quarta-feira, setembro 01, 2010

O fantasma de Paulo Francis

O fantasma de Paulo Francis

PAULO FRANCIS queria ser o fantasma do Metropolitan Museum, em Nova York. Não sei, não. Estive no "Met" semanas atrás. Posso jurar que havia um espectro por lá, óculos de lentes grossas, a dizer "waaal" em todas as salas.
Mas se Francis não virou fantasma do Metropolitan, virou fantasma do jornalismo brasileiro. Basta consultar qualquer jornal, site ou blog para reconhecer o ritmo, a voz, os tiques de Francis. Ele foi uma espécie de blogueiro "avant la lettre", pela profusão de temas e pelo tratamento conciso e obsessivo das loucuras do mundo, e aqui concordo com Paulo Eduardo Nogueira.
Mãos amigas fizeram-me chegar "Paulo Francis - Polemista Profissional" (Imprensa Oficial, 154 págs.), que li com prazer. O livro é uma revisão da vida e obra ("just the facts, dear"), mas depois Paulo Eduardo Nogueira dá braçadas em alto mar e o melhor acontece.
Concórdias? Muitas. Discórdias? Algumas. Mas, primeiro, vamos às surpresas, que me deixaram como um fantasma de museu: a pairar sobre a realidade.
Desconhecia, juro, que o golpe de 1964 tinha embranquecido o cabelo do bicho. Aconteceu o mesmo com o pai de Tocqueville na Revolução de 1789. Será mito ou mera coincidência capilar? Nessas matérias, a minha filosofia é John Ford "vintage": imprima-se a lenda.
Desconhecia também a frase perfeita dita a Sérgio Augusto para justificar a opção Nova York: "Cheguei a uma idade em que preciso de um país com quatro estações definidas por ano". Meu Deus. Não sei quantas vezes pensei nisso ao olhar para Portugal, que em matéria sazonal é mais preciso que um relógio suíço. A minha gratidão não tem preço.
Por fim, ri bastante quando Lucas Mendes explicou o "modus operandi" de Francis para com certas personagens que lhe eram antipáticas. "Aí ele era complicado. Não ficava na mesma sala, ia embora e era até capaz de peidar alto perto da pessoa."
É o cúmulo da sofisticação anal, digno de uma ópera popular de Mozart. E imagino desde já as conversas de inveja entre os objetos do seu desafeto: "Por que motivo ele peida na sua presença e não na minha? Você pensa que é melhor que eu?"
Vamos às concórdias. Francis não tinha grande faro político? Verdade. Exatamente como Mencken, pai espiritual de nós todos, que foi decisivo na descoberta de prosadores mil (Hemingway, Dreiser, Fitzgerald etc.) mas que falhou politicamente e com estrondo: o desprezo pela democracia e a incapacidade de perceber a natureza sinistra do nazismo são manchas inapagáveis.
Mas cuidado: dizer que a África do Sul pós-apartheid e a China "Frankenstein" de hoje são casos de sucesso, contrariamente ao que profetizava Francis, implica uma confiança no futuro que está interdita a um cético. Como dizia um antigo primeiro-ministro chinês na década de 1970 sobre as consequências da Revolução Francesa, ainda é muito cedo para dizer.
A principal discórdia está com a interpretação "neoconservadora" de Paulo Eduardo Nogueira. Francis deu uma guinada para a direita. Mas seria essa guinada uma emanação do "neoconservadorismo" de Kristol e "tutti quanti"?
Duvido. Discordo. O "neoconservadorismo" é fenômeno exclusivamente norte-americano (e, em menor grau, inglês) que lida com o fracasso sentido por uma parte da esquerda liberal americana (e já não trotskista) que se confrontou com os fracassos econômicos, sociais e morais da "Grande Sociedade" de Lyndon Johnson; e que nunca olhou para a URSS com a complacência de outros "liberais" da Ivy League. O DNA trotskista (leia-se antistalinista) nunca os abandonou.
Paulo Francis, depois da virada, ganhou aquela carapaça anticomunista só possível em antigos clientes da casa, é um fato. Mas essa foi uma virada para um conservadorismo clássico, elitista (no sentido platônico) e não "neoconservador".
A costela libertária de Francis, em matéria de "costumes" (droga, pornografia, jogo, etc.) teria horrorizado qualquer um dos Kristol (pai, filho ou mãe Himmelfarb).
E, claro, a ideia "neoconservadora" (ou será antes "cripto-trotskista"?) de que a democracia americana é produto de exportação teria provocado no fantasma do Metropolitan gargalhadas sinistras.
O mundo é uma coleção de tribos, dizia Francis no final da vida. Um problema insolúvel. Se me permitem o excesso de metáforas zoológicas, foi o canto do cisne para o pequeno leãozinho Trotsky que ainda brincava dentro dele.

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, de 24 de agosto de 2010.


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