segunda-feira, abril 27, 2009

Sociedade unha-de-fome

Sociedade unha-de-fome

Em "A Vida Que Você Pode Salvar", o filósofo Peter Singer diz que indivíduos deveriam fazer mais doações para tirar o mundo da pobreza

DWIGHT GARNER

Você é uma boa pessoa? Seria possível responder que tudo depende de como se define a palavra "boa". Em um mundo de demônios facilmente identificáveis -Osama bin Laden, Bernard Madoff etc.-, a maioria de nós sente que está basicamente do lado dos anjos.
Trabalhamos com afinco, pagamos nossas contas, tentamos criar bem os nossos filhos, fazemos trabalhos voluntários aqui e acolá e, em caso de dúvida, sempre seguimos as normas do bem. Por que então não nos darmos o benefício da dúvida?
O novo livro de Peter Singer sobre a pobreza no mundo, "The Life You Can Save" [A Vida Que Você Pode Salvar, Random House, 206 págs., US$ 22, R$ 49], está aqui para revelar que não somos as pessoas que pensamos ser, quase todos nós.
Em um planeta repleto de sofrimento tão evidente e tão generalizado, escreve, "há algo de profundamente distorcido em nossas visões amplamente aceitas quanto ao que significa viver uma vida de bondade".
Singer, professor de bioética na Universidade Princeton, fez sua carreira a partir do ato de causar desconforto nos outros.
Seu livro mais conhecido, "Libertação Animal", de 1975, está entre os textos fundadores do movimento contemporâneo de defesa dos direitos dos animais. Vem trabalhando com as ideias de seu mais recente livro pelo menos desde 1972, quando publicou o influente artigo "Famine, Affluence, and Morality" [Fome, Afluência e Moralidade].
Singer de forma nenhuma é o único pensador sério sobre a pobreza, mas com "A Vida Que Você Pode Salvar" se tornou instantaneamente o mais legível e o mais enfático entre eles.
O livro é em parte argumentação racional, em parte manifesto, em parte manual de instruções. É um volume que sugere que, diante do fato de que 18 milhões de pessoas morrem desnecessariamente a cada ano nos países em desenvolvimento, "há uma mácula moral em um mundo rico como o nosso".
Não estamos fazendo o suficiente para ajudar nossos irmãos humanos.

Além das intuições
Os seres humanos acreditam intuitivamente que devemos ajudar os outros em seus momentos de necessidade, escreve Singer, "no mínimo quando podemos vê-los e quando somos as únicas pessoas capazes de salvá-los". Mas precisamos ir além dessas intuições, declarou Singer.
E por isso, no começo de "A Vida Que Você Pode Salvar", propõe o seguinte argumento lógico, que citarei na íntegra: "Primeira premissa: sofrimento e morte causados por falta de comida, abrigo e cuidados médicos são males".
"Segunda premissa: se estiver em seu poder impedir que algo de mau aconteça, sem que seja necessário sacrificar nada de importância semelhante, é errado não fazê-lo."
"Terceira premissa: ao doar dinheiro a agências assistenciais, é possível prevenir sofrimento e morte por falta de comida, abrigo e cuidados médicos, sem sacrificar nada de igualmente importante."
"Conclusão: portanto, se você não doa dinheiro a organizações assistenciais, está agindo errado."
Há muitos contra-argumentos que se apresentam de imediato: a economia está em crise. Caridade começa em casa. Trabalho com afinco pelo meu dinheiro. Caridade cria dependência. Algumas organizações de caridade desperdiçam dinheiro demais com suas despesas administrativas.
Mas Singer rebate esses contra-argumentos de maneira convincente, e sua conclusão lógica é praticamente irrefutável. Ajudar os pobres do mundo trará "significado e propósito" às nossas vidas, ele sugere, por meio de ajustes financeiros que, em geral, "pouca diferença farão para o seu bem-estar".

Difícil de engolir
Em seu livro, Singer elogia muita gente que doa até 50% de sua renda anual. Quanto aos restantes de nós, ele propõe uma abordagem mais realista: "Cerca de 5% da renda anual para as pessoas em situação financeira confortável, e bastante mais para os muito ricos".
Alguns dos argumentos de Singer são difíceis de engolir.
"Filantropia para as artes e atividades culturais, em um mundo como este, é moralmente dúbio", ele declara.
O Metropolitan Museum of Art [em Nova York] adquiriu um quadro de Duccio [di Buoninsegna] por US$ 45 milhões em 2004, quantia que, diz Singer, pagaria por operações de catarata para 900 mil pessoas cegas ou quase cegas nos países em desenvolvimento.
Ele prossegue: "Se o museu estiver em chamas, alguém consideraria mais certo salvar o quadro do incêndio do que uma criança?"
O livro tem seus heróis e vilões. Entre os primeiros, temos Bill Gates e James Hong, que enriqueceu ao criar o site "Hot or Not", no qual os visitantes votam sobre a aparência dos demais usuários.
Hong doa 10% do dinheiro que ganha acima dos primeiros US$ 100 mil anuais e opera um segundo site no qual encoraja outras pessoas a assumir compromisso semelhante. Entre os vilões estão os bilionários do software Paul Allen e Larry Ellison. Singer reconhece que Ellison doou US$ 39 milhões em 2007, mas acrescenta que "ainda que Ellison não lucre mais um centavo, poderia doar US$ 39 milhões ao ano pelos próximos 600 anos e ainda reter US$ 1 bilhão para cuidar de sua velhice".
Mas ainda há tempo para Ellison. Como aponta Singer, se Warren Buffett tivesse doado o primeiro milhão que ganhou, não estaria em posição, agora, de doar US$ 31 bilhões.
Em um dos sites de Singer, thelifeyoucansave.com, ele solicita que as pessoas assumam o compromisso de doar dinheiro para combater a pobreza mundial segundo uma escala móvel que propõe (ele mesmo doa 25% de sua renda anual, escreve). Já obteve mais de 1.800 adesões.
"Tendemos a considerar que as pessoas merecem ser mais culpadas por seus atos do que por suas omissões", escreve Singer. Não é preciso concordar com tudo o que ele afirma para sentir que não há o que discutir: no que tange a viver uma vida dita "de bondade", as omissões morais hoje contam mais que nunca.


A íntegra deste texto saiu no "New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci.

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Este texto foi publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, de 22 de março de 2009.

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