sábado, agosto 14, 2010

Indochina

O texto abaixo foi escrito para uma disciplina da faculdade de História.

30/06/2010.

Indochina

Este texto quer ser um pequeno comentário sobre o filme Indochina, produção francesa de 19921, procurando analisá-lo contra alguns textos de história que constam na bibliografia. Indochina foi um filme produzido em 1992 na França, que tenta reconstituir a vida de latifundiários colonos franceses na então Indochina Francesa, nos anos 1930. O filme demonstra a exploração dos trabalhadores locais pelos colonos franceses numa cultura de seringueiras. Também mostra como vai se estruturando o movimento de resistência, que por fim resultaria na independência do Vietnã, em 1954.

Desde que foi criado há pouco mais de cem anos atrás, o cinema estabeleceu uma profícua parceria com a História. Na ponta mais evidente desta parceria, o cinema foi muitas vezes buscar na História, a base para seus roteiros, para as histórias que queria contar. Mas não só isto. Por exemplo, já faz alguns anos, professores e alunos da Faculdade de História da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem produzido cursos de extensão de ciclos de cinema, em que são usados filmes para que se possa debater a História por trás do filme. Tanto a história relatada pelo roteiro do filme, quanto a história envolvida na época da produção da obra cinematográfica. No ano de 2010, o ciclo se chamou “USA, não ABUSA – os Estados Unidos da América em Tempos de Guerra”. Em 2009 o ciclo foi “A prova dos 9 – A História Contemporânea no Cinema”. O professor Cesar Guazzelli tem algumas palavras sobre História e Cinema, no livro que resultou do ciclo de 2009:

Numa certa maneira, podemos pensar em relação à ficção produzida pelo Cinema como aquela que nos traz a Literatura, ou seja, exigimos às obras produzidas num e noutro caso uma relação com a “verdade”. (...) Um bom filme, portanto, passaria também pelo critério de uma presumível veracidade. Se esta é uma discussão da qual não podemos simplesmente fugir, nos importou mais na seleção (...) a capacidade de reflexão e crítica que um filme ensejava do que propriamente um “retrato fiel” do passado. Portanto, interessa-nos prioritariamente o “contexto” em que foi gerado um determinado “texto”, e quem faz esta relação é necessariamente um autor.”2

Claro que isto nos leva para a discussão sobre as possibilidade de manutenção da “verdade”, e das relações entre História e Ficção (e Ficção inclui tanto a literatura quanto o cinema). E, se é certo que o historiador não pode descrever a “história tal qual aconteceu em seu todo”, ele certamente mantém um compromisso com a verdade, na medida em que as evidências sob sua análise lhe indiquem o que aconteceu na História. O ficcionista não tem esta preocupação, embora possa usar algum fato histórico como base para alguma narrativa que queira contar3. Mas é certo que historiadores e cineastas se propõem a criar narrativas, sendo que os primeiros tem mais compromisso com a verdade que os segundos. E ambos se propõem a recriar histórias. O historiador tenta recriar o passado a partir de suas fontes. O cineasta reconstruindo fatos que já aconteceram, com a capacidade de ilusão do cinema4.

Talvez seja Marc Ferro5 o historiador que mais popularizou o trabalho com cinema, e o que mais se destacou em propor metodologias para trabalhar com os filmes. E ele comenta que os historiadores a princípio relutaram em usar o cinema como objeto de sua análise. Contudo, acabaram por usá-la, e isso seria inescapável.

Este texto procurou trabalhar com o filme Indochina para buscar uma análise um pouco mais social da história da Indochina, sob ocupação francesa. O filme tem um recorte muito claro, se ambientando nos anos 1930, na cidade de Saigon, atual Ho Chi Min, e arredores, onde fica a propriedade da família de Eliane (a protagonista do filme, vivida por Catherine Deneuve). O texto é também uma tentativa de escapar das abordagens mais comuns quando se fala de história do Vietnã, que analisam as lutas de libertação nacional contra a França, ou as lutas de unificação e contra a ocupação dos Estados Unidos, após a libertação da França. Estas abordagens mais comuns invariavelmente acabam por falar de grandes homens (o líder Ho Chi Min, ou o general Giap, por exemplo6) ou de grandes batalhas (como Dien Bien Phu, onde a França sucumbiu e desistiu de tentar lutar contra a independência do Vietnã7). As pessoas acabam por constituir uma massa amorfa ou um assunto sem interesse nesse tipo de narrativa. Não que o filme também não faça esse tipo de “homogenização” dos personagens que não são os principais na narração (a narração do filme gira basicamente em torno de Eliane, sua filha adotiva Camille [Lin Dan Pham], e o oficial da marinha francesa Jean-Baptiste [Vincent Pérez]), mas pelo menos é possível vê-los e tentar analisá-los.

Assim, voltando ao filme, ele começa com um funeral, e a narrativa de Eliane sobre o que estava acontecendo. O funeral é dos pais de Camille, amigos de Eliane, vitimados por um acidente aéreo. Camille é uma menina indochinesa, que Eliane acaba por adotar. Ambas as famílias possuíam vastas propriedades onde cultivavam seringais, para extração de látex. Com a adoção de Camille por Eliane, as propriedades são unidas. Afinal Eliane não tem outros filhos, além de Camille. Tudo viria a ser dela. Nas palavras de Eliane, um tempo em que certas coisas deveriam estar para sempre associadas, como “o mar e a montanha”, “a Indochina e a França”. É uma primeira alegoria do filme. Haverá outras. Neste caso, a adoção de Camille por Eliane simboliza a união da Indochina e da França. Claro que associar esta adoção com a “adoção” da Indochina pela França é uma “liberdade poética” bastante forçada por parte da produção do filme, uma vez que a Indochina foi submetida a ferro e fogo à dominação francesa.

Uma outra alegoria logo se apresenta no início do filme. O pai de Eliane lidera uma equipe de remo formada pelos trabalhadores indochineses de sua fazenda contra uma equipe de marinheiros franceses. A crença da superioridade racial francesa faz com que um oficial da marinha francesa aposte que seus marujos ganharão da equipe formada por trabalhadores indochineses. Mas eles perdem. Mais uma alegoria. Os franceses em nada são superiores aos indochineses, portanto podem ser vencidos (e fatalmente serão).

O filme nos apresenta as condições de trabalho nas fazendas de cultivo de seringais. Elas não são boas. Os funcionários são apresentados de maneira que os aproxima de condições de vida miseráveis. E em um momento a protagonista Eliane aplica castigo físico a um dos trabalhadores, pois, segundo parece ele tentou fugir da fazenda. O que nos remete a situação análoga à escravidão.

E temos Saigon e seu calor. O calor da Indochina é muito presente no filme. E ele é bem real. Recente notícia sobre as comemorações de 35 anos da unificação do Vietnã, realizadas no último dia 30 de abril, informa que os desfiles e manifestações em Ho Chi Min (antiga Saigon) tiveram que se desenrolar entre 6:30 h e 9:30 h da manhã porque este era o horário mais propício. Além das 9:30 h a temperatura tende a se tornar quase insuportável para atividades físicas realizadas ao ar livre8.

Num leilão, Jean-Baptiste conhece Eliane. Ele quer adquirir uma peça que ela também quer. E ela tem muito mais poder financeiro que ele para adquirir a tal obra. Mas ela não cede a peça a ele. Dias mais tarde, por força de uma questão de consciência dele, Jean-Baptiste aparece na propriedade de Eliane. Entre eles surge uma explosiva relação amorosa, que se prenuncia ruinosa para ambos. Ruinosa mas irresistível, como num bom drama.

Num outro incidente é Camille quem virá a conhecer Jean-Baptiste. Ela caminha com colegas do colégio católico francês para meninas por uma rua por onde são transportados prisioneiros. Dois dos prisioneiros tentam fugir, mas são abatidos a tiros pelos policiais que os escoltam. Um dos prisioneiros cai por cima de Camille que desmaia de susto. Ela é retirada da rua por Jean-Baptiste que passava por ali. E, como adolescente, acaba por se apaixonar por ele.

Quando Eliane descobre que Camille está apaixonada por Jean-Baptiste, ela arranja junto aos oficiais da marinha francesa para que ele seja transferido para um posto no norte da Indochina, Haiphong (Haiphong é um porto no norte do Vietnã).

Camille toma um casamento de fachada para sair da casa da mãe, mas de fato vai ao norte do país à procura de Jean-Baptiste. Didaticamente é uma jornada em que Camille irá descobrir sua identidade vietnamita, a realidade de seus concidadãos, e a realidade do imperialismo francês. Em seu caminho ela passa pela construção de uma linha ferroviária, com mão-de-obra indochinesa semi-escrava. Ali Camille encontra uma família que foge do trabalho na construção da ferrovia, mas não tem alternativa de sustento em sua própria aldeia. Precisa ir ao norte, à Haiphong, onde camponeses se apresentam à traficantes de mão-de-obra, para trabalhar nas culturas do sul. Um dos personagens do filme chama este evento, mensal, de “feira dos escravos”. É ali que Jean-Baptiste reencontrará Camille. E a abraçará. Um abraço entre um francês e uma indochinesa é um ultraje para os franceses ali presentes, que consideram a manifestação de carinho um mau exemplo para os camponeses que deverão ir para o sul. Além disso, Camille descobre que a família que ela acompanhara até Haiphong foi morta. Segundo os franceses ali, a família participou “da promoção de um motim” entre os camponeses indochineses. O incidente se avulta a tal ponto que Camille pega um revólver, e mata um oficial francês ali. Jean-Baptiste e Camille fogem. Ele deserta. Acabam sendo encontrados por membros da resistência vietnamita do extremo norte do país. E se juntam à esta resistência. Camille engravida de Jean-Baptiste. Eles se juntam a uma célula da luta anti-imperialista que se traveste de saltimbancos que vão de aldeia em aldeia no norte do país. Nas aldeias, estes “saltimbancos”(isto é, guerrilheiros disfarçados) vão procurando eliminar a elite mandarim que foi cooptada pelos franceses, e servia de intermediária entre os franceses e os camponeses.

Camille dá a luz a um menino. Quando Jean-Baptiste se afasta um pouco do grupo para batizar o filho é preso por soldados franceses. Camille foge. Com a prisão de Jean-Baptiste, o filho dele e de Camille é entregue a Eliane.

Posteriormente Camille também é presa, e vai parar em Poulo Condor. Poulo Condor é uma colônia de trabalhos forçados, onde de fato foram presos muitos indochineses pró-independência9. De lá sairá para renunciar a seus laços familiares, e se engajar a fundo na luta pela independência do Vietnã. E aqui há outra alegoria. O rompimento de Camille e Eliane é sinal do rompimento do Vietnã com a França.

Diante da resolução de Camille, Eliane resolve vender as propriedades da Indochina e mudar-se para a França, levando consigo seu novo filho adotivo, o filho de Camille e Jean-Baptiste. Ela que no início do filme havia dito que não conhecia a França. Nunca havia saído da Indochina.

Há muitos elementos reais no filme. Já citamos as precárias condições dos camponeses, que se submetiam a se tornar mão-de-obra barata e semi-escrava nas mãos de colonos franceses, ou mesmo de alguns indochineses ricos e cooptados. Os colonos podem bem ser aquilo que deles diz Panikkar, “persuadidos que a dominação européia, mediante uma hábil união de firmeza e conciliação, poderia ser prolongada indefinidamente”10. Esta é madame Eliane Devries.

Da fato, a França promoveu alguns cultivos no Vietnã. Além do milenar arroz, a seringueira, e em menor escala o café e o chá11. Seringueiras eram o cultivo principal nas fazendas de Eliane Devries.

As lutas pró-independência do Vietnã parecem bem representadas. O mesmo Panikkar fala do “terrorismo como método”12, assim como Ruscio fala de insurreições13. Ambos (terrorismo e insurreições) reprimidos com mão pesada pelas autoridades coloniais francesas enquanto estas tiveram força para reprimir.

Dito tudo o que foi dito, voltamos à questão sobre cinema e história. O filme serve como aprendizado da história? Sim e não. Sim, se junto com o filme o espectador tem acesso a outras obras, estas sim “de história”, que lhe dêem um quadro histórico adequado, onde ele possa apreciar, ou criticar, as recriações que o filme faz. Não, pois o filme não foi produzido com o fim específico de ensinar história, mas para distrair a multidão de espectadores que se dispuserem a assisti-lo. Distração, emoção... Estes são os motivos do filme. Filme este que inclusive alguns poderão pensar que é saudosista em relação ao passado colonial francês.

Bibliografia:

A BELA da selva. Veja, São Paulo, Edição 1.281, Ano 26, n. 13, p. 101, 31 de março de 1993.

ALTMAN, Breno. Vietnã celebra 35 anos da vitória contra os EUA. Disponível em <http://operamundi.uol.com.br/materias_ver.php?idConteudo=3881>. Acesso em 30/04/2010.

BROCHEUX, Pierre. O Colonialismo Francês na Indochina. In: FERRO, Marc. O Livro Negro do Colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

DELMAS, Jean. Indochina 1946-1950: As Raízes da Guerra. História Viva. São Paulo, Ano II, n. 15, p.62-71, janeiro 2005.

FERRO, Marc. O filme, uma contra-análise da sociedade? In: Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.79-115 [especialmente p.79-88]. [1a. ed. francesa: 1977; o texto em questão é de 1971]. Disponível em <http://www.anpuh-sc.org.br/ferro1_cinema_historia.pdf>. Acesso em 24/06/2010.

GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História e Cinema, Noves fora? In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos [et al] (Org.). A prova dos 9: A História Contemporânea no Cinema. Porto Alegre: Suliani Letra e Vida; EST, 2009.

INDOCHINA. Direção: Régis Warginier. Roteiro: Catherine Cohen, Louis Gardel, Erik Orsenna e Régis Warginier. Intérpretes: Catherine Deneuve, Vincent Pérez, Lin Dan Pham e outros. Drama, 156 min. França, 1992.

INDOCHINA. IMDB - The Internet Movie Database. Disponível em <http://www.imdb.com/title/tt0104507/>. Acesso em 21/06/2010.

PANIKKAR, K. M. O Sudeste Asiático. In: PAKIKKAR, K. M. A Dominação Ocidental na Ásia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

RODRIGUES, José Alfredo. Joana d'Arc na Peça Henrique VI, de Shakespeare. Porto Alegre: UFRGS, 2008. Monografia.

RUSCIO, Alain. Vietnã: Um Século de Lutas Nacionais. In: FERRO, Marc. O Livro Negro do Colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

VIETNÃ. In: Grande Enciclopédia Delta Larousse. São Paulo: Nova Cultural, 1998. V. 24, p. 5945-48.

1Ver Indochina (1992) na bibliografia.

2Guazzelli (2009). P. 10.

3Desenvolvo um pouco desta discussão em meu trabalho de conclusão. Ver Rodrigues (2008). P. 7 e seguintes.

4E aqui estamos falando em filmes que busquem reconstruir o passado de alguma maneira. Obviamente uma obra de ficção científica narrando uma aventura no espaço sideral não é o caso aqui.

5Ferro (1992).

6RUSCIO (2004). p. 435.

7VIETNÃ (1998). p. 5947.

8ALTMAN.

9Brocheux (2004). P. 417.

10Panikkar (1977). P. 221.

11Brocheux (2004). P. 406.

12Panikkar (1977). P. 221.

13Ruscio (2004). P. 433, 434.


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