segunda-feira, junho 22, 2009

"Baseado em fatos reais"

Baseado em fatos reais


Em "O Crime do Restaurante Chinês", o historiador Boris Fausto reconstitui uma chacina ocorrida em São Paulo em 1938

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Se a prática da micro-história tivesse por parâmetro a qualidade do recente livro do historiador e colunista da Folha Boris Fausto, "O Crime do Restaurante Chinês -Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos Anos 30", cairiam no vazio as acusações de que ela é uma contrafação da escrita da história.
A micro-história é um modo do fazer historiográfico que se impôs desde a década de 1970, contrastando com os quadros panorâmicos de épocas marcantes, configurados, conforme a orientação ideológica do autor, seja por grandes heróis, seja por graves transformações infraestruturais.
Considerada de maneira não preconceituosa, a micro-história encontra seu primeiro grande exemplo na análise da duplicidade do comportamento religioso dos chamados nicodemistas -aqueles que, convertendo-se à Reforma, continuavam a participar das cerimônias da igreja de Roma.
Foi realizada por Carlo Ginzburg em "Il Nicodemismo - Simulazione e Dissimulazione Religiosa nell'Europa del 500" (O Nicodemismo - Simulação e Dissimulação Religiosa na Europa do Quinhentos, 1970). Sua peça mais conhecida é, entretanto, "O Queijo e os Vermes" (1976), do mesmo autor [no Brasil, pela Cia. das Letras].
Para a localização do leitor não especializado, vale considerar que o surgimento da micro-história é uma das consequências do questionamento da escrita da história, realizado sobretudo na década de 1970.
Essa década, bastante fecunda para o redirecionamento das ciências sociais, se caraterizou, do ponto de vista dessas, pela crítica acerba do positivismo ainda vigente -como vigente ainda permanece-, com sua ênfase na factualidade, no empirismo da análise, no primado de pressupostos teóricos não questionados, assim como pela discussão do papel da narrativa, na escrita da história.

Narrativa literária
Tal questionamento ainda se articulava com a fecundidade então alcançada pelos estudos teórico-literários.
Daí a transversalidade de questões como a da própria narrativa. Se a narrativa é um recurso frequente na escrita da história e na ficção romanesca, seria correto manter-se a distinção entre elas?
Além do mais, como a narrativa se impõe nas reportagens jornalísticas e televisivas, por que essas não teriam a "dignidade" acadêmica reservada à história e aos gêneros literários? Tais perguntas se tornavam particularmente sérias porque se referiam a áreas que sempre haviam desdenhado a indagação teórica.
Daí derivavam renhidos antagonismos. Assim, um dos principais representantes da micro-história, o já citado Carlo Ginzburg, se tornaria um ardoroso adversário de Hayden White porque, em sua "Meta-História" [Edusp], o ensaísta norte-americano advogava uma proximidade entre narrativa literária e historiográfica, simplesmente intolerável a um discípulo de Arnaldo Momigliano [1908-87], como Ginzburg.
Ora, a leitura de "O Crime do Restaurante Chinês" será um instrumento indispensável para o leitor que se levante essas questões.
A micro-história não é um gênero ficcional porque não sai do círculo do documentado.
Não é que as conclusões estejam documentadas (!) -o que tornaria a pesquisa ociosa-, mas sim que só se baseiam em elementos inferidos a partir de documentos.
A ficção pode bem partir da mesma massa documental, sem por isso estar obrigada a segui-la fielmente.
Um bom exemplo seria "A Sangue Frio" (1966), de Truman Capote [Cia. das Letras]. Já a reportagem, porque se supõe manter fiel aos fatos sucedidos, sem deixar de recorrer a recursos ficcionais (sobretudo de ordem sensacionalista), é, ao menos para alguns de seus defensores, a "prova" de que a separação entre escrita da história e ficção não passaria de uma "ficção" acadêmica.

Além do folclore
O espaço de que disponho não me permite mais do que apontar o problema.
Tenho a meu favor a qualidade do livro que resenho: ele demonstra que um exercício de micro-história não precisa se confundir com um documentalismo estéril ou folclórico; que, na verdade, os eventos históricos são grandes ou pequenos menos em razão de si mesmos do que da excepcionalidade ou da mediocridade dos que os examinam.
Neste sentido, a própria articulação indicada pelo subtítulo do livro, entre futebol, Carnaval e Justiça, depende muito menos da coincidência do crime com o Carnaval e as proximidades da Copa do Mundo de 1938 do que da capacidade do autor em relacioná-los.
Mas não basta assinalá-lo.
Será ainda preciso chamar a atenção para o fato de que a micro-história não é apenas uma via daquilo que, vindo do particular, terminaria por reiterar os resultados passíveis de serem atingidos pela macro-história. Quando assim sucede a concordância apenas confirma algum clichê a ser compartilhado por historiadores e leitores.
É bem o contrário que ocorre no caso presente.
Boris Fausto ressalta que a absolvição do acusado da chacina sucedida em um modesto restaurante chinês, em março de 1938, evidencia que "a circunstância da pobreza se converte em traço de simpatia aos olhos da opinião pública", sem que, por isso, as reiteradas alusões à cor do acusado deixem de confirmar o racismo presente em toda a circunstância.
Da mesma maneira, ante o caráter duvidoso das provas incriminatórias, "um corpo de jurados constituído por gente da elite paulistana e juízes togados" decide em favor do réu, quando a suposição usual seria de que sucedesse o contrário.
Que isso significa senão que a escrita da história é bem mais imprevisível do que pretendem os clichês acerca das ciências ditas "duras"?


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS
Autor: Boris Fausto
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 45 (264 págs.)

Texto do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 19 de abril de 2009.

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