segunda-feira, março 01, 2010

Estado de Emergência

Estado de emergência


O romancista Martin Amis descreve uma visita que fez ao escritor John Updike, internado em um hospital, e reflete sobre o sistema de saúde dos EUA e o "American way of life"

MARTIN AMIS


Os EUA estão doentes com a saúde: os EUA, onde derrames e ataques cardíacos vêm acompanhados de uma etiqueta de preço e onde médicos agem como locadores de barracos em favelas ou criminosos que lucram com guerras. E os americanos admiram isso -essa triagem que passa pelo bolso.
John Updike [1932-2009], ou o fantasma de John Updike, ficaria interessado (mas não surpreso) ao descobrir que, no ano de sua morte, aconteceu uma rebelião nas bases contra o sistema de saúde defendido pela administração atual.
Os americanos acreditam na autoridade descentralizada, na escolha individual e no que chamam de "responsabilidade fiscal" (ou seja, impostos muito baixos); eles rejeitam o "Estado babá", que, escandalosamente, protege o cidadão apático "do berço até o túmulo".
Os americanos pagam por sua chegada e sua saída deste mundo -chegadas caras e saídas realmente exorbitantes.
Meu único encontro cara a cara com John Updike -uma entrevista de duas horas- aconteceu em um hospital de Massachusetts (onde ele seria submetido a cirurgia para a extração de uma verruga pré-cancerosa da mão direita). Foi em 1987; eu tinha 38 anos, e ele, 55.
E 22 anos mais tarde, em 27 de janeiro de 2009, John Updike sucumbiria ao câncer de pulmão -em um hospital de Massachusetts.
Naquele dia de verão, a cafeteria do hospital, chocante por suas dimensões, era cenário de todas as variedades possíveis de debilidade.

"Gostamos da vida"
Em meio a essa morbidez, Updike estava intensamente vivo. A hiperatividade de suas impressões sensoriais era palpável -quase audível. "Meu Deus", disse com alegria, "estamos cercados por todo tipo de americanos doentes! Olhe para os óculos daquela mulher."
Uma senhora passou por nós, tateando para se orientar, usando o que poderiam ser óculos de proteção de um soldador. "Acho que ela realmente não quer que luz nenhuma chegue a seus olhos... Meu Deus, olhe para ele. Olhe para os ombros dele! Veja as pernas daquela menina."
Sobre o porquê de gostarmos de determinados personagens literários, Updike é inequívoco: "Gostamos da vida".
Gostamos da vida; e a vida ainda é vida, mais vida ainda, possivelmente, quando se encontra ameaçada não apenas pela enfermidade, mas também pela mais aguda pressão financeira. Sim, estamos nos EUA, onde a doença representa um desastre duplo (e onde os custos médicos contribuem para 62% das falências).

Voo em um 747
Updike estava eufórico, fascinado, absorto; Updike estava vivo. Recordamos as rebeliões somáticas, as reviravoltas horríveis e as épicas internações hospitalares suportadas por Coelho Angstrom, o anti-herói da série de romances de Updike -Coelho, tão exuberante e dinâmico (e também frouxo e esclerótico) quanto a América que personifica.
E dramas e ansiedades médicas iriam se intrometer cada vez mais na ficção posterior de Updike. Mas talvez "A Cidade", conto de 1981 da coletânea "Confie em Mim" [ed. Rocco, esgotado], se destaque como a visita mais agudamente cristalizada feita por Updike à terra dos doentes.
"Uma obra de perfeição joyciana", disse eu. Na realidade não é inteiramente perfeita e não é nem um pouco joyciana, para mérito dela. "A Cidade" é puro Updike: ao mesmo tempo embaraçosamente íntimo e grandiosamente universal.
A primeira oração nos insere no clima ("Seu estômago começou a doer no avião, quando os motores mudaram de intensidade para a descida"), e a segunda nos dá a primeira contração nervosa de negação ou da busca por uma causa aproximada: "Carson primeiro atribuiu sua dor aos amendoins salgados e liofilizados" -no avião, consumira dois pacotes deles, com um coquetel de uísque, no meio da manhã.
Ao desembarcar, ele continua, vingativamente, a responsabilizar os amendoins. Na fila do táxi, o primeiro sintoma decisivo o convence a faltar a seus compromissos e ir diretamente ao hotel: "Uma onda repentina e transparente de náusea, como um mergulho no voo do 747".
Ele visita a farmácia do hotel e então compra o remédio patenteado já familiar: um vidro de Maalox.
"O remédio tinha gosto de giz, era desagradável e, após um instante de hesitação, deu à dor um toque novo, como se fosse pela ação de minúsculos dentes arenosos."
Reunindo os últimos fiapos de sua força de vontade (e desejoso de ouvir uma voz humana), telefona para a recepção. Um jovem recepcionista recomenda alegremente o pronto-socorro do hospital da cidade.


"Quando chega a conta, essa é a parte realmente dolorosa; todos os americanos têm seguro... com milhões de exceções, é claro"


Doença e pobreza
Após um percurso de duração "surpreendente" em um táxi, ele chega à "mansão vasta e reluzente"; ele espera "entregar por completo o peso de seu corpo, mas, em vez disso, se viu obrigado a carregá-lo através de uma série de novos esforços -formulários a serem preenchidos, comprovantes a serem fornecidos de sua capacidade financeira de estar doente".
Essa última frase, com sua pequena ironia encabulada, é o primeiro reconhecimento, feito no conto, desse barbarismo peculiar americano: a sinergia fatal entre saúde pública e ganho particular.
Updike, como homem, aceita o "American way", mas, como artista, tem consciência de suas deformações. Sua mente subliminar sabe que estar doente nos EUA não é como estar doente em qualquer outro lugar. E não pode ser certo, pode?
Que a desigualdade persiga você até seu leito de morte?
Os agentes médicos que processam Carson não demonstram nenhuma empatia vocacional; são aparições "esquivas" que dão a impressão de ter coisas muito melhores a fazer e de que deveriam, na realidade, estar em outro lugar -num jantar, digamos, ou de outro modo imersos em "um festivo mundo doméstico" do qual Carson "despencou há muito tempo".
Adoecer invariavelmente envolve um rebaixamento do eu; se você é americano, esse rebaixamento é também socioeconômico. É bastante simples: se você se sentir doente nos EUA, também se sentirá pobre.
Após uma bateria de exames, é levado a um leito na área de espera. Durante a noite, ele abre os olhos, e um médico novo e mais grandioso o está observando: "Ele tinha muita consciência de que, embora o horário devasso e o ambiente indecoroso se tivessem tornado seu habitat próprio, o médico era saudável e deveria ter uma casa decente, uma família, uma rotina à qual retornar".

Dólares e centavos
Uma apendicite é triunfalmente diagnosticada; o cirurgião de ar divino o operará imediatamente; a "promoção de status" de Carson infunde um novo "esprit de corps" na equipe médica; "sobre rodas macias e velozes", ele flutua para o teatro de operações.
A felicidade persiste e se ramifica, e a segunda metade de "A Cidade" é uma das odes de Updike ao renascimento comunitário -renascimento no ambiente americano harmônico.
O renascer envolve uma regressão. O polido cirurgião lhe dá instruções breves "sobre comer e andar e ir ao banheiro -todas coisas que teriam que ser aprendidas de novo".
Agora a realidade conspira para agradá-lo, e sua gratidão chega a tudo que o cerca.
Nesse momento, Carson já não sangra nada mais perigoso que dólares e centavos. Seus médicos indiferentes, sempre prestes a partir para algum lugar mais agradável, passam para vê-lo -por um preço.
Mas ele é americano e não nota isso: "Todos faziam suas visitas de maneira tão agradável e casual -como se estivessem apenas dando uma passada por ali- que Carson ficou espantado, meses mais tarde, ao descobrir que cada visita estava marcada, com data e hora, nas folhas de serviços do hospital cuja fatura lhe foi enviada num relatório extenso feito em impressora matricial".

Olhos ocupados
"Joyciano, você acha?", perguntou Updike quando nosso encontro chegava ao fim. "Em sua perfeição. Ou quase perfeição"
"Bem, nada é perfeito. Um poema curto pode ser perfeito, mas um conto de qualquer comprimento em pouco tempo fica aberto aos "pecados naturais da linguagem". Na frase de [T.S.] Eliot."
Eu disse: "Você sabe que Nabokov, quando lecionava, costumava atribuir notas aos contos que eles estudavam. A pior nota que ele deu foi um Z menos, mas Joyce ganhou um A triplo mais por "Os Mortos" [de "Dublinenses']. Talvez desse a você a mesma nota por "A Cidade". Ele disse que amava sua prosa, é verdade?"
"Disse. Assinou sua cartinha "cordialmente". Foi bastante minimalista, essa cartinha. Fez-me desconfiar que Nabokov só amava minha prosa quando ela elogiava a prosa de Nabokov... Eu estava querendo perguntar: você já leu "Finnegan's Wake" [de Joyce]?"
"Inteiro? Não. Apenas o começo, o fim e alguns trechinhos no meio."
"Eu também. Mmm. Surpreendente. Achei que você tinha o ar de um homem que tivesse lido "Finnegan's Wake"."
Eu me senti lisonjeado -provavelmente de modo equivocado. Que tipo de ar seria esse, afinal? Obsessivo, de óculos grossos, onanista.
"Nabokov descreveu "Ulisses" como "um livro nobre'", falei.
"Mas chamou "Finnegan's Wake" de "um ronco na outra sala"... Não me conformo com o ar alegre dessas pessoas. Elas estão no hospital. E isso lhes está custando os tubos."
"Quando chega a conta, essa é a parte realmente dolorosa.
Mas todos os americanos têm seguro. Com a exceção dos milhões que não têm, é claro."
"Isso me parece grotesco. Pagar a conta." Ele falou: "A medicina socializada pareceria grotesca a nós.
Não pagar, não poder escolher, não dispor de sua panóplia de poderes discricionários -quando se trata de algo tão importante quanto a vida e a morte. Seria antiamericano".
Os leitores atuais de "A Cidade" ficarão surpresos com quanto se fuma no hospital de Updike. Mas havia uma seção de fumantes também na cafeteria do Mass General, e após alguma hesitação perguntei se poderíamos nos transferir para lá por dez minutos: "Enquanto fumo um cigarro".
"Sim, é claro", disse ele. Updike saudou a transferência para outra mesa: ela lhe proporcionou mais americanos doentes aos quais olhar. "Isto também é grotesco", falei. "Fumar em um hospital.
Bom, imagino que deve ser bom para os negócios."
"Invejo você. Eu parei."
Hoje, olhando a metragem dos livros de Updike em minhas estantes, tenho dificuldade em acreditar que ele tenha sido viciado em qualquer coisa senão na ética do trabalho. Ah, e na vida, é claro.
Aqueles seus olhos ocupados, a expressão de sua boca (como se contivesse com dificuldade uma euforia imensa e misteriosa), seus cabelos em formato de turbante ainda crescendo fortes, suas mãos na bandeja de chá tão mais firmes que as minhas ("deixe que carrego isso") -as minhas, que tremeram diante do tamanho e do vigor de sua presença e seu talento.
Naquele dia no hospital Mass General, John Updike estava vivo.




MARTIN AMIS
é inglês, autor de "The Pregnant Widow" (A Viúva Grávida, sem previsão de lançamento no Brasil) e "Casa de Encontros" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto saiu no "The Times". Copyright: 2009 Martin Amis.
Tradução de Clara Allain .

Texto publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, de 14 de fevereiro de 2010.

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