sábado, agosto 23, 2008

A doce morte de Dorival Caymmi

A doce morte de Dorival Caymmi


EM 1949, em plena glória existencialista, Albert Camus (1913-1960) veio ao Brasil. Estava gripado e deprimido. Detestou quase tudo.
Sobre a baía da Guanabara, disse que era espetacular demais para o seu gosto. As pessoas, na maioria, ele acha insuportáveis. Os motoristas brasileiros "ou são alegres loucos ou frios sádicos".
Fazem-no experimentar pratos da culinária baiana, "tão apimentados que fariam andar paralíticos".
Pobre Camus. Levam-no a uma macumba. A dança, "de estilo medíocre, é pesada e muito carregada".
O transe religioso produz nele um bocado de nojo: "Uma branca gorda, com uma cara animal, uiva sem parar [...]. Todos gritam e urram [...]. O calor, a fumaça dos charutos, o cheiro humano tornam o ar irrespirável.
Saio, trôpego, e respiro afinal deliciado o ar fresco. Amo a noite e o céu, mais do que os deuses dos homens".
Uma ou duas mulatas até que são bonitas, mas Camus concorda com o militante negro Abdias do Nascimento: "A raça é feia". De qualquer modo, pouco importa: "A natureza sufoca o homem".
A mistura de miséria e luxo lhe pareceu mais insolente no Brasil do que em qualquer outro lugar. "Desgosto e cinismo", resume Camus.
Mas seu "Diário de Viagem" (ed. Record) registra alguns momentos de felicidade. Camus vai jantar na casa de uns conhecidos franceses e encontra Manuel Bandeira, "pequeno homem extremamente fino".
Depois do jantar, aparece "Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta". Ouvem-se "as canções mais tristes e mais comoventes". "Pouco a pouco, todos cantam, e vêem-se um negro, um deputado, um professor de faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido", anota Camus.
Tinha de ser. Quem sabe até cantou, junto com Dorival Caymmi, algumas daquelas canções que todo mundo conhece, e que, na verdade, parece que já conhecia antes mesmo de terem sido compostas.
Fico nas básicas, como "É Doce Morrer no Mar" e "O Mar" ("Quando quebra na praia..."). A "tristeza", para usar o termo de Camus, é imensa nessas músicas -só que nelas não parece haver lugar para sentimentos tristes. Canções de ninar também são tristes, e não servem para entristecer.
"É Doce Morrer no Mar" se parece, sem dúvida, com um acalanto, por causa da melodia hipnótica; e também porque parece ter surgido "pronta", sem autor, de algum fundo noturno de folclore e de memória.
"Não parece coisa feita por gente", diz Arnaldo Antunes, citado pelo ensaísta Francisco Bosco, num livro primoroso sobre o compositor, para a coleção "Folha Explica". Francisco Bosco acrescenta: as canções praieiras de Caymmi parecem "o canto das coisas em si, as coisas cantando".
Enumera, em seguida: o vento, as ondas, o mar, a areia...
E, com isso, voltamos àquelas frases de Camus. "A natureza sufoca o homem", diz o escritor a propósito do Brasil; "amo a noite e o céu, mais do que os deuses dos homens", observa ele, não sem cair em alguma contradição.
De certo modo, a "doçura de morrer no mar" está no fato de permitir esse desaparecimento de toda individualidade, que a natureza brasileira, e a música de Caymmi, conseguem efetuar por um momento.
Não é por outra razão que "um negro, um deputado, um tabelião" e talvez um intelectual europeu terminam a noite cantando juntos.
Mas a morte doce de Caymmi poderia significar apenas uma espécie de consolo, de esquecimento, como o da canção de ninar, sem que o ouvinte se sinta curiosamente desperto e insaciado cada vez que ouve uma de suas composições.
Ouço novamente "É Doce Morrer no Mar". Não sei se alguma canção de ninar começaria com aquele salto melódico nas duas primeiras sílabas, que tem um componente de inquietação, de resistência inicial ao balanço que se vai seguir.
A antítese escondida no verso (do mar salgado à morte doce) repete-se em outros planos. É o vozeirão de Caymmi quem fala pela mulher, lamentando a morte do "marinheiro bonito". Mas a mulher fala pelo marinheiro, pois apenas para este é doce ser levado pela "sereia do mar".
Na letra existe também um jogo com o saveiro, que numa estrofe "voltou sozinho", e que em outra...
"partiu e não voltou". Marinheiro e barco se confundem nesse vaivém da música.
Não há pura dormência nisso.
Quem quer o mar quer sair daqui, mas também quer voltar. Maracangalhas e Bahias, quem sabe, talvez venham a ficar no mesmo lugar.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, de 20 de agosto de 2008.

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terça-feira, agosto 19, 2008

Rigor Baiano

A proverbial preguiça baiana é aqui desmentida por um rigor insuspeitado. Caymmi às vezes levava anos para terminar uma canção. E não chegou a compor muito mais do que uma centena delas, em sua vida. É que sua ética produtiva se centrava no princípio de só fazer as canções necessárias. Nesse caso, o rigor abarca uma dimensão passiva: a paciência. Caetano Veloso elucidou o modus operandi dessa ética: "É o deixar aparecer, deixar acontecer e ser extremamente responsável com relação ao que acontece".

Encontrei este texto acima na Folha de São Paulo. Cabe esclarecer: se a suposta preguiça de Dorival Caymmi era um rigor insuspeitado, no caso deste blogueiro a suposta preguiça é preguiça mesmo.


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Dorival Caymmi (1914 - 2008)

“Peguei um Ita no norte,

E fui pro Rio morar,

Adeus, meu pai, minha mãe,

Adeus, Belém do Pará.”

Não me lembro se durante a minha infância algum disco de Dorival Caymmi entrou lá em casa. Mas lembro de um disco que marcou época, e este disco se chamava “Gal canta Caymmi”. Foi um disco que se escutou bastante por lá. Vinil em 33 1/3 rotações por minuto.

Além da música cujos versos abrem este “post”, também é memorável aquela em que o compositor baiano diz que “o mar quando quebra na praia, é bonito, é bonito... o mar tanta gente perdeu seu marido e os filhos nas ondas do mar...” E esta me parece que me vem à memória no vozeirão de Caymmi.

E, claro, há o chiste. O estereótipo da preguiça baiana, segundo a qual, na Bahia as coisas aconteciam em três ritmos: lento, muito lento, e Dorival Caymmi. Como todo estereótipo, se pega alguns exemplos, aos quais se atribui o caráter paradigmático, e o exemplo de alguns se torna toda uma coletividade. Mas eu já tive a oportunidade de comentar com alguns chefes que eu trabalhava em ritmo Dorival Caymmi, a menos que me ameaçassem com uma faca no peito, em função de prazos.

É mais um brasileiro ilustre que se vai.

“Adeus, Belém do Pará, ...”


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