Joyce, Dostoiévski e uma ex-namorada
Joyce, Dostoiévski e uma ex-namorada
Tony Monti
De São Paulo
Grupos sociais costumam ter histórias que ajudam a sustentar e a definir seus valores. Deste modo, além de outras possíveis relações, as narrativas compartilhadas moldam a identidade e os laços que unem os elementos do conjunto. Escolas são assim. Há histórias lendárias sobre alunos, professores e funcionários. Da Faculdade de Letras, onde estudei, gosto bastante de uma anedota que às vezes se conta.
O professor Alfredo Bosi dava aula para o primeiro ano. Na audiência, meninos e meninas, a maioria com não mais que vinte anos. O professor olha para a sala com a voz mais baixa que o normal, anunciando algo especial e chamando a atenção da classe. "Quem aqui já leu Dostoiévski?" Quase todos levantam a mão, parte deles mentindo por causa da vergonha de não ter lido um autor clássico. Em seguida o professor pede que a cena se inverta, que abaixem as mãos estes, e que os demais levantem as mãos. Uma parte mínima da sala insiste em dizer que ainda não tinha lido nada deste autor. Três ou quatro. O professor então olha nos olhos de um e de outro e diz "invejo vocês por terem a chance de o ler pela primeira vez".
É claro que, depois disso, o valor de Dostoiévski cresceu ainda mais entre os alunos. A história desta aula do primeiro ano entra na rede de significados ligados ao autor, para quem a ouviu. Para mim, Dostoiévski chegou de outro modo. Eu namorava uma menina que tinha em sua estante, ao lado da cama, meia dúzia de títulos do autor. Ela o adorava. Fora isso, o nome sempre aparecia em uma conversa ou uma leitura, em qualquer lugar. Antes de começar a ler Crime e Castigo, o livro tinha já histórias em torno dele, textos que conformavam minhas expectativas e minhas disposições. Abri o livro com respeito e calma para superar as primeiras páginas, se ali não houvesse recompensas, pois segundo o que os demais textos me anunciavam, recompensa haveria em algum momento.
Relaciona-se a esta intertextualidade o meu hábito de não ler resenhas de cinema antes de ver os filmes. Gosto de no cinema estar mais sujeito à surpresa, já que em literatura, por causa do trabalho, não é fácil me esconder da informação. Lembro de quando fui assistir DogVille e, em meia hora de filme, notei que conhecia a atriz principal. Meia hora depois percebi que era a Nicole Kidman, reconhecimento que me trouxe uma satisfação momentânea. Se tivesse lido uma resenha sobre o filme, perderia este pequeno prazer íntimo. Ainda assim, foi preciso que eu tivesse alguma informação sobre o filme para que eu pagasse o ingresso. Neste caso, eu sabia quem era o diretor. Em outros casos, pode ter sido qualquer coisa: um ator, a recomendação de um amigo, um cartaz, um título curioso. Enfim, um texto.
Um texto não é um objeto isolado. Não é um objeto, é uma prática ligada a outras diversas práticas. Borges falou algo interessante sobre isso (algo que outros também devem ter falado, mas foi ele quem me alertou). Um texto se relaciona sempre com os textos seguintes, prepara a leitura. Mais do que isso, e está aí um ponto curioso, um texto que eu leia hoje pode alterar os significados de textos do passado. A relação é íntima, dinâmica e intensa assim.
Às vezes, inclusive, as histórias dos livros podem ser razoavelmente desconhecidas apesar de gerarem muito texto em torno delas. O Ulisses, do Joyce, por exemplo, é um livro que ninguém lê e que todo mundo comenta. Outro professor da USP, o José Pasta, disse em aula que, quando comprou o livro, anotou a lápis a data do dia da compra e a data de vinte anos depois, que vinte anos era o tempo que se dava para lê-lo. Como pode um livro que ninguém lê estar em quase todas as listas dos melhores romances da história? Como pode ser tão comentado? Acho que parte da resposta está em que o texto não se encerra entre as capas do livro, estende-se em toda sua infinita rede de relações com outros textos, sejam eles críticos, literários, anedóticos como os dos professores ou o modo como minha ex-namorada me falava sobre Dostoiévski.
Texto do Terra Magazine.
Marcadores: escola, literatura, vida
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