quinta-feira, janeiro 29, 2009

O escritor-padrão dos EUA

O escritor-padrão dos EUA

ANTONIO CALLADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

De uma forma abrangente, geral, seria possível dizer que John Updike foi o escritor de maior êxito no mundo de hoje. Ele certamente não foi tão popular e lido em toda a parte quanto Gabriel García Márquez, nem foi tão prezado pelos cultores da arte literária quanto contemporâneos seus do calibre de Borges, Beckett ou Nabokov.
No entanto, como romancista, como poeta, como ensaísta e cronista, Updike chegou a um extraordinário e equilibrado nível de qualidade e popularidade. E, finalmente, passou a ser, na sua geração, o representante mais completo do intelectual americano. É o escritor-padrão da nação que é, de longe, a mais poderosa do mundo.
A geração imediatamente anterior à de John Updike produziu nos Estados Unidos três excelentes romancistas: William Faulkner, Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald. Diferentes entre si, vigorosos e originais, os três ergueram a ficção americana ao nível das grandes do mundo. Faulkner absorveu o que havia na ficção do seu tempo para eternizar as angústias do Deep South. Quanto aos outros dois, refletiram e retrataram a totalidade da sua nação, Fitzgerald celebrando a riqueza crescente, o puro êxtase, meio arrogante, do homem que busca todos os triunfos, e Hemingway tentando manter viva nesse mundo hedonista a figura do herói. "Suave É a Noite", dizia Fitzgerald num título de romance, "Por Quem os Sinos Dobram", replicava Hemingway em outro. Ilustrando ambos as próprias ficções, morreu o primeiro num crepúsculo alcoólico, pobre, esquecido, e Hemingway enfiou na boca o cano de um fuzil de caça e apertou o gatilho.
A geração seguinte cresceu num império tranquilo, consolidado, que se reflete na obra culta, inteligente, e, digamos assim, caseira, de Updike. Sua série do personagem Harry Rabbit Angstrom ["Coelho Corre", "Coelho em Crise", "Coelho Cresce", "Coelho Cai" e "Coelho Se Cala"] vale quase por uma história dos Estados Unidos em nosso tempo. Updike abandonou esse herói, que o acompanhou durante tantos anos, mas não abandonou o dia-a-dia da vida do país. O romance que publicou em 1992 se chamou "Memories of the Ford Administration". O título não pode ser mais explícito.

Ensaio e crítica
Mas não foram só esses romances que Updike escreveu, e alguns dos outros são deliciosos, como "Couples", o das intrigas sexuais, ou "Roger's Version", em que o herói procura Deus no computador. John Updike é, além disso, um refinado contista e um poeta leve, despretensioso, mas frequentemente tocante, como os brasileiros podem ajuizar pelo poema "Rio de Janeiro", que ele publicou em "The New Yorker" ao regressar aos Estados Unidos, depois de visitar o Brasil em março de 1992.
No entanto, se tudo indica que os romances de Updike terão sempre uma posição honrosa na literatura dos Estados Unidos e que seus contos e poemas também figurarão em antologias vindouras, seu lugar, talvez o mais certo, no futuro é o de ensaísta e crítico de ideias, ao lado de contemporâneos eminentes como George Steiner ou de clássicos do gênero de William Hazlitt.
À segurança do julgamento crítico, ao invariável bom gosto, ao toque de malícia e elegância do texto, o ensaísta Updike aliou sempre os ingredientes fundamentais: a cultura vasta, a incansável disposição de pesquisa. Um ensaísta dessa estirpe é tão raro quanto um grande romancista, contista, poeta.

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 28 de janeiro de 2009.

TEXTO INÉDITO DE CALLADO FOI ESCRITO EM 92

Em 1992, o escritor Antonio Callado (1917-1997) escreveu, a convite da Folha, um comentário sobre a obra e a trajetória do autor norte-americano John Updike -que a seu ver já teria chegado, naquele momento, "a um extraordinário e equilibrado nível de qualidade e popularidade". Na época, o jornalista e autor de romances como "Quarup" e "Reflexos do Baile" era colunista da Ilustrada. O texto, que permaneceu inédito, arquivado no Banco de Dados, é agora publicado postumamente.

Esclarecimento da Folha de São Paulo, sobre o texto anterior.


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