sábado, novembro 29, 2008

Morte e vida

Morte e vida

COMPAREÇO A um funeral. Um desses funerais a que vamos por convenção social ou familiar, não por ligação pessoal ou sentimental. Conhecia mal o defunto.
A minha família conhecia-o bem. E sempre se espantou com a longevidade do senhor: 97 anos. Uma proeza que só a medicina moderna é capaz de produzir na sua busca pela imortalidade possível? Sem dúvida.
Mas é preciso olhar para o outro lado da questão: os últimos 20 anos foram passados na cama ou na cadeira de rodas, em frustração ou agonia crescentes. O homem morreu aos 97. Em rigor, morreu talvez pelos 80. O resto foi desperdício.
Estou sendo cruel? Talvez. Mas a vida é cruel. Sobretudo quando a prolongamos excessivamente. E, em minha defesa, cito um artigo recente: a revista britânica "The Lancet" resolveu fazer um estudo sobre a qualidade de vida a partir dos 50 anos. Porque viver mais não significa viver melhor. A partir dos 50 anos, que esperança boa de vida têm os habitantes da União Européia?
Os homens podem contar com nove a 23 anos de vida saudável. As mulheres, com dez a 24. Em outras palavras: até aos 73/74 anos, no máximo, homens e mulheres podem viver com dignidade. A partir dos 73/ 74, entramos em período de prorrogação. Como no futebol.
A Dinamarca leva a Copa como o país onde os velhos vivem melhor a partir dos 50. A Estônia é o pior país.
Portugal fica algures pelo meio, invertendo apenas a tendência entre homens e mulheres: a partir dos 50, os homens podem contar, em média, com 14 anos de vida saudável. As mulheres, com 12.
Duas conclusões da revista.
A primeira é que o investimento nos cuidados geriátricos melhora a qualidade de vida a partir dos 50. Lógico. O meu defunto, aliás, é a prova disso: a partir dos 50, a medicina deu-lhe uma ajuda, ano após ano, para ele ir derrotando as maleitas todas que atacavam a sua carcaça: diabetes, hipertensão e, antes do derrame cerebral que o levou ao tapete, operações cirúrgicas várias em várias zonas do corpo que ameaçavam entrar em greve. Pequenas batalhas que a medicina foi vencendo.
Mas existe uma segunda conclusão no estudo: a medicina vence batalhas, mas não vence a guerra. Ela não derrota a mortalidade do corpo.
E, se a "Lancet" está certa, a partir dos 73 (para os homens) e dos 74 (para as mulheres), o prolongamento da vida pode confundir-se com um inútil e tantas vezes doloroso adiamento do fim. Que fazer?
Regresso ao funeral. Eu, caminhando atrás do carro fúnebre, olhando em volta. Pessoas, poucas.
Velhos, alguns. Crianças ou jovens, nenhum. Curioso: o homem tinha netos e bisnetos. Nenhum deles está presente.
Eu próprio, com os meus 32 anos, sou talvez a personagem mais nova desse filme. Comento o fato com alguém. Dizem-me que é normal: nos funerais modernos, é importante "proteger" (atenção ao verbo) as crianças e os jovens da morte. "Proteger". Da morte.
Admirável. Durante séculos, a civilização soube acomodar a morte entre os vivos, porque uma vida feliz implicava, como Montaigne dizia, aprender a morrer: aprender que a finitude da vida revaloriza a própria vida. Porque só a consciência plena do fim nos permite uma entrega total aos entretantos. Como dizia um conhecido historiador francês, a morte estava no centro da vida como a igreja no centro da vila.
Tudo mudou. Conheço casos de gente que, por questão de princípio, não vai a funerais (exceto, presumo, ao próprio). Hoje, a morte é um embaraço que se intromete entre uma festa de juventude permanente.
Mesmo que essa festa tenha prazo: 73 ou 74 anos de saúde boa para homens ou mulheres. O resto é desperdício.
O resto é pó, como o pó que cai sobre o caixão. Olho para a cova, ouço a terra que cai sobre a madeira. Tenho um céu de chumbo sobre mim. Irá chover, não tarda. Mas, antes que os céus se abram em choro sobre o mundo, dou por mim numa oração íntima em frente ao meu destino. E então peço a esse Deus desconhecido que me dê a graça e a sabedoria de partir na altura certa.
Meu Deus, faz com que eu morra vivo. Não me dês a eternidade ilusória nem suspendas o meu pobre corpo no limbo dos homens. Ensina-me a morrer, a única forma de eu aprender a viver com a consciência de que todos os dias da minha vida são frágeis e temporários, e, por isso, valiosos. Concede-me essa dádiva, e eu prometo que não irei estragá- la com a ganância própria dos desesperados.

Texto de João Pereira Coutinho, no caderno Ilustrada, na Folha de São Paulo, de 25 de novembro de 2008.


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