Luiz Felipe Pondé: Frankensteinianas
Frankensteinianas
FAÇAMOS hoje um exercício de ficção. Imaginemos que em 2080 teremos atingido um alto grau de técnicas preventivas de reprodução humana. Teremos separado a reprodução humana (artificial) do ato sexual (prazer). Aí surge nosso articulista imaginário, escrevendo em 2209 sobre este fato, já no passado. O objeto de seu artigo é o um livro de história, lançado em 2209, que narra a "velha" polêmica vivida em 2089. Vejamos.
"O livro "Pré-História da Reprodução Humana no Brasil", da historiadora Lia Ka, é uma boa chance para conhecermos a história dos biodireitos no Brasil. O foco são as polêmicas ao redor da lei que proibiu a reprodução humana não assistida (natural, como era chamada) no Brasil. Até então, confundia-se sexo com reprodução.
Em 2080, iniciou-se no Brasil a campanha conhecida como "direito por mais vida". A "Lei da Reprodução Sustentável", finalmente aprovada em 2089, tornou crime inafiançável a reprodução humana não assistida (ou reprodução ilegítima ou não sustentável, sinônimos na época).
Setores biorreacionários (termo comum para quem se opunha a lei) negavam as vantagens evidentes da reprodução programada, além de defenderem o absurdo que era a submissão das mulheres aquele horror das barrigas enormes.
Imagens de mulheres assim (as grávidas) é coisa do passado. Quem não tem horror a essas mulheres deformadas? O fato é que já em 2099 o índice de mulheres que ainda desejavam portar barrigas deformadas foi reduzido a 3,5% da população reprodutiva.
Quando os primeiros índices surgiram na China apontando para a superação definitiva da reprodução não assistida, os setores bioprogressistas se organizaram. O movimento por "mulheres-sem-barriga" e por "bebês biossaudáveis" ganharam espaço entre nós, até que conseguimos proibir qualquer geração fora dos limites dos laboratórios portadores do selo conhecido na época como "biosselo".
Uma segunda lei para reprodução sustentável foi aprovada meses depois estabelecendo os critérios para a geração de bebês dentro dos parâmetros de biolegitimidade. A conhecida Escala Feng de legitimação da vida foi aplicada ao Brasil. Em 20 anos, os índices de morte na infância despencaram 78,6%, provando definitivamente a eficácia da reprodução assistida. Foi gerada uma economia de recursos públicos, aplicados a área da saúde, da ordem de 27,5%. Esquemas de controle foram necessários para inviabilizar a reprodução ilegítima, sempre dentro dos limites da lei de qualidade de vida aprovada em 2080. Uma prática que foi largamente estimulada, e que se revelou benéfica para a população, foi o "disk mais vida" facilitando a identificação e neutralização de focos de reprodução ilegítima.
Em 2089, ainda era comum se questionar o dado evidente de que a reprodução ilegítima era um alto fator de poluição ambiental e social. Até 2075, os trabalhos de Schultz e Hua quantificando o conceito de poluição social (via a identificação dos índices Lox de inadequação sociofisiológica) ainda não eram aplicados no Brasil.
Estes trabalhos mediram, pela primeira vez em 2072, os índices de transtornos familiares, escolares, afetivos, intelectuais e profissionais devido a presença de fatores de inadequação sociofisiológica.
Especialmente interessante é o capítulo que aborda as controvérsias ao redor do conceito de embriões sustentáveis (safe babies) x embriões podres (naturais). Cerca de 50 anos foram necessários até a eliminação completa do mercado ilegal de reprodução de embriões humanos podres.
Hoje nos preparamos para novo salto na direção da total eliminação da reprodução humana não sustentável: cientistas suecos têm tido grande sucesso na assimilação de compostos de DNA de babuínos em embriões humanos.
Segundo pesquisas da Liga Zoe (dedicada aos biodireitos para o aumento da qualidade em reprodução), os "bebês compostos" (como estão sendo chamados) desenvolvem habilidades motoras e cognitivas mais eficazes do que "bebês não compostos" da ordem de 7,7 % no prazo de dois anos. A luta, agora, é para que todos os cidadãos tenham acesso aos embriões compostos." Voltemos a 2009. Qual a moral da história? A moral é que o "tipo" de bebê que você tem hoje nas mãos, um dia, poderá ser um bebê podre. A história "avança", e os conceitos de "doença" e "poluição" também. Você votaria nessa lei?
Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo, de 4 de maio de 2009. É viagem. Mas dá o que pensar.
Marcadores: Luiz Felipe Pondé, reflexão
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