Identidade Pesadelo
Identidade pesadelo
ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem chega aos Estados Unidos com um contrato de trabalho temporário -um cargo de professor visitante em uma universidade, por exemplo- não desembarca exatamente nos Estados Unidos. Desembarca num lugar parecido, mas provisório.
Uma espécie de pré-país limpo e funcional onde o recém-chegado -ainda com as sequelas taquicárdicas que lhe deixou o funcionário da imigração ao examinar o formulário DS-2019 de seu visto durante 15 minutos, com o cenho franzido de um papirólogo ou um decifrador de mensagens codificadas- passará muito tempo fazendo filas, preenchendo formulários, assinando pedidos, esperando autorizações e carimbos. Sem estes, nos próximos quatro meses de sua vida -já bastante parecida com um pesadelo- não terá nem sequer direito a ter uma vida.
Otimistas e realistas podem discordar quanto ao prazo, mas não quanto à natureza dessa quarentena que teria feito Kafka tremer nas bases.
É um calvário. Não apenas porque o recém-chegado não faz, não pode fazer, outra coisa senão gastar sua escassa energia de sul-americano inabalável nessa sequência de trâmites mas porque o horizonte excitante, a vida bela, plena e nova que lhe haviam prometido -aulas cercadas de cedros e carvalhos centenários, bibliotecas opulentas, o sonho do scanner e da fotocopiadora próprios, credenciais capazes de franquear todos os acessos, almoços com prêmios Nobel que esquecem os macarrões da sopa na barba, graciosas estudantes sul-asiáticas atravessando o campus de bicicleta, como flechas- ficam suspensos, como que congelados em uma espera ameaçadora.
O recém-chegado os vê, os cheira, pode descrevê-los em detalhes. Mas não pode vivê-los. Ainda não.
Mais valioso que o DNA
A vedete do calvário é o "social security number", mais conhecido -nesse mundo de meninos-espiões onde tudo se chama W-9, VIF2, V9UGRD ou I-94- como SSN. Tudo o que o recém-chegado faz nas três semanas mais soviéticas de sua vida é sortear comprovantes, reunir requisitos e satisfazer condições para chegar são, salvo e apto ao SSN, uma pegada digital que todo mundo aqui considera mais decisiva que o DNA.
Ou seja, por 21 dias o recém-chegado vive para responder a uma só necessidade, a necessidade norte-americana de excelência, a única capaz de manter em pé um aparato burocrático que deixaria exasperado o cidadão cubano mais tolerante: a necessidade de identificar-se.
Nos Estados Unidos, qualquer pessoa pode comprar um kit para falsificar documentos e um manual para trocar de identidade, operar seu rosto ou forjar-se um passado novo, mas ninguém pode pagar em dinheiro vivo o depósito adiantado de segurança de um apartamento alugado ou, muito menos, os U$S 9,50 que custa um almoço médio -o cardápio de hoje foi cafta egípcia com cuscuz- no refeitório de professores da universidade.
É estranho, mas em um país cuja moeda é um verdadeiro objeto de fé e traz impresso o lema "In God We Trust" (em Deus confiamos), o "cash" é o tabu número um. (Existe outro tabu também, mas é mais vulgar: viver em concubinato heterossexual, uma condição que não se sabe se é impudica ou anacrônica, que os formulários administrativos ou fiscais, tão tolerantes com o casamento padrão ou as uniões gays, estigmatizam com a insultante expressão "domestic partner").
Obscenidade policial
Escandalosa como um "snuff movie", mais perturbadora que um pacote abandonado em um canto de aeroporto, a obscenidade do dinheiro em espécie não é moral, mas policial. As cédulas despertam suspeitas, pois não servem para identificar, porque não revelam nada sobre quem as usa, e, ao não dizer nada, dizem sempre o pior, aquilo que só pode ameaçar -narconegócios, máfia russa, pedofilia de aluguel-, pela simples razão de que não constam em nenhum dos arquivos onde os números das economias do plástico, em contrapartida, reluzem e delatam.
O grande dia
Algum dia, contudo, essas três semanas de limbo e hibernação jurídica chegam ao fim, o banco diz que sim, o cartão da biblioteca começa a funcionar, instalam o telefone e o wi-fi, o visto é ativado e chega à caixa de correio o cartão com o SSN.
É esverdeado, de um desenho pomposo e antiquado, muito parecido com uma cédula de dinheiro, e recomendam que você não o entregue a ninguém e nunca o carregue consigo. Exausto, humilhado e feliz, o recém-chegado sente que "entrou no sistema". E a vida é como o trânsito (outro orgulho local): uma circulação fácil, disciplinada, previsível.
Só que essa liquidez -tão agradável e tão norte-americana- é proporcional ao grau de submissão com que motoristas obedecem à Lei suprema que rege a rua: manter-se em sua faixa. Tudo é amabilidade e bons modos, até que alguém muda de ideia sobre a marcha, se arrepende ou se deixa seduzir por um desvio melhor.
Em segundos, então, a cortesia degenera em um insulto, uma enxurrada de buzinas, uma tentativa de linchamento. Quando não em acidentes.
Calma interrompida
Sem ir mais longe, a bucólica comunidade de Princeton me fez deparar com alguns quantos. As vítimas (quatro: duas loiras, duas morenas) foram todos esquilos. Difícil saber de quem foi a culpa, se dos motoristas (enfurecidos porque alguém acionou o pisca à esquerda, mas preferiu dobrar à direita) ou dos roedores (menos assustadiços e mais domésticos). Algo pude intuir quando ouvi um etólogo de renome anunciar em um elevador que os esquilos estão destinados a ser a "espécie dominante do futuro".
Por quê? "Porque hesitam. Em outras palavras, porque pensam", disse o acadêmico. E eu traduzi: "Porque não acreditam na identidade".
ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O Passado" (Cosac Naify); atualmente é professor visitante da Universidade Princeton, onde dá aulas de literatura latino-americana
Tradução de CLARA ALLAIN
Texto originário da Folha de São Paulo, de 15 de dezembro de 2009.
Marcadores: Estados Unidos
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