Liturgia da Morte
A liturgia da morte
SEUS OLHOS PROCURAVAM no rosto do médico uma resposta para a pergunta que ele fazia sem palavras. Mas o médico esquivava-se do seu olhar e virou o seu rosto para as radiografias presas no visor iluminado.
Na verdade, ele representava, fingia estar examinando as radiografias. Ele não precisava examiná-las porque sabia o que elas diziam. Ele olhava para as radiografias para fugir da pergunta que morava no olhar do homem assentado à sua frente.
Eram radiografias de um cérebro. Quando ele parasse de fingir e olhasse direto nos olhos do homem, ele teria de dar a notícia.
"Há um tumor maligno no seu cérebro", ele disse. É um tumor inoperável..." Depois de um longo silêncio, o homem lhe perguntou com voz tranqüila: "Quanto tempo me resta, doutor?".
"Não é possível dizer ao certo", respondeu o médico. "Mas penso que uns seis meses..."
O homem voltou-se para sua esposa assentada ao seu lado e lhe disse: "Chegou a hora de viver a liturgia da morte...".
Eu o conhecia. O seu nome era Alexander Schmemann, teólogo da Igreja Ortodoxa Russa. Essa igreja tem uma maneira peculiar de ver o mundo. As igrejas cristãs do Ocidente vêem o mundo como um vale de lágrimas colorido pela culpa e pelo medo. A Igreja Ortodoxa Russa vê o mundo como um espetáculo estético. Tudo é belo. Tudo é harmonioso. Deus é um esteta, um artista que vive para produzir a beleza. É a beleza que nos salva.
Essa harmonia cósmica, a Igreja a oferece aos homens por meio da liturgia. A liturgia é a beleza do universo oferecida aos sentidos: os carrilhões, o incenso, os cânticos, os vitrais e os gestos coreográficos. Participar da liturgia é unir-se ao universo e gozar da sua beleza, da mesma forma como um músico se une à sinfonia e goza da sua beleza ao tocar seu instrumento.
"Chegou a hora de viver a liturgia da morte..." Em outras palavras: chegou a hora de salvar a morte do seu horror para torná-la parte da beleza cósmica.
Há um parágrafo em "A insustentável leveza do ser", de Milan Kundera, que talvez nos ajude a entender esse mundo: "O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito para fazer dele um tema que, em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o, transpondo-o, como faz um compositor com os temas da sua sonata. O homem, inconscientemente, compõe a sua vida segundo as leis da beleza, mesmo nos instantes do mais profundo desespero".
Deus é um esteta que ama a beleza. O homem é um esteta que ama a beleza: foi criado à imagem e semelhança de Deus. O homem, qualquer homem, sem o saber, compõe a sua vida como uma peça musical. O fim tem que ser belo, ainda que trágico.
No seu livro "O mito de Sísifo", Camus sugeriu que os suicidas preparam sua morte como uma obra de arte a ser contemplada. Como os samurais que, antes de praticar o seppuku, escreviam um hai-kai. Por que escrever um hai-kai? Para retirar o terror da morte pela magia da poesia.
Acho que esse é o desejo oculto de todas as pessoas: que a morte não seja o terror, mas uma nova namorada, como sugeriu o Vinícius...
Schmemann nunca explicou o sentido da liturgia da morte. Mas eu imagino que a liturgia da morte seria marcada pela purificação do tempo restante para que a beleza cresça à medida em que o acorde final se anuncia...
Texto de Rubem Alves, na Folha de São Paulo, de 19 de agosto de 2008.
Marcadores: luto, morte, Rubem Alves
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