Desastre anunciado em Iguape
Desastre anunciado em Iguape
O desabamento da cobertura do Sobrado dos Toledos, na cidade, não é fruto de descaso iguapense; poderia ocorrer em qualquer outra localidade brasileira
CARLOS A. C. LEMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nossa sociedade vista como um todo, englobando ricos e pobres, letrados e analfabetos, escuros e branquelas, "quatrocentões" e imigrantes recentes, certamente não pode ter uma única e generalizada acepção do que seja um bem cultural arquitetônico nacional. Sobretudo se ele foi apenas escolhido pelos órgãos oficiais de preservação de nosso dito Patrimônio Histórico e Artístico.
A razão disso está no multifacetado universo mental da população que não se comove com as seleções perpetradas por pessoas categorizadas chamadas pelos governantes para compor conselhos responsáveis pela definição do elenco representativo de nossa cultura material. Além do descompasso no julgamento de validades estéticas atribuídas aos bens escolhidos para tombamento, há entre as pessoas de pé no chão a sensação desconfortável do prejuízo dos proprietários alcançados pela providência de salvaguarda do Patrimônio.
Nessa hora, há muita solidariedade e há, também, o pensamento: quem tomba, que tome conta. Na verdade, tudo isso induz a uma ampla indiferença às preferências dos doutos conselheiros culturais. Não só indiferenças, mas também desacordo, que pode levar à desatenção às determinações legais e igualmente às da cidadania. O mal de tudo é que muita gente finge que aceita os bens classificados, nem tão belos nem tão históricos, segundo seu julgamento, porque não deseja passar por ignorante ou desatenciosa no convívio social com os seus pares ou com seus eleitores ou subordinados.
Isso é o pior que pode acontecer perante a notícia do perigo que corre um monumento tombado de desabar por abandono e descuido de sua estabilidade. Nesse momento crítico, todos ficam aparentemente condoídos e lastimosos, chorando a perda iminente da herança cultural, mas não há a vontade explícita de enfrentar o problema, vontade que até poderia ser política.
Derramam-se lágrimas de crocodilo e ninguém faz nada, ninguém tenta levantar a opinião pública a favor de um bem que, por ser cultural, é de interesse social e pertencente à cidade toda. Não é fora de propósito, por exemplo, uma coleta pública de dinheiro para aquele fim patriótico de preservar a memória dos antepassados. Enfim, essas linhas nasceram de nossa indignação ao receber a informação do desabamento total da cobertura do Sobrado dos Toledos, ocorrência há muito prevista pela valente "Tribuna de Iguape", que, para usar um chavão, ainda não se cansou de pregar no deserto.
Iguape tem uma história que nos vem desde os tempos de Martim Afonso e, também, dos peruleiros do século 16, contrabandistas de prata capitaneados por Rui de Mosquera; dos garimpeiros de ouro no alto Ribeira de Iguape desde o começo do século 17. A partir do início do século 19, o esplendor chegou à cidade com a riqueza trazida pelo cultivo do arroz. Entre o terceiro e o último quartel daquela centúria, Iguape era maior e mais rica que Santos, mantendo contato direto e frequente com o Rio de Janeiro, recebendo e fruindo de todas as novidades da corte.
Desde logo, engalanou-se de nobres sobrados de pedra e cal equipados com o mais rico mobiliário Luís Felipe, como era a moda. Louçaria também de origem francesa e muita prata lavrada. Jornais e ativa vida teatral.
No início daquele cenário de euforia, no segundo quartel do século, o vereador Toledo levanta o seu magnífico sobrado, não no estilo costumeiro, mas na nova manifestação estilística, o neoclássico trazido pelos artistas franceses chegados com D. João 6º. Pelo que sabemos, esse edifício é a primeira construção paulista derivada das lições do arquiteto Victor Grandjean de Montigny, o renovador de nossa arquitetura. É um exemplar importante de nossa história.
Com o passar do tempo, aquela vasta residência foi acabar nas mãos da Igreja, por sinal, bastante rica graças ao renome dos milagres do Senhor Bom Jesus, cuja imagem até agora venerada foi achada na praia da Jureia em 1647. Sua festa, em agosto, sempre levou à cidade milhares de romeiros, cujos barcos atulhavam o porto. Vinham embarcações não só dos litorais norte, isto é, do Rio, de Ubatuba, Santos e Itanhaém, mas também e, principalmente, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Até o padre Guilherme Pompeu de Toledo, o opulento financiador dos bandeirantes do século 17, abalou-se de Santana de Parnaíba, no planalto, para verificar e aquilatar aquela fama milagreira e, talvez, apenas rezar, por mera manifestação da fé, já que não precisava de milagres de nenhuma natureza. O enorme afluxo de romeiros por três séculos, que costumavam acampar atrás da basílica, logo transformam o nosso sobrado em hospedaria improvisada destinada primordialmente a mulheres e suas crianças.
Sobretudo depois de seu tombamento pelo Condephaat, o imóvel histórico não mais recebeu trato algum. A Igreja, a proprietária, que sempre ganhou de presente tudo o que possui, devolveu ao povo, isto é, à prefeitura, a construção periclitante na forma de um comodato, tendo em vista sua reconstrução. Em resumo: o telhado desabou e as paredes desamparadas balançam com o trepidar dos veículos pesados.
Os leões de louça no alto dos cunhais da fachada, que tanto encantaram, em 1858, o viajante Robert Ave-Lallemant, olham para baixo preocupados com a altura a ser vencida brevemente em queda livre. Seus cacos certamente serão distribuídos às crianças da cidade pelos omissos, que sempre olham de lado, como lembranças inúteis daqueles que já se foram e que hoje dormem profundamente, como nos contou o poeta Manuel Bandeira; porque o mundo é dos vivos.
Sabemos que o leitor já intuiu que essa imagem poderá ocorrer em qualquer localidade brasileira, evidentemente o descaso não é apenas iguapense. É nacional. Essa ocorrência em Iguape não passa de um pretexto para um desabafo.
CARLOS ALBERTO CERQUEIRA LEMOS, arquiteto, é professor de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 9 de outubro de 2009.
Remete a outros já publicados por aqui, de igrejas mineiras do barroco colonial em ruínas e sob risco de desabamento:
Entre salvação e a ruína - patrimônio histórico em Santa Rita Durão, distrito de Mariana, MG
Igrejas do século XVIII podem ruir em Minas Gerais
Marcadores: Brasil, História, patrimônio cultural, patrimônio histórico
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