de mundo ou a sua história. Com o advento da comunicação eletrônica, nunca antes -como diria Lula- tanta gente está escrevendo na telinha dos computadores.
Não posso falar pelos outros, mas o meu caso não foi nem gosto nem a necessidade. Foi o instinto de sobrevivência não na posteridade mas na minha própria atualidade. Fui mudo até os cincos anos e quando comecei a falar, falava tudo errado, trocando letras e pronúncias. Já contei esta história por aí: fui falar que uma vizinha gostava de cozinhar e em vez de "fogão" disse "fodão".
Para evitar vexames, refugiei-me na escrita até que minha mãe me avisou que enquanto eu não aprendesse a dizer "lingüiça", ela jamais faria meu prato então predileto. Eu dizia "lintiça". Para ser devidamente abastecido, passei a escrever bilhetes para ela, fui talvez o primeiro cara do mundo que usou a porta de uma primitiva geladeira para deixar um aviso doméstico. Escrevia lingüiça corretamente, sem o trema que está para ser abolido pelo novo acordo ortográfico. Eu não sabia que estava à frente do meu tempo, embora atrasado no tempo dos outros.
Voltando ao Prêmio LeYa: o anúncio oficial foi feito na Feira de Frankfurt, semana passada. Na mesma feira onde editores de todo o mundo perceberam o ocaso do livro impresso, guttemberguiano, substituído pelos livros eletrônicos que começam a tomar conta do mercado cultural.
Homem terminal, escritor terminal, não estou muito preocupado com isso. Faço parte de uma cultura também terminal. Mesmo assim, se fosse avisado a tempo, talvez tivesse mandado o 423º original para Lisboa. Alegando minha suspeição, me dispensaria de atravessar o Atlântico, ida e volta, para avaliar os originais dos outros.
Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 24 de outubro de 2008.
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