segunda-feira, dezembro 21, 2009

Salas dos Passos Perdidos, ou Contardo Calligaris escreve uma crônica para o Natal

Salas dos passos perdidos

NATAL É uma das épocas do ano em que mais viajamos.
Isso é especialmente verdadeiro no hemisfério Sul. Ao Norte do equador, as pessoas tentam reunir suas famílias, que foram dispersas pelo tempo, pelos casamentos, pelas perspectivas de trabalho ou, simplesmente, por cada indivíduo ter anseios de independência e vontade de tocar a vida por conta própria. Ao Sul do equador, a essa vontade de reunião de família, acrescenta-se a proximidade das férias de verão: junte Natal com o Ano Novo, use 15 dias de férias, e lá vamos nós.
Por essa razão, no Natal, as rodoviárias e os aeroportos são sempre abarrotados, pelos viajantes e por seus restos voluntários (lixo) e involuntários (malas extraviadas e crianças perdidas). A quem viaja, aconselha-se levar consigo o necessário para encarar, sem demasiado tédio, filas e esperas intermináveis. É um paradoxo: "Chegue antes porque, de fato, o voo partirá só bem depois do horário previsto".
Seja como for, muitos de nós passarão um bom tempo naqueles espaços intermediários que são os saguões, as salas de espera, as salas de embarque, em suma, os cenários (menos fugazes do que gostaríamos) de nosso trânsito.
Uma bonita expressão francesa designa esses espaços como "salles des pas perdus", com ou sem hífen, que significa "salas dos passos perdidos". Não sei se existe uma etimologia definitiva dessa expressão, mas parece que, originalmente, salas dos passos perdidos são os átrios dos tribunais de Justiça, onde as partes, depois de ter exposto seus argumentos, esperam a decisão da corte em intermináveis idas e voltas de passos "perdidos", ou seja, movidos só pela ansiedade e pela incerteza quanto ao futuro.
Hoje, a expressão se refere também às salas de espera e aos vestíbulos centrais dos aeroportos e das estações ferroviárias, em suma, a aqueles lugares onde fazemos a hora batendo pernas, lugares que, simplesmente, não são nem nossa origem nem nosso destino, mas sempre apenas transições.
Já assisti a noticiários televisivos de 25 de dezembro em que a notícia eram os "infelizes" que, entre atrasos, tempestades e "overbooking", passaram a noite do dia 24 no saguão de uma aeroporto. Logo no Natal; é o cúmulo, não é?
Nem tanto. Pense bem, o Natal cristão celebra um nascimento, o de Jesus, que acontece num estábulo, que, para quem viajava a dorso de mula ou de jumento, 2.000 anos atrás, era o equivalente de uma rodoviária ou de um aeroporto.
O Natal anuncia que a vida é uma viagem, não só porque estaríamos em trânsito para outro lugar onde seremos recompensados ou punidos para sempre, mas porque somos todos, como o recém-nascido da festa, viajantes: ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu ou pela tradição a qual ele pertence, mas cada um vale pelo que ele conseguirá fazer com sua vida.
Leitura natalina: no começo do romance de W. G. Sebald, "Austerlitz" (Companhia das Letras), o narrador encontra o professor Austerlitz na sala dos passos perdidos da estação de Antuérpia. Detalhe: se o professor Austerlitz tem um interesse muito especial pelas estações de trem, seus átrios e suas salas de espera, é porque o mundo é uma gigantesca sala dos passos perdidos, em que estamos todos, sempre, em trânsito ou talvez (numa veia mais kafkiana) caminhando em círculos, angustiados, na espera de algum oficial público que nos diga, enfim, qual foi a decisão da corte.
Música natalina: "Salle des Pas Perdus", de 2001, é o primeiro CD de Coralie Clément (uma jovem cantora francesa, que canta com uma voz ofegante, estilo anos 1960-70). Na letra da música que dá o título ao CD, uma jovem escreve a um moço, propondo-lhe um encontro num café, depois de ter cruzado com ele no vestíbulo do prédio (em que ambos moram, talvez) e no átrio da estação St. Lazare. "Você sente meu perfume a cada noite, no vestíbulo do prédio", mas, mesmo assim, a gente poderia nunca se encontrar.
Precisamos aprender a viver e a encontrar os outros nas salas dos passos perdidos. Precisamos inventar a arte de viver em trânsito.
E me ocorre que a maior (única?) artista da vida em trânsito é Sophie Calle. Sua maravilhosa exposição, "Cuide de Você", deixou São Paulo e está agora no Museu de Arte Moderna do Rio, até fevereiro 2010.
Mas estou divagando (é o que a gente faz nas salas dos passos perdidos); só queria dizer isto a quem viaja no Natal: console-se, Natal é também uma festa para transeuntes.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo, de 17 de dezembro de 2009.


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