Simon Axler sai de cena
Simon Axler sai de cena
QUANTAS vezes, leitores? Quantas vezes pensamos que a nossa vida seria melhor se os outros a tornassem melhor? No trabalho, na amizade. No amor, especialmente no amor. A crença patética, e tão moderna, de que seremos salvos por terceiros.
Salvos por alguém: as falhas e os medos que não soubemos resolver em privado, de nós para nós, serão sublimados e redimidos pela generosidade de estranhos. Nunca são. Nunca podem ser. Onde quer que estejamos; com quem quer que estejamos, nós também estaremos lá. Com todas as falhas, com todos os medos e com a evidência dolorosa de que ambos foram amplificados pelo desespero do náufrago. Quem acredita no amor como uma forma de salvação não merece amor nem salvação.
Mas como evitar esse ato de fé? Olhem para Konstantin Gavrilovich, uma das grandes personagens trágicas do teatro. Em "A Gaivota", de Tchécov, Konstantin não escreve nem ama para cumprir um desígnio inegociável, interior; para ser, em evocação de Rilke nas cartas ao jovem poeta, o que não pode deixar de ser.
Ele escreve e ama como os infelizes mendigam: esperando ver nos outros e receber dos outros o que ele não vê ou possui em si próprio. Algum talento, ou o reconhecimento desse talento. Algum afeto, ou a reciprocidade desse afeto. Alguma redenção, ou a possibilidade de uma redenção. Konstantin termina como começara: só e perdido.
Disse "Konstantin", mas poderia ter dito "Simon Axler", personagem de Philip Roth em novo livro que revisita Tchécov e dividiu a crítica. Não dividiu a mim. E repito o que escrevi nesta Folha a respeito de "Indignação" ou "Homem Comum": os grandes livros de Roth não são mais os livros grandes, como "Fantasma Sai de Cena" ou "Complô contra a América". O melhor de Roth está hoje em pequenas narrativas despojadas de qualquer ornamento literário: peças de velhice, sobre a velhice, e por isso habitadas por toda a urgência.
"The Humbling" (ainda não lançado no Brasil) é a história banal de um homem extraordinário: o referido Simon Axler, ator com carreira longa e emérita, que perde o talento sem explicação racional. Uma noite, em cima do palco, as palavras desaparecem. Corrijo. As palavras não desaparecem. Pelo contrário, tornam-se presentes, dolorosamente difíceis e presentes, como se houvesse nesse excesso de consciência a descoberta fatal, aterradora, da profunda artificialidade de tudo. Cada frase, cada gesto, cada pausa ou silêncio -analisados obsessivamente, desencantadamente, até a paralisia. Axler é uma sombra de Axler.
A sanidade entra em regressão. O casamento definha e desaparece. O suicídio, ou a tentação do suicídio, começa o seu namoro infernal. Mas então acontece o último ato da peça existencial de Axler: uma mulher mais jovem entra em cena para contracenar com um homem preparado para sair dela. O cenário é Roth "vintage", concedo, e há quem desista de Roth precisamente por isso: por essa repetição de uma repetição de uma repetição. Aviso que o desencanto é desnecessário: a relação de Axler e Pegeen não é só, como em narrativas anteriores de Roth, o pretexto para que noções de "desejo" e "dever" (o dilema essencial do autor) cumpram a sua dialética macabra.
Em "The Humbling", o amor de Axler por Pegeen é uma forma de respiração artificial: como Konstantin em "A Gaivota", Axler respira com o oxigênio de terceiros. Alenta-se com esse oxigênio, revive com ele e até se concede a um futuro porque ele existe, porque Pegeen existe, e não porque Axler existe. Haverá forma mais perversa de existência? Não creio. Nenhuma sombra sobrevive à extinção da luz que lhe dá uma aparência de vida. Resta saber se Axler resistirá ao momento banal, demasiado banal, em que, para citar o próprio Roth, "ela [Pegeen] queria apenas libertar-se dele e satisfazer o desejo comum e suficientemente humano de seguir em frente e tentar algo de novo".
Durante anos, quando lia ou assistia à citada peça de Tchécov, acreditava sempre que Konstantin talvez pudesse ter sobrevivido se Nina o tivesse amado; se Arkadina, a mãe, o tivesse amado; ou até, em profissão de fé literária, se Konstantin tivesse perseguido a sua arte por amor à arte, e não em competição fátua com Trigorin. Philip Roth destroça essas crenças românticas. Ao encenar literalmente o último ato de "A Gaivota", e ao conceder a Axler o papel de Konstantin, Roth concede ao seu personagem um último regresso e uma última verdade: a de que somos nós, e apenas nós, os autores primevos da nossa perdição, ou da nossa clemência.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, de 5 de janeiro de 2010.
Marcadores: literatura
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