quarta-feira, julho 29, 2009

Da necessidade dos truques

Da necessidade dos truques

DE UNS tempos para cá, tornou-se comum o camarada morrer e não saber. Evidente, os outros "sabem", menos o próprio, que em tese e na prática devia ser o principal interessado no assunto. Vai daí, de repente descobri que um dos meus truques é fazer justamente ao contrário do que ficou estabelecido pelos atos, posturas, leis, decretos e regulamentos em vigor.
Por isso, decidi que morri no dia 1º de dezembro de 1981. Pode ser que muita gente acredite que morri antes desta feliz data para a humanidade, mas, para efeito pessoal, eu mesmo me decretei morto a partir daquele radioso dia de final de ano, lembro que fazia um sol que o Nelson Rodrigues classificaria como digno de rachar catedrais.
Em linhas gerais, e para fins particulares, estou morto e alguns ainda não sabem: amigos, parentes, credores e candidatos à Academia Brasileira de Letras, que são muitos e têm faro especial para essas coisas.
Pode parecer truque macabro, de péssimo gosto, mas tem lá suas vantagens. Não recebi qualquer tipo de homenagem, dessas que comumente se prestam aos defuntos. Não provoquei nenhuma lágrima pela minha ausência, nenhuma prece pela minha alma (e de nada adiantarão as rezas pela minha salvação), não mereci a módica linha impressa no obituário das folhas.
Aparentemente, tudo continuou como antes, mas eu sei que estou morto. Não tenho mais nada a ver com o que aí está, a vida, o mundo, as mulheres, o inverno, onde enterraram Michael Jackson, a crise no Senado, a faina humana e inglória. Bem verdade que os estabelecimentos bancários não aceitam essa morte de moto próprio, embora aceitem a hipótese de eu me espatifar por aí dirigindo minha própria moto. Moto que por sinal não tenho, justamente para não morrer de moto próprio.
Qual a vantagem de ter um truque? "Quid prodest?" -perguntariam os latinos. Respondo: é uma sensação tranquila essa da gente se saber morto, clandestino morto, insuspeitado morto na tripulação do mundo. Não me sinto mais comprometido com nada -mas continuo como testemunha do espetáculo, não mais cúmplice nem vítima.
Enquanto vivi, evidente que vi eventos extraordinários que se transformaram em ordinários. Um deles foi me tornar cronista de jornal sendo obrigado a dizer coisas quase todos os dias e sem ter nada a dizer em meu interesse ou no interesse dos outros. Isso sem falar no remoto ano em que levei originais mal datilografados a um editor e ele me disse: "Eu topo!".
Bem verdade que então era ainda vivo mas suspeitava que a minha vida entrava na fase vegetativa.
Lembro um episódio da vida de Napoleão. Quando foi coroado na Notre Dame, tendo obrigado o papa a se deslocar para Paris a fim de presidir a solenidade, sua mãe Letícia ocupava um camarote ao lado do altar-mor.
Ela viu aquela pompa toda, aquele absurdo, seu obscuro rebento nascido na distante Ajácio sendo sagrado imperador do mundo.Virou-se para sua filha Paulina e comentou: "Se o pai de vocês visse isso!"
Carlo Buonaparte já havia morrido de fato, não teve vida bastante para assistir às estripulias do filho. Mas se visse?
Taí a chave do truque. Ao contrário do pai de Napoleão, continuo pagando imposto de renda e demais posturas federais, estaduais e municipais, vendo muita coisa interessante sem a obrigação de tomar partido, de gostar ou de desgostar, de sofrer ou de encontrar prazer com a desdita ou a glória dos outros.
Dessa forma, me aproximarei, concretamente, daquele personagem de Gorki que muito gosto de citar. Era um bêbado que falava demais ou ficava calado demais. Um dia explicou: "Eu me aborreço em voz alta e me distraio em silêncio".
Aliás, essa necessidade de ter um truque vem também de Gorki: um personagem que, ao se suicidar, deixou um bilhete para o colega de quarto, um vagabundo tão miserável quanto ele, explicando por que se matava: "Faltou-me um truque".
Sem truque, é difícil, quase impossível aguentar a barra da vida. Com meu truque, não só aguentarei a barra da vida -pesadíssima- como a barra da própria morte -com seu diáfano peso de nada.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 24 de julho de 2009.


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domingo, julho 26, 2009

Temporada de caça ao hipopótamo na Colômbia

Está aberta a caça aos hipopótamos de Pablo Escobar

Marie Delcas
Em Bogotá (Colômbia)

Na foto, um grupo de militares colombianos exibe, triunfante, o cadáver de "Pepe". Era realmente preciso matá-lo? A polêmica é grande. Nem guerrilheiro nem traficante, Pepe era só um hipopótamo em fuga. Ele foi abatido, com o aval das autoridades ambientais do departamento de Antioquia (noroeste) em 16 de junho. A foto foi publicada em 10 de julho.

Desde então, ecologistas, defensores dos animais, editorialistas e cidadãos se mobilizaram na Colômbia para salvar Matilda, a fêmea de Pepe, e seu bebê, Hip. Duas instituições - o zoológico da cidade de Pereira e um parque de diversões de Bogotá - se apresentaram como aptos a capturar os animais. Mas apanhá-los não é fácil, e cuidar deles custa caro.

Hipopótamos nos Andes? É a Pablo Escobar, morto em 1993, que a Colômbia deve seus paquidermes. Nos anos 1980, o mafioso, à altura de seu poder, adaptou sua propriedade, a Hacienda Napoles, para abrigar dezenas de animais selvagens importados clandestinamente da África. Com a morte do "patrão", o governo assumiu o controle das terras e distribuiu os animais pelos diferentes zoológicos da região. Todos, exceto os hipopótamos que, por serem pesados demais para serem transportados, foram abandonados à sua sorte. E a sua libido.

Segue uma série de bebês hipopótamos que crescem e, por sua vez, têm filhotes: 22 animais pastam hoje nos verdes prados da fazenda. Dois anos atrás, o intrépido Pepe e sua companheira fugiram para descobrir as águas turbulentas do grande rio Magdalena.

Morte "muito colombiana"
As autoridades ambientais justificam a permissão de "caça controlada" dada, invocando os perigos que os animais errantes representam aos pescadores e às plantações. Mas "nenhum incidente sério foi registrado em dois anos", lembra o editorial de "El Tiempo".

O principal jornal do país considera que o governo calculou mal o impacto "de uma solução para o problema dos hipopótamos". O cronista Daniel Sampler denuncia a morte "muito colombiana" de Pepe em um país "que resolve seus problemas com tiros de fuzil".

Na internet, os internautas expressam sua indignação. "Os homens são bem mais perigosos para o planeta do que os hipopótamos", lembra um. "Se tivéssemos de matar tudo que fosse perigoso, não sobraria muita gente neste país", acrescenta outro.

Na terça-feira (14), uma manifestação estava prevista diante do ministério do Meio Ambiente em Bogotá. Cecília B. se espanta: "Quando o exército apresenta como troféu de caça o cadáver de um guerrilheiro ou de um criminoso, ninguém se comove".

Tradução: Lana Lim

Notícia do Le Monde, no UOL.

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sexta-feira, julho 24, 2009

Estudo diz que P2P é benéfico à sociedade

O compartilhamento de arquivos na internet não desencoraja a produção criativa. É o que diz a pesquisa de uma dupla de economistas de Harvard Business School.

De 2000 para cá, segundo Felix Oberholzer-Gee e Koleman Strumpf, no ápice do crescimento do P2P e da proliferação do MP3, a indústria musical mais que duplicou suas produções.

A análise informa que em 2007, incluindo os lançamentos digitais, 79.685 álbuns foram criados no mundo. Sete anos antes, o número foi de 35.516 novos discos, de acordo com dados da Nielsen SoundScan.

As vendas das gravações, sim, decaíram, entretanto, os estudiosos apresentam dados que evidenciam que o lucro dos artistas não diminuiu com a popularização do compartilhamento digital. Verbas provindas de shows, por exemplo, cresceram mais do que o comércio das mídias caiu, segundo a conclusão do File Sharing and Copyright Working Paper (disponível para consulta em PDF).

O que ocorre no mercado, conforme publicado no relatório, trata-se de uma maior distribuição do faturamento. Enquanto as gravadoras perdem parte de seu lucro, empresas relacionadas a concertos musicais e reprodutores de mídia digital, como a Apple e seu icônico iPod, crescem expressivamente seus negócios.

Um dos principais argumentos dos opositores ao compartilhamento de arquivos na web é que o desrespeito aos direitos autorais desestimularia a criação de novos trabalhos na área fonográfica e também na literatura.

Os números de lançamentos nos últimos anos em todo o mundo, inclusive na área cinematográfica, refutam a tese. Em quatro anos, de 2003 a 2007, o número de filmes aumentou em mais de mil produções anuais, informa pesquisa da Screen Digest. O curioso é que o aumento também acontece em países onde as cópias ilegais são mais comuns, como na China, Coréia do Sul e Índia.

Na conclusão da pesquisa, os economistas escrevem que o formato digital também diminui o custo de produção de filmes e músicas, permitindo com que os artistas atinjam o público-alvo em diferentes formas. As pesquisas futuras da Harvard Business School se direcionarão para essa mudança de renda induzida pelas novas tecnologias, segundo os próprios.

Texto da INFO Exame.

Sobre este assunto ainda há um texto do IDG Now! sobre um processo da associação das gravadoras nos Estados Unidos, que infligiu uma indenização de US$ 1,9 milhão sobre uma mulher acusada de possuir arquivos adquiridos sem licença em redes de compartilhamento.

Há também um outro no Gizmodo Brasil sobre uma pessoa que foi acossada pelo mesmo motivo, sem que ele nem mesmo tivesse computador.

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terça-feira, julho 21, 2009

2009: A Greve dos Bancários NÃO Acabou

Na verdade ainda nem começou, mas a Folha de São Paulo informa que a federação nacional dos bancários está pleiteando reajuste de 10%.

Este “post” está aqui porque é comum em época de dissídio as pessoas virem parar aqui por indicação do Google, este oráculo da Internet.

Eu tento acompanhar a movimentação dos bancários em meu outro blog, o Ainda a Mosca Azul.

Uma boa fonte para acompanhar o assunto é o saite do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre. Outra é o saite do Sindicato dos Bancários de São Paulo.

Setembro também é época de campanha salarial dos funcionários dos Correios.


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VJ's de Mianmar

Enfrentando um regime, só com câmeras

Cineastas de guerrilha filmam ida de monges às ruas birmanesas

Por JOHN ANDERSON

TORONTO — “VJs de Mianmar – Notícias de um País Fechado” narra o trabalho de um jornalista birmanês e de sua equipe de cinegrafistas “guerrilheiros” durante a chamada Revolução Açafrão, em 2007, na qual monges budistas participaram de protestos nas ruas contra a ditadura militar de Mianmar (ex-Birmânia).
Conectados por celulares e e-mail, gravando clandestinamente com minicâmeras e contrabandeando as imagens para fora do país por meio de portadores, da internet e de conexões por satélite, os correspondentes da Voz Democrática da Birmânia (canal de TV com sede em Oslo) não só expuseram o caráter totalitário das autoridades birmanesas, como também revelaram o futuro da reportagem de guerra. No festival Hot Docs de Toronto, no começo de maio, o jornalista birmanês apareceu de chapéu, enormes óculos escuros e xale, quase sem olhar para frente e sem posar para fotos.
Esse jornalista de 27 anos, franzino e desgrenhado, atualmente vive na Tailândia, em grande parte porque acha que não suportaria ficar calado sob tortura caso fosse para Mianmar, onde é considerado um inimigo público pela junta militar.
“VJs de Mianmar”, dirigido pelo dinamarquês Anders Ostergaard, também foi adotado pela atual presidência tcheca da União Europeia em sua campanha por direitos humanos. “Veja você: eu ia fazer um retrato de 30 minutos do Joshua [o pseudônimo do jornalista], e então todo tipo de coisa aconteceu”, contou Ostergaard.
O que aconteceu foi a rebelião quase espontânea de meados de 2007, incitada pela duplicação do preço da gasolina, pela prisão da ativista Su Su Nway e pela frustração generalizada da população.
Para Ostergaard, foi uma coincidência. Ele tinha sido procurado por sua produtora, Lise Lens-Moller, para fazer um filme sobre Mianmar e foi colocado em contato com jornalistas da Voz Democrática da Birmânia em Bancoc, onde eles recebiam treinamento. Aí os fatos viraram seus planos de ponta-cabeça.
Conforme explica uma legenda na abertura, “VJs de Mianmar” contém certas encenações que interligam as sequências das ruas, todas reais, que mostram monges, passeatas, agressões policiais e o assassinato à queima-roupa de um jornalista japonês. Embora dramaticamente eficaz, tal técnica horroriza os puristas do documentário.
“Estou absolutamente convencido de que não havia como contar essa história sem reconstituições”, disse Ostergaard. Filosofia cinematográfica à parte, “VJs de Mianmar” dá poderosas pistas sobre novas formas de documentar a opressão e convencer a opinião pública mundial.
“A tecnologia está ao nosso lado”, disse Micheline Lévesque, especialista em Ásia da entidade Rights and Democracy. Ela disse que relatos sobre violações de direitos humanos, quando feitos fora de um país como Mianmar, são rotineiramente ignorados por países que desejam continuar negociando com um regime opressor. É mais difícil ignorar um “VJs de Mianmar” e a tecnologia que ele propõe, cuja influência afinal pode ser enorme. “O Tibete está muito interessado”, disse Lévesque, “e outros movimentos em outros países estão vendo o que acontece na Birmânia para usar em seus próprios movimentos”.
“VJs de Mianmar” será exibido pela HBO no começo de 2010. (O filme foi escolhido como melhor documentário de longa e média metragem no festival brasileiro É Tudo Verdade 2009.) “Ele está liberado na Birmânia porque todo o mundo o pega pela parabólica”, disse Khin Maung Win, dirigente da Voz Democrática da Birmânia.
A audiência global será uma dádiva para a causa birmanesa, mas também uma janela para um novo mundo político.
“É tanto uma história sobre tecnologia quanto sobre coragem”, disse Sheila Nevins, presidente da unidade de documentários da HBO, para quem os VJs de Mianmar evocam os universitários do movimento antinazista não violento Rosa Branca, na Munique da década de 1940. “A única forma pela qual eles podiam difundir a informação era fazendo panfletos em uma máquina e jogando-os pela universidade. E é claro que foram apanhados. E decapitados. Mas você avança”, contou ela, agregando que, com a ajuda da tecnologia, fica mais difícil “para uma ditadura militar manter segredos”.

Texto do The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo, de 8 de junho de 2009.

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Animais se arrependem?

Estudos sugerem que animais também se arrependem

John Tierney
The New York Times

Se você tem um cachorro, especialmente um que tenha molhado seu tapete favorito, sabe que um animal é capaz de se desculpar. Ele consegue choramingar, se arrastar, enfiar o rabo entre as pernas e parecer absolutamente mortificado - "Não sei o que deu em mim".

Mas será que ele está realmente pesaroso?

Poderia um animal sentir dores verdadeiras de arrependimento? Cientistas já desdenharam essa ideia como um tolo antropomorfismo. Eu costumava me identificar com os céticos que descartavam esse tipo de pesar como variações das lágrimas de crocodilo. Os animais pareciam ocupados demais pensando na próxima refeição para afundarem-se em autorrecriminação. Se animais velhos tivessem uma canção, ela seria "My Way".

Entretanto, enquanto aparecem, cada vez mais, novos relatos - coiotes aparvalhados, macacos arrependidos, tigres que cobrem seus olhos em remorso, chimpanzés que repensam suas escolhas -, mais eu penso se os animais entregam-se à sensação de culpa. Seu cachorro pode não compartilhar da complexa melancolia de Hamlet, mas pode ter algo em comum com Woody Allen.

Os dados mais recentes vêm de imagens neurais de macacos tentando ganhar um prêmio de suco ao adivinhar onde ele estava escondido. Quando os macacos faziam a escolha errada e lhes era mostrado o local correto do prêmio, os neurônios em seus cérebros registravam claramente o que poderia ter acontecido, de acordo com neurobiólogos da Universidade Duke, que recentemente relataram o experimento na revista "Science".

"Essa é a primeira evidência de que macacos, assim como pessoas, têm pensamentos do tipo 'teria, poderia'", disse Bem Hayden, um dos pesquisadores. Outro dos autores, Michael Platt, apontou que os macacos reagiam a suas perdas trocando suas escolhas subsequentes, exatamente como humanos reagem a uma oportunidade perdida através da troca de estratégia.

"Posso imaginar muito bem que o arrependimento seria altamente vantajoso evolutivamente, contanto que não haja obsessão a respeito dele, como na depressão", disse Platt. "Um macaco sem arrependimento poderia agir como um psicopata ou um Dom Quixote símio".

Em experiências anteriores, tanto chimpanzés quanto macacos, que trocaram chaveiros por pepinos, reagiram negativamente assim que viram que outros animais estavam ganhando um prêmio mais gostoso - uvas - pelo mesmo preço. Eles fizeram sons irritados e algumas vezes atiraram os pepinos ou os chaveiros, relatou Sarah Crosnan, psicóloga da Universidade Estadual da Georgia.

"Acho que animais realmente sentem arrependimento, quando definido como o reconhecimento de uma oportunidade perdida", disse Brosnan. "Na natureza selvagem, essas habilidades podem ajudá-los a reconhecer quando eles devem sair para caçar em diferentes áreas ou buscar um parceiro de ajuda capaz de dividir os prêmios de forma mais justa".

Ninguém sabe exatamente, é claro, como esse sentimento de remorso afeta um animal no lado emocional. Quando vemos um cachorro se arrastando e nos olhando por baixo, gostamos de deduzir que ele esteja sofrendo como nós mesmos após uma gafe. Todavia, talvez ele esteja apenas nos enviando um útil sinal: eu errei.

"É possível que esse tipo de sinal social em animais possa ter evoluído sem a experiência consciente do arrependimento", disse Sam Gosling, psicólogo da Universidade do Texas, em Austin. "Mas parece mais plausível que haja algum tipo de experiência consciente, mesmo que não seja do mesmo tipo que eu e você sentimos".

Marc Bekoff, um ecólogo comportamental da Universidade do Colorado, diz estar convencido de que animais sentem dores emocionais por seus erros e oportunidades perdidas. "Em "Wild Justice", seu novo livro, escrito numa parceria com a filósofa Jessica Pierce, Bekoff relata milhares de horas de observação de coiotes na vida selvagem, além de cachorros domesticados em liberdade.

Quando um coiote recuava após ser mordido forte demais durante uma brincadeira, o coiote ofensor imediatamente se curvava para reconhecer o erro, disse Bekoff. Se um coiote era evitado por brincar injustamente, ele se arrastava pela área com as orelhas levemente para trás, cabeça baixa e rabo entre as pernas, alternadamente se aproximando e se retirando do grupo de animais. Bekoff disse que os coiotes arrependidos o faziam lembrar-se dos animais não-populares em torno do perímetro de parques de cachorros.

"Esses animais não são tão emocionalmente sofisticados quanto humanos, mas precisam saber o que é certo e o que é errado - pois essa é a única maneira pela qual grupos sociais podem funcionar", disse. "O arrependimento é essencial, especialmente no mundo selvagem. Humanos são muito misericordiosos com seus animais de estimação, mas se um coiote selvagem fica com uma reputação de trapaceiro, ele é ignorado ou banido, e acaba deixando o grupo".

Bekoff descobriu que, uma vez que o coiote está sozinho, seu risco de morrer jovem aumenta em quatro vezes.

Se nossos animais de estimação sabem como somos moles, talvez seu arrependimento seja basicamente uma atuação para nos enganar. Mesmo desta forma, gosto de pensar que alguma coisa do pesar é real, e que pesquisadores ainda conseguirão compilar uma lista dos 10 Maiores Arrependimentos de Bichos. Eu gostaria de, pelo menos, ver os pesquisadores abordarem algumas das grandes questões não-respondidas:

Quando você está brincando de "vá buscar" com um cachorro, quanto arrependimento ele sente quando lhe traz a bola de volta? Seria a mesma quantidade de quando ele termina o jogo em posse dela?

Animais vândalos sentem dúvidas morais? Depois de ver tapetes, malas e móveis destruídos por meus bichos, não acho que a evolução tenha favorecido os animais com qualquer senso de direito de propriedade. Todavia, me sinto encorajado pelas histórias de vândalos pesarosos no livro de Eugene Linden sobre comportamentos animais, "The Parrot's Lament".

Ele fala de um jovem tigre que, após destruir todas as árvores recém-plantadas num zoológico na Califórnia, cobriu seus olhos com as patas quando o funcionário chegou. Há também os chimpanzés fêmeas do zoo de Tulsa, que se aproveitaram de um projeto de renovação para roubar os suprimentos dos pintores, vestir luvas e pintar seus bebês de branco sólido. Quando confrontados pelos funcionários furiosos, as mães correram para longe, retornando mais tarde com presentes de paz e bebês já sem a tinta.

Quão esdrúxula é Síndrome de King Kong? Gorilas machos e fêmeas se tornaram tão apreciadores dos funcionários que cuidam deles, além de demonstrarem abertura sexual - um deles até mesmo tentou arrastar uma funcionária pelo cabelo. Após a recusa inevitável, será que eles temem haver arruinado uma linda amizade?

Será que gatos de estimação se arrependem de alguma coisa?

Este texto do The New York Times, foi republicado no UOL Ciência e Saúde.

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sábado, julho 18, 2009

Pastora Caroline

PASTORA CAROLINE

"Deus deu dinheiro pro Real Madrid contratar o Kaká"

"Enquanto papai tá fazendo gol, a gente vai aqui pisar na cabeça do Diabo, né? Em nome de Jesus." Foi assim que a bispa Sônia Hernandes, fundadora da Igreja Renascer em Cristo, recebeu no palco de um culto, nos Estados Unidos, o filho do craque Kaká, Luca, e a mulher do jogador, a "pastora Carol, de Milão".

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Caroline Celico se tornou pastora da Renascer recentemente. E, no dia 21 de junho, na Flórida, deu seu testemunho a um grupo de jovens do PA (Projeto Amar) da igreja. Os vídeos da pregação estão no YouTube [www.youtube.com/watch?v=f-hCMe-lOmA].

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No púlpito, microfone na mão, Carol explica a relação de Deus com a ida de Kaká para a Espanha. "Como pode no meio da crise alguém ter dinheiro? O dinheiro do mundo tem que tá em algum lugar. E Deus colocou esse dinheiro na mão de quem? Do Real Madrid, pra contratar o Kaká. Foi uma grande bênção."

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Caroline assume que ainda se atrapalha com o vocabulário futebolístico e diz que o que motiva o casal "é que nós vamos estar podendo abrir uma igreja lá". "O Senhor estava nos querendo lá em Madri", diz Caroline.


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Depois de quase quatro anos de casamento com Kaká, a nova pastora falou sobre a opção do casal por manter a virgindade antes da união. "Eu pensei: "Meu Deus, quando eu falar pra ele [que queria casar virgem], ele vai me largar, né?" Ele ficou emocionado e falou: "Esse é o sinal que eu tinha pedido pro Senhor. Eu pedi que, se você fosse a pessoa certa, você ia querer fazer essa aliança de se santificar, de esperar até o casamento"."

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Com roupa discreta e maquiagem caprichada, Caroline explica ainda que, quando teve o seu "encontro com o Senhor", aos 15 anos, ficou impressionada com a beleza dos jovens da igreja. "Eu entrei na Lins [templo da Renascer na avenida Lins de Vasconcelos, em SP] e vi pela primeira vez jovens lindos numa igreja. Normalmente, não é assim. A gente é diferente mesmo. Vocês derrubam o inferno só com a beleza. Amém?"

Trecho da coluna de Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo, de 17 de julho de 2009.

Prevejo comentários na revista CartaCapital da semana que vem.


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sexta-feira, julho 17, 2009

Cartão-postal



Nevoeiro no Rio ontem de manhã; a visibilidade nos aeroportos ficou reduzida e as operações tiveram de ser interrompidas, o que provocou atrasos, principalmente no Santos Dumont

Visto na Folha de São Paulo, 23/06/2009. Foto de Genilson Araújo, para a Agência O Globo.


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Judeus convertidos do Peru fazem êxodo para Israel

Judeus convertidos do Peru fazem êxodo para Israel

Simom Romero
Em Iquitos (Peru)

Se algum dia Ronald Reategui Levy tornar-se o último judeu de Iquitos, isso poderá ser culpa dele próprio.

O sonho que ele procurou vigorosamente concretizar era persuadir os descendentes de mercadores sefardins que instalaram-se nesta região remota da Amazônia peruana há mais de um século a reafirmarem os seus vínculos com o judaísmo e emigrarem para Israel.

"Este lugar está ficando muito solitário", afirma Reategui Levy, 52, que é inspetor da companhia nacional de petróleo do Peru, referindo-se aos mais de 400 descendentes de pioneiros judeus que converteram-se formalmente ao judaísmo nesta década, incluindo 160 membros da sua família. Atualmente quase todos eles moram em Israel.

Até recentemente, um tal renascimento do judaísmo parecia algo improvável. A história dos judeus de Iquitos, que remonta ao boom da borracha do século 19 que transformou esta distante localidade amazônica em uma cidade que já foi próspera - famosa pelo mármore importado e por um teatro projetado por Gustave Eiffel - acabou quase esquecida.

Mas Reategui Levy e alguns outros indivíduos passaram a organizar os descendentes de dezenas de judeus oriundos de locais tão diversos como Marrocos, Gibraltar, Malta, Inglaterra e França, que instalaram-se aqui nas profundezas da selva, abrindo casas comerciais e seguindo a sorte em busca de riquezas e aventuras.

O comércio da borracha entrou em colapso, e as fortunas daqui e da cidade brasileira de Manaus, a jusante do rio, desapareceram. Alguns imigrantes judeus morreram novos, sucumbindo devido a doenças como a cólera. Alguns ficaram, casaram-se com mulheres da região e constituíram família. Outros voltaram para os locais de origem, deixando atrás descendentes que apegaram-se a uma crença de que eram judeus.

"Fiquei surpreso ao descobrir que em Iquitos havia esse grupo de pessoas desesperadas por restabelecerem contato com as suas raízes e com o mundo judaico mais amplo", diz Lorry Salcedo Mitrani, diretor de um novo documentário, "The Fire Within" ("O Fogo Interior"), sobre os judeus da Amazônia peruana.

Os estudiosos comparam os judeus daqui com grupos como os cripto-judeus hispânicos do sudoeste dos Estados Unidos e do norte do México, os lembas do sul da África ou os bene israels da Índia, que de várias maneiras procuraram retomar a sua identidade judaica que parecia ter ficado enfraquecida com o passar do tempo.

"Nós ficamos isolados durante muitas décadas, vivendo nas bordas da selva em uma sociedade católica sem rabinos nem sinagogas, na qual tudo o que tínhamos eram algumas ideias vagas sobre o que significava ser judeu", explica Reategui Levy. "Mas quando eu era criança, a minha mãe me disse algo que ficou queimando para sempre na minha mente: 'Você é judeu, e jamais esquecerá isso'".

Iquitos fica quatro graus de latitude ao sul da linha do Equador, e o acesso à cidade só é possível por barco ou avião. O isolamento, os casamentos mistos e a assimilação quase acabaram com todos os vestígios do judaísmo aqui. Fachadas de lojas com nomes judeus gravados em pedra como Foinquinos e Cohen, e um cemitério depredado por vândalos são alguns dos poucos sinais da comunidade que no passado prosperou aqui.

Mas no final da década de 1990, alguns desses descendentes, incluindo Reategui Levy, foram reunidos por Victor Edery, uma figura patriarcal que organizava cerimônias religiosas na sua própria casa, mantendo alguns costumes vivos, mesmo que isso fosse feito com a mistura de crenças judaicas e cristãs.

Entretanto, a existência dos judeus de Iquitos representou certos desafios filosóficos para alguns judeus de outras regiões. Como quase todos os judeus que estabeleceram-se originalmente aqui eram homens, os seus descendentes não podiam comprovar que tinham mães judias, um fato que os descartava como judeus segundo às interpretações estritas da lei judaica.

Além do mais, segundo alguns estudiosos, a comunidade judaica de cerca de 3.000 pessoas em Lima, a capital do Equador, preferiu ignorar os judeus de Iquitos, em parte devido às questões delicadas que os judeus daqui representavam no que diz respeito a raça e origens. Afinal, este é um país no qual uma pequena elite de pela clara ainda conta com um considerável poder econômico e político - e os judeus de Lima são muitas vezes vistos como uma elite dentro de uma elite.

"A ideia de um judeu que tem fisionomia indígena e que mora em uma casa pobre em uma cidade pequena no meio da selva é, na melhor das hipóteses, uma nota exótica de rodapé na história oficial dos judeus do Peru, da forma como essa história é vista em Lima", afirma Ariel Segal, um historiador israelense nascido na Venezuela, cuja chegada aqui na década de 1990 para estudar a comunidade foi um dos catalisadores que contribuiu para que os judeus de Iquitos se organizassem.

No início desta década, os judeus daqui estavam se reunindo para observar o sabá a cada sexta-feira e durante os dias sagrados na casa do patriarca, Edery. Depois que este morreu, eles passaram a reunir-se na Rua Próspero, na casa de Jorge Abramovitz, 60, cujo pai, um judeu polonês, mudou-se para cá bem depois do colapso do ciclo da borracha.

Embora não contassem com um rabino, eles realizavam os cultos em hebraico que aprenderam com fitas cassete. Eles limparam o cemitério e começaram a enterrar novamente os seus mortos lá. Eles persistiram na sua campanha para serem reconhecidos como judeus e receberem permissão para emigrar para Israel.

Finalmente, eles persuadiram Guillermo Bronstein, o principal rabino da maior sinagoga asquenaze de Lima, a supervisionar duas grandes iniciativas de conversão, abrindo desta forma o caminho para que centenas de indivíduos se mudassem para Israel. O êxodo incluiu quase todo o clã Levy, formado pelos descendentes de Joseph Levy, um aventureiro que estabeleceu-se aqui no século 19.

Reategui Levy, o inspetor de campos petrolíferos, mudou em 2005 com a mulher e seis filhos para Ramla, uma cidade poeirenta no sudeste de Tel Aviv. Mas, apesar de ter sonhado com a mudança durante décadas, ele diz que enfrentou problemas para adaptar-se à vida israelense.

Levy conta que passou a sentir saudade da casa com pés de cacau e de maracujá, bem como do status conferido pelo cargo de gerente da PetroPeru. Ele murmura algo, em uma voz que mal pode ser ouvida devido ao barulho das motocicletas da cidade, a respeito da perda da "chama do amor" com a sua mulher.

Portanto, ao contrário de quase todos os moradores de Iquitos que mudaram-se para Israel, Reategui Levy acabou retornando ao Peru, sozinho.

Ele ainda participa do sabá na casa de Abramovitz todas as semanas, juntamente com os cerca de 40 outros indivíduos que sonham em converter-se formalmente e mudar-se para Israel. Embora o número dessas pessoas tenha diminuído, ele as encoraja e conta-lhes histórias sobre a terra fértil das Colinas de Golã e a coragem do filho mais velho, Uri, que está no exército israelense.

Mas algo mantém Reategui Levy aqui em Iquitos, a mesma cidade decadente da selva que atraiu o seu tataravô de Tangier tantas décadas atrás. "A minha família, o meu coração e a minha alma, tudo o que prezo está em Israel", diz ele. "Talvez haja um motivo para eu ter voltado para cá".

Tradução: UOL

Texto do The New York Times, republicado no UOL.


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Velórios de vida e morte e uma ínfima lição de filosofia

Velórios de vida e morte

NUNCA FUI de curtir velórios. Na realidade, detesto ir a qualquer compromisso social: batizados, casamentos, aniversários, noites de autógrafos, estreias teatrais. Dos enterros, sobretudo, procuro conservar a máxima distância. Costumo romper relações sociais com os amigos que morrem, fico na saudade e fico bastante. Cerimônias festivas ou fúnebres, só mesmo quando não dá para arranjar uma desculpa posterior, ou quando sou apanhado em flagrante.
Acontece que esse horror aos enterros tem agora uma justificativa: é que a plebe está aproveitando a ocasião para fazer festanças. Não sei se foi sempre assim, mas a mania propagou-se e não poupa defunto, ilustre ou não. No enterro do Glauber Rocha, por exemplo, foram feitas e ditas tantas besteiras que por pouco o Glauber não se levantava e dava banana do caixão.
Aos poucos, os velórios estão ficando parecidos com noites de autógrafos, festivais disso ou daquilo, shows promocionais de lançamentos musicais, exposições de variadas artes. Tudo bem, espetáculo é espetáculo, o show deve continuar -dizem os entendidos. Para o velório de Michael Jackson, o mais recente em escala mundial, distribuíram (ou venderam) 17 mil ingressos, com direito a barraquinhas de pipoca e cachorro quente nas imediações. Até do Camboja veio equipe de tevê para gravar a cerimônia.
Muitas vezes o evento fúnebre é aproveitado para declarações de princípios, que muitas vezes não são os mesmos do falecido. Lembro o velório do Mário Pedrosa, um sujeito curioso, papa absoluto da nossa crítica de artes plásticas, que apesar dos 80 anos dava a impressão de ter quinze. Sua trajetória na cultura nacional foi marcada pela dignidade, pela paixão, pela pureza. A exaltação que colocava na política tornou-se até anedótica.
Sofreu exílios, prisões, mas foi em frente. Abriu clareiras em nosso feudo acadêmico e tal como Otto Maria Carpeaux, que ficou enjoado da literatura e nos últimos anos de vida só pensava em política, Mário Pedrosa chutou a arte para corner e meteu os peitos na participação política, que para ele era uma forma de viver superior à arte.
Mas nem Mário Pedrosa foi grande o bastante para que o pessoal ficasse calado em seu velório. O que houve de bobagem daria para encher uma biblioteca. Cito apenas o exemplo: um psiquiatra nativo (parece que nascido em Minas, mas era nativo assim mesmo) disse que havia aprendido com Mário que "não há socialismo sem liberdade nem liberdade sem socialismo".
Bem, não conheci a obra toda de Mário para conferir. De qualquer forma, creio que o psiquiatra se excedeu. A primeira parte de sua afirmação é válida. O socialismo tende à liberdade. Abolindo o lucro, ele estabelece uma relação entre a sociedade e o Estado, e entre os indivíduos entre si, desvinculada de qualquer interesse que não o social.
O lucro, no sistema capitalista, fatalmente gera compartimentos econômicos que transformam cada setor numa gaiola da qual só se sai pela droga, pelo roubo ou pela competição doentia, tornando-se selvagem.
Agora, quanto à segunda parte ("não há liberdade sem socialismo") a besteira é primária. Liberdade faz parte da "essentia" humana. O socialismo, como qualquer outro "ismo!", é "acidens". Ou seja, acidente.
Não estou aqui para ensinar lógica aristotélica de graça, mas confundir um valor essencial com um valor acidental é burrice que não pode ser atribuída nem ao Mário nem a ninguém. A liberdade não foi criada pelo ser humano, pela sociedade humana. Tal como a consciência, ela é um valor em si, uma categoria "apta inesse pluribus", ou se quiserem, universal.
Já o socialismo, como o tribalismo, o teosofismo, o catolicismo, o canibalismo, o fascismo, o filatelismo, o escotismo e o feminismo são bolações humanas, feitas pelo homem e para uma espécie de homem, são acidentais e incidentais. Algumas prestam, outras nem tanto e muitas são perniciosas. A liberdade é apenas como a vida e a morte. Um valor absoluto que se conquista durante a vida e em alguns casos só se ganha depois da morte.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 10 de julho de 2009.


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quinta-feira, julho 16, 2009

É necessário estar sempre bêbado

Embriagai-vos

É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e voz faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:
- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

Charles Baudelaire (1821-1867)

Visto no Diário Gauche.

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Psicóloga que diz "curar" gay vai a julgamento em conselho

Psicóloga que diz "curar" gay vai a julgamento em conselho

Conselho Federal de Psicologia decide no dia 31 se cassa licença de Rozângela Alves Justino

Resolução veta tratar questão como doença e recrimina indicação de tratamento; se o registro for perdido, será a 1ª condenação do tipo no país

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O Conselho Federal de Psicologia julga, no fim deste mês, a cassação do registro profissional de Rozângela Alves Justino por oferecer terapia para que gays e lésbicas deixem a homossexualidade. Se perder a licença, será a primeira condenação desse tipo no Brasil.
Resolução do próprio conselho proíbe há dez anos os psicólogos de lidarem a homossexualidade como doença e recrimina a indicação de qualquer tipo de "tratamento" ou "cura".
Rozângela, que afirma ter "atendido e curado centenas" de pacientes gays em 21 anos, diz ver a homossexualidade como "doença" e que algumas pessoas têm atração pelo mesmo sexo "porque foram abusadas na infância e na adolescência e sentiram prazer nisso".
Numa consulta em que a reportagem, incógnita, se passava por paciente, Rozângela, que se diz evangélica, recomenda orientação religiosa na igreja.
"Tenho minha experiência religiosa que eu não nego. Tudo que faço fora do consultório é permeado pelo religioso. Sinto-me direcionada por Deus para ajudar as pessoas que estão homossexuais", afirma.
A cassação de Rozângela, que atende no centro do Rio, foi pedida por associações gays e endossado por 71 psicólogos de diferentes conselhos regionais.
Segundo Rozângela, que já foi condenada a censura pública no conselho regional do Rio no final de 2007, "o movimento pró-homossexualismo tem feito alianças com conselhos de psicologia e quer implantar a ditadura gay no país".
"É por isso que o conselho de psicologia, numa aliança, porque tem muito ativista gay dentro do conselho de psicologia, criou uma resolução para perseguir profissionais", afirma.
No Rio, Rozângela participa do Movimento Pela Sexualidade Sadia, conhecido como Moses, ligado a igrejas evangélicas.
A almoxarife Cláudia Machado, 34, diz que recebeu de Rozângela a apostila "Saindo da homossexualidade para a heterossexualidade", que prega meios para a mudança de orientação sexual. "Hoje vivo a minha homossexualidade tranquila, essa história de cura não existe, o que houve foi um condicionamento. Reprimi meus desejos. Não sentia prazer", diz.
Já a pedagoga Fernanda, que pede para não ter o sobrenome divulgado, diz ter sido lésbica por dez anos e que, depois da terapia que faz com Rozângela há quatro anos, passou a ter relações heterossexuais. "Realmente há possibilidade de sair da homossexualidade. É um processo longo. De lá para cá busco a feminilidade."
"A ciência já mostrou que não existe tratamento para fazer com que alguém deixe de ter desejo homossexual nem heterossexual. Quando se promete algo assim, é enganoso", diz o terapeuta sexual Ronaldo Pamplona, da Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana.
Segundo ele, a Sociedade Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade do diagnóstico de doenças em 1974, seguida, uma década depois, pela Organização Mundial da Saúde.
"Se absolvê-la, o Conselho Federal de Psicologia vai referendar a tese de que é possível "curar" gays", diz Toni Reis, presidente da ABGLT, a associação brasileira de homossexuais.
"Isso traz prejuízo aos gays e contribui para fortalecer o estigma", afirma Cláudio Nascimento, superintendente da Secretaria de Direitos Humanos do Rio e do grupo Arco-Íris.
"Vejo [o pedido de cassação] como uma injustiça", diz Rozângela, que, se cassada, pensa em recorrer à Justiça comum.
De um lado, cem entidades gays de todo o país vão levar um manifesto e manifestantes no dia do julgamento de cassação de registro de Rozângela, no próximo dia 31, em Brasília. Do outro, ela diz que vai reunir alguns ex-gays e psicólogos amordaçados para protestar contra a censura que diz sofrer.

Notícia da Folha de São Paulo, de 14 de julho de 2009.

"É a Inquisição para héteros", diz terapeuta

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A psicóloga Rozângela Alves Justino diz que homossexualidade é uma "doença" e que "a maioria dos gays foi abusado sexualmente na infância e sentiu prazer nisso".

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif

FOLHA - Como a sra. vê o homossexualismo?
ROZÂNGELA ALVES JUSTINO
- É uma doença. E uma doença que estão querendo implantar em toda sociedade. Há um grupo com finalidades políticas e econômicas que quer estabelecer a liberação sexual, inclusive o abuso sexual contra criança. Esse é o movimento que me persegue e que tem feito alianças com conselhos de psicologia para implantar a ditadura gay.

FOLHA - O que é ditadura gay?
JUSTINO
- Há vários projetos no Congresso para cercear o direito de expressão, de pensamento e científico. Eles foram queimados na Santa Inquisição e agora querem criar a Santa Inquisição para heterossexuais.

FOLHA - A que a sra. atribui o comportamento gay?
JUSTINO
- À expectativa dos pais, que querem que o filho nasça menino ou menina. Projetam na criança todos os anseios. E daí começam a conduzir a sua criação como se você fosse uma menina. Outra causa mais grave é o abuso sexual na infância e na adolescência. Normalmente o autor do abuso o comete com carinho. Então a criança pode experimentar prazer e acabar se fixando.

FOLHA - Mas nem todos os homossexuais foram abusados na infância.
JUSTINO
- A maioria foi.

FOLHA - Como é o seu tratamento?
JUSTINO
- É um tratamento normal, psicoterápico. Todas as linhas psicológicas consagradas e vários teóricos declaram que a homossexualidade é um transtorno. A psicanálise a considera como uma perversão a ser tratada. À medida em que a pessoa vai se submetendo às técnicas psicoterápicas, vai compreendendo porque ficou presa àquele tipo de comportamento e vai conseguindo sair. Não há nada de tão misterioso e original na minha prática. Sou uma profissional comum.

Mais um texto da Folha.

Como paciente, repórter paga R$ 100 a sessão

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Numa sala onde mal cabem dois sofás cobertos com capas meio encardidas e uma cadeira de palha, a psicóloga Rozângela Alves Justino promete "curar" gays em terapia que pode durar de dois a cinco anos.
A mulher de fala mansa e fleumática diz já ter "revertido" uns 200 pacientes da homossexualidade -que vê como doença- em 21 anos de profissão.
Sem se identificar como jornalista, a reportagem se passou por paciente e pagou por uma consulta - R$ 200, regateados sem resistência para R$ 100.
Para uma primeira sessão, ela mais fala do que ouve. Tampouco anota dados ou declarações do consulente. Explica que faz "militância política para defender o direito daquelas pessoas que querem voluntariamente deixar a homossexualidade". "É um transtorno porque traz sofrimento", diz a psicóloga, formada nos anos 1980 no Centro Universitário Celso Lisboa, no Rio.
Rozângela diz adotar a "linha existencialista" e que 50% de chance do sucesso da "cura" vem da vontade do homossexual de sair "dessa vida" e outros 50% decorrem do trabalho psicoterápico.
"É preciso entender o que está por trás da homossexualidade. E a mudança vai acontecendo naturalmente. Vamos tentar entender o que aconteceu para que você tenha desenvolvido a homossexualidade. Na medida em que você for entendendo a sua história, vai ficar mais fácil sair", diz.
Rozângela mostra plena convicção no que defende.
"Com certeza há possibilidade de saída. Nesses 20 anos já vi várias pessoas que deixaram a homossexualidade. Existe um grupo que deixou o comportamento homossexual. Existem pessoas que, além do comportamento, deixaram a atração homossexual. E outras até desenvolveram a heterossexualidade e têm filhos."
No final da consulta, a recomendação: "A igreja pode ser um espaço terapêutico também" -embora não faça pregação.
(VQG)

Terceiro texto da Folha de São Paulo sobre o mesmo assunto. Este provavelmente a Folha diga que é “reportagem investigativa”, demonstrando como age a psicóloga que será levada a julgamento por propor terapia a homossexuais.

Se o registro desta profissional for cassado, imagino que o movimento gay sugira uma lei no Congresso proibindo todos os padres e pastores do Brasil de fazer aconselhamento a pessoas transtornadas com sua homossexualidade.


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quarta-feira, julho 15, 2009

Câmpus, Campus

Câmpus, Campus


Leio no Jonral da Universidade (Ano XII, número 118, junho/2009), um informativo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS, que o jornal, “com o propósito de regularizar o uso com paradigmas da língua portuguesa” adotou a palavra “câmpus”, plural “câmpus” (que me faz lembrar de “ônibus”, plural “ônibus”, e que possivelmente em algum momento do passado foi “omnibus”). Dentro desse paradigma, a palavra câmpus se torna uma palavra da língua portuguesa que é uma paroxítona terminada, em “us”, o que justifica o acento circunflexo. Não mais será utilizada a palavra latina “campus”, plural “campi”, sem acento.

Quantas pessoas você vê por aí informando que “a UFRGS tem quatro campi!” ?

Ah, a língua portuguesa! Ah, as dinâmicas das línguas!


06/07/2009




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A Folha de São Paulo entrevista Simon Schama

Governo Obama é principal tema de conversa com o autor de "O Futuro da América"

"Hegemonia americana só durou cinco minutos"

A HEGEMONIA global dos Estados Unidos durou "cinco minutos", e jamais houve o tal "século americano" preconizado pelo editor Henry Luce (1898-1967). Apenas "um idiota" não acredita que países emergentes, como Brasil, Rússia e China, terão um papel cada vez mais central no futuro.
Essa é uma amostra das frases de efeito que Simon Schama, 64, historiador britânico e professor da Universidade Columbia, nos EUA, onde está radicado há 30 anos, alinhavou em sabatina promovida pela Folha, anteontem.
A sabatina foi conduzida pela editora da Ilustrada, Sylvia Colombo, pelo editor de Mundo, Rodrigo Rötzsch, e pelos repórteres da Folha Claudia Antunes e Rafael Cariello.

DA REPORTAGEM LOCAL

Schama faz roteiros de séries históricas para a TV e escreve seus livros para alcançar o público além da academia. Em duas horas de sabatina, ele confirmou a fama de "showman", com tiradas que fizeram a plateia rir, mesmo ao abordar temas sérios. Num momento, chegou a furar com uma caneta dourada o copinho d'água que não conseguia abrir. Quebrou dois fones que usou para a tradução simultânea e fez piada disso ("Quantos mais vocês têm?"). O autor de "O Futuro da América" (Companhia das Letras) -que é na verdade sobre a formação do país e as vertentes que desembocaram na eleição de Barack Obama, de quem é fã- conta que buscou inspiração em Norman Mailer (de "A Luta"), Lester Bangs (famoso pelas reportagens insultuosas na "Rolling Stone") e Tom Wolfe, um dos criadores do "novo jornalismo", estilo que busca dosar reportagem e literatura. Leia os principais trechos:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif


HEGEMONIA DOS EUA
"Eu teria de ser um idiota para não acreditar [na ascensão dos países que formam o Bric, Brasil, Rússia, Índia e China]. Os EUA foram hegemônicos por cinco minutos. Do colapso da União Soviética até os sérios problemas estruturais na economia americana. O período definido por Henry Luce como o século americano foi contestado pela União Soviética, então na verdade nunca houve um século americano. É claro que os EUA terão uma diminuição de seu papel, com o crescimento de longo prazo de Brasil, Rússia e Índia. Com a China, formam uma dupla estranha, mas destinada a marchar junta para o futuro. Não consigo pensar em nenhum outro cenário, não importam a velocidade nem quantos obstáculos no caminho. Os americanos agora não são ingênuos, não têm mais aquilo de bater no peito e dizer "somos e sempre vamos ser o número 1". O excepcionalismo e a singularidade americanos terão de ser definidos por outra coisa que não puro poderio militar ou músculo econômico."

SEM REPETIÇÃO
"A história, na verdade, nunca se repete. Estamos numa crise tão ruim quanto a da década de 30, mas é outra crise. Não podemos simplesmente importar uma solução de 1933 e dizer "tem de funcionar agora". Odeio a comparação entre as guerras do Afeganistão e do Vietnã. Se o Afeganistão for um desastre, será um desastre por si só, não um novo Vietnã."

O HISTORIADOR
"O historiador no passado era alguém que gritava na ágora, da tribuna. Existiu uma mudança, de história oral, para os monges escrevendo em monastérios, e outra quando a imprensa surgiu. Devemos ser muito abertos e livres para o modo como comunicamos. A história não tem a ver com idealizar nossos ancestrais, mas com encontrar nossos antecessores, para caminhar juntos para o futuro. A história popular seria trivial e, possivelmente, mentirosa, sem a acadêmica. A acadêmica, sem ser veiculada, seria estreita e sem vida."

O GOVERNO OBAMA
"Obama ainda não decidiu se quer ser um confrontacionista, para fazer reengenharia social, ou se quer apenas consertar o carro batido que é o sistema bancário americano. (...) Obama não quer administrar os bancos, mas ele vê um papel para o governo como uma espécie de árbitro social, ele não tem medo de um papel mais forte na vida americana."

A VIDA DE OBAMA
"O fato crucial sobre Obama é o Havaí. Não dá para entender Obama sem entender o Havaí. É o Estado mais liberal, intervencionista e pró-social dos EUA. É um Estado de comunidades asiáticas, com uma forte tradição paternalista, e esse é o Estado onde ele cresceu. Obama representa a África (o pai era queniano), a Ásia (viveu anos na Indonésia) e o coração dos EUA (familiares no Kansas). Em sua criação e em seus interesses culturais, Obama pertence a todos vocês, como pertence a todos nós. Ele parece ser um tipo completamente diferente de americano. Mas, adivinhe: esse tipo sempre esteve lá. Os anos Reagan e Bush nos fizeram esquecer que esse tipo de americano era uma possibilidade."

KATRINA, IRAQUE
"O momento em que o governo Bush perdeu a legitimidade não foi o Iraque, foi o [furacão] Katrina. A imagem do presidente voando sobre Nova Orleans, enquanto víamos corpos boiando na água, foi revoltante para americanos da esquerda e da direita, negros e brancos. Foi aquele momento que matou a ideia de Ronald Reagan de que o governo não é a solução, é o problema. Ninguém nos EUA, nem eu, acredita que o governo tem todas as respostas. Mas há um espaço maior em épocas de grande miséria social."

O FIM DOS AIATOLÁS
"Esse regime [no Irã] tem um cheiro de morte ao seu redor? Sim. Aposto com vocês que não existirá em sete anos. Cinco é muito cedo, e dez é demais."

OBAMA E LULA
"Os dois são muito confortáveis com o que são. Mas Obama é alguém que se vê como um político professoral. Lula não se vê assim. Acho que [Bill] Clinton e Lula são mais parecidos. Eles são exatamente o que parecem. Não existe uma mão que Clinton não vá apertar. Obama não é assim, ele não é um populista instintivo."

Publicado na Folha de São Paulo, de 8 de julho de 2009.

Vídeo com a entrevista em http://www.folha.com.br/091881


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terça-feira, julho 14, 2009

14 de Julho - Dia da Queda da Bastilha

Dia 14 de Julho é feriado nacional francês. Dia em que parte do povo de Paris invadiu a fortaleza da Bastilha, onde eram presos os "inimigos do rei", em 1789, e libertaram quem estava detido lá.
Seria o início daquilo que os próprios franceses chamaram de Revolução Francesa, que ao cabo de alguns anos levaria e o rei e a rainha à guilhotina, e a popularização de direitos constitucionais para todos os cidadãos.

O que está acima é o que publiquei em 14 de julho de 2006.

Hoje a França está comemorando 220 anos do evento.

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Orgulho do Rio

Orgulho do Rio

GARANTEM AS folhas que é uma onda fria, vinda do Sul, de onde chegam todas as ondas frias, até aí, não há novidade.
Nunca se ouviu dizer que o frio veio do Ceará ou do Piauí. A novidade é que está fazendo um friozinho gostoso aqui no Rio e eu olho e curto a minha cidade de outro jeito. Nada de praia, com muita luz e confusão, sem o chope azedo que fede duas esquinas antes de cada tasca. Sobra um Rio quase civilizado, quase manso como um corno, sem a agressividade da luz e do calor, a urgência de aproveitar a vida.
Tão bom que faço o impossível: em pleno domingo, tiro o carro da garagem (fazia isso no tempo das minhas setters Mila e Titi) e saio sem destino, dando voltas pelas ruas que cruzo diariamente sem sabor e sem afeto. Sim, aí está a minha cidade, aqui nasci e vivo, se possível aqui morrerei e meu pó será diluído neste ar e neste chão.
Passo sem querer (ou talvez por querer demais) na rua onde nasci, tantos anos passados. Relembro que durante alguns anos trabalhava duas esquinas adiante. Vivi meio século para atravessar duas esquinas na vida -na verdade, sou um fracasso. Tive e tenho amigos que vieram de longe, de Sobral, de Manaus, de Kiev, de Viena -e eu aqui, chumbado neste chão tamoio que, segundo alguns saudosistas, já era.
Volta e meia entra em discussão a decadência do Rio, o esvaziamento cultural e artístico da cidade que foi capital do Brasil durante quase dois séculos. Brasília dá conta do recado, todo dia chega um escândalo de lá. São Paulo não é mais terra da garoa, é terra de enchentes. A Bahia -bem, e aí entra a moleza- a Bahia é a terra dos santos e orixás, mágica e mítica. Segundo Vinicius de Moraes, ali os baianos fazem a arte e o engenho de viver a verdade -conheço esses babados, Vinicius de Moraes acreditou neles pelo espaço de dois verões, mas veio morrer na sua terra, no Rio, que ninguém é de ferro, nem mesmo os baianos adotivos.
Tantas vezes li que o Rio estava falido em todos os setores, sobretudo no campo das letras e artes, que já assumira a postura e o orgulho do provinciano que fica à espera das novidades vindas dos grandes e inesperados centros.
Em compensação, por prazer ou por trabalho, é que viajo com frequência. O fato de ter nascido no Rio já torna o carioca mais ou menos aberto ao mundo, não por necessidade, mas por curiosidade. Sinto-me melhor em Roma ou Florença do que no calorão da avenida Chile, como melhor no Trastevere do que no Mercado Modelo da Bahia. Podem me xingar, mas sei o que sou fazendo e sentindo.
Voltemos ao Rio. Tão cantada e decantada a sua decadência, eis que reencontro, num fim de semana plúmbeo (sei que os baianos conhecem e apreciam esta palavra, aqui no Rio seria apedrejado se a proferisse) a doce verdade: o Rio procura renovar seus encantos -que já são muitos, mas não bastantes.
A revitalização da zona portuária e da Lapa provoca grandes expectativas. A contratação do Fred para o Fluminense e do Adriano para o Flamengo foi comparada à conquista das Gálias -ouvi isso numa das mesas de esporte que enchem os domingos em todos os sentidos. A Rede Globo continua exportando o sotaque e as mazelas do Sudeste para o resto do país e até para Portugal e países lusófonos -um descalabro que não conta com a minha benção, mas ainda não chegamos ao descalabro pior de importar o sotaque e as mazelas de Petrolina, Própria, Campina Grande ou Marília.
Para acontecer mesmo, para se tornar nacional, um fato ainda precisa repercutir aqui no Rio. O finado prefeito Marcos Tamoio dizia que o charme da cidade não vinha do Corcovado nem do Pão de Açúcar, vinha do próprio nome: Rio. Três letras apenas, que a gente lê nos aeroportos do mundo: Rio.
Fellini se apaixonou por Roma quando, menino, em sua cidade natal, Rimini, viu num vagão de trem a placa com o nome: Roma. Em tempos de orgulho gay, toda vez que vejo o nome da minha cidade, mesmo num ônibus que chega de não sei de onde, coberto de pó e fadiga, sinto um orgulho besta e sempre renovado de aqui ter nascido, o rio de minha vida e de minha saudade.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 3 de julho de 2009.

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Michael Jackson e o fim de uma era

Michael Jackson e o fim de uma era

MARCIA TOSTA DIAS

AS EXÉQUIAS feitas na forma de um show visto por milhões de pessoas no mundo todo dão ao grande espetáculo seu último suspiro. Além de fazer pensar sobre os rumos da música e da cultura na atualidade, a morte de Michael Jackson oferece preciosa oportunidade de reflexão sobre o mundo da música gravada, que está em profunda transformação.
A trajetória do artista, que ostentou os maiores índices conhecidos de vendas de discos, estabeleceu fina sintonia com a forma clássica de atuação das grandes gravadoras. Tanto o auge como o descenso de sua carreira coincidem, em larga medida, com o apogeu e o declínio de um específico modelo de negócios da música. Da perspectiva do "business", desde cedo, Michael Jackson surgiu como um artista completo -a matéria-prima fundamental: intérprete ímpar, exímio dançarino e compositor, com presença de palco, carisma, dedicação e diálogo com diferentes tradições culturais americanas, dos padrões hollywoodianos à essência da cultura negra local.
Se com o Jackson Five, seu grupo de origem, traduzia o espírito da gravadora Motown, à qual se integrou em 1968, foi na CBS que sua carreira solo se expandiu, via selo Epic -por mais que tenha feito discos solo de grande sucesso também na Motown. Vale lembrar que data do final dos anos 60 a intensificação dos processos de fusão de grandes empresas da área do entretenimento, fazendo surgir as "majors" da música (EMI-Odeon, PolyGram-Universal, RCA-BMG, CBS-Sony e Warner), que concentrariam a atividade dessa área de negócios não somente nessa época mas por todo o século 20.
Fez parte desse processo a incorporação, pelas grandes, de pequenos selos ou de nomes por eles revelados. A transferência dos Jacksons para a CBS se deu em 1975, e o primeiro álbum solo de Michael nessa companhia veio em 1979, "Off the Wall", já como resultado de parceria com o produtor musical Quincy Jones. Na atividade do produtor musical encontramos outra marca dos discos feitos pelas grandes gravadoras. O conhecimento específico das várias áreas envolvidas o posicionava estrategicamente na fronteira entre arte e economia, entre música e "business". Quincy Jones traduzia de maneira exemplar tais atributos.
Por suas mãos, Jackson teve acesso aos mais requintados recursos técnicos e musicais disponíveis, bem como ao exercício de uma criação artística que se expandia para além dos padrões estéticos da indústria cultural. É o caso dos videoclipes, que, depois dele, transcenderam o perfil original de produto promocional do disco/artista. Nessa vereda é que são realizados os álbuns "Thriller" (1982) e "Bad" (1987), as maiores cifras de vendas já alcançadas na história.
No estatuto de ídolo, de referência musical da cultura pop, Jackson conseguiu ainda o feito de conjugar duas estratégias distintas das "majors": um "cast" de artistas que vendem discos em quantidade regular, mas por muito tempo (a mais lucrativa -os "artistas de catálogo"), e outro com discos que vendem muito, mas por pouco tempo ("os artistas de sucesso").
Ao ter permanecido por dois anos (1983 e 1984) liderando a lista de discos mais vendidos, "Thriller" sintetiza essa conjunção, e Jackson passou a simbolizar o modelo ideal de artista a receber a atenção de grandes gravadoras, mesmo que fosse em menores proporções. O disco subsequente, "Dangerous" (1991), além de não ter repetido o sucesso dos anteriores, não contou com o trabalho de Quincy Jones. Jackson passou a se dedicar de maneira desigual à sua carreira profissional, perdendo progressivamente o vigor.
No início dos anos 90, a indústria fonográfica se dedicava à inserção do CD no mercado e à transposição de parte de seu catálogo para o novo suporte. Essa estratégia trouxe o último grande impulso de acumulação, na medida em que tais reedições foram feitas com custo de produção musical amortizado, gerando para venda um produto mais caro que o disco de vinil. O mercado mundial passou de US$ 12 bilhões de faturamento em 1985 para US$ 40 bilhões em 1995.
Mas a alegria durou pouco. A fluidez da tecnologia digital fez com que a difusão dos produtos escapasse ao controle das gravadoras. Os procedimentos considerados ilegais -primeiro de vendas e, mais tarde, de compartilhamento de músicas no formato digital- inverteram radicalmente a curva do lucro num espaço de tempo muito curto. Em 2000, as cifras mundiais de faturamento estavam em torno de US$ 37 bilhões. Em 2005, em US$ 33 bilhões.
Também sustentaram a queda a incapacidade de inovar artisticamente e de assimilar as transformações técnicas, em vez de lhes declarar guerra, bem como o descaso com o público, que, ao lado do artista, deveria compor a essência do sistema. Para retomar o ritmo do negócio, nem mesmo um novo Michael Jackson bastaria. O aumento nas vendas de seus discos após sua morte não altera o panorama. Antes, revela mais uma marca do "business". Desse grande cenário, permanecem as heranças artísticas, os desafios postos pelos direitos autorais, a música e os artistas, pois estes não morrem jamais.

MARCIA TOSTA DIAS, 46, socióloga, doutora em ciência política pela USP, é professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e autora de "Os Donos da Voz".

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 8 de julho de 2009.

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Chico Bacon e o vazio existencial

Bênção Divina

BÊNÇÃO DIVINA

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Padre da Igreja Ortodoxa Russa abençoa a Soyuz; espaçonave decola hoje de base no Cazaquistão para levar trio de astronautas à estação espacial internacional.

Publicado na Folha de São Paulo, de 27 de maio de 2009. Foto de Shamil Zhumatov, para a Reuters

É impressionante e curioso, um titã da tecnologia (tecnologia talvez meio obsoleta mas ainda muito funcional) recebe a bênção de um padre.


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segunda-feira, julho 13, 2009

Chovendo na Roseira

Chovendo na Roseira



Composição: Tom Jobim



Olha está chovendo na roseira
Que só dá rosa mas não cheira
A frescura das gotas úmidas
Que é de Luisa
Que é de Paulinho
Que é de João
Que é de ninguém

Pétalas de rosa carregadas pelo vento
Um amor tão puro carregou meu pensamento

Olha um tico-tico mora ao lado
E passeando no molhado
Adivinhou a primavera

Olha que chuva boa prazenteira
Que vem molhar minha roseira
Chuva boa criadeira
Que molha a terra
Que enche o rio
Que limpa o céu
Que trás o azul

Olha o jasmineiro está florido
E o riachinho de água esperta
Se lança em vasto rio de águas calmas

Ah, você é de ninguém
Ah, você é de ninguém


Origem: Letras.

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Morrer

“Aos homens é dado morrer uma única e escassa vez. Aos atores é dada a oportunidade de morrerem inúmeras vezes, cada vez que seu personagem morre.”

Isso ou algo parecido, é dito por uma das diversas versões Carolina, personagem de Marieta Severo, no filme “A Dona da História” (Brasil, 2004).

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A Dona da História

A Dona da História

Neste final de semana (11/07/2009), tive a oportunidade de assistir o filme “A Dona da História”, produção brasileira de 2004, na televisão. Eu raramente paro em frente à TV para assistir algum filme, preferindo ou ir ao cinema, ou alugá-lo, mas resolvi abrir uma conveniente exceção, pois lembrava de querer ver o filme desde o seu lançamento nos cinemas, acredito que em 2004, época de sua produção. Acho que na época do lançamento no cinema, me atraíram as presenças das atrizes Débora Falabella e Marieta Severo, e a recriação de cenas do movimento estudantil no Rio de Janeiro, em 1968.

Verdade é que o filme passou no cinema, foi lançado em vídeo, e em ambas as situações não o assisti.

Nesta noite de sábado, passou na TV, e diante da TV fiquei.

O filme conta a história de Carolina. Mostra sua juventude, segundo a recriação de época, em 1968, e sua vida puco mais de 30 anos depois, vendendo o razoavelmente amplo apartamento em que havia criado os filhos. Um dos comentários que vi sobre o filme seria um certo anacronismo, pois as idas e voltas no tempo seriam neste intervalo de 30 anos. De 1968, iríamos para 1998. Ou de 2004, iríamos para 1974. Mas... são liberdades narrativas de uma obra de ficção!... O tempo presente do filme tem a facilidade da filmagem sem necessidade de recriação de época em 2004. E possivelmente, como disse este mesmo comentário, 1968 fosse um tempo narrativo mais interessante do que 1974 para a obra.

Voltando à história, após 30, ou 30 e poucos, anos de casamento Carolina e Luís resolvem vender o apartamento em que viveram toda sua vida de casados, e realizar a tão sonhada e a tanto tempo adiada viagem internacional. Talvez Cuba, talvez Paris.

Verdade é que esse “ninho vazio” dispara uma crise em Carolina. Após 30 anos vivendo com aquele que havia sido o amor de sua juventude, com o qual havia casado e tido filhos, ela decide que precisa viver novas experiências. Acha que não mais ama seu marido, e quer separação.

E durante esta crise, a Carolina de 50 anos encontra a Carolina de 18. E o espectador encontra a moça numa passeata, onde ela encontra Luís, que se tornaria seu grande amor, marido e pai de seus filhos.

Como a Carolina de 50 anos está em crise com sua vida, cabe à Carolina de 18 tomar decisões diferentes das que havia tomado e que haviam resultado naquela vida de 2004. E, obviamente cada decisão tomada por Carolina aos 18 muda a vida de Carolina aos 50.

E acho que mais do que isso não dá para contar, sem estragar o prazer de quem ainda não viu o filme.

Mas é um filme leve, curto (90 minutos aproximadamente) que me deu prazer de assistir, e me fez refletir um pouco sobre a vida. E é bom ver gente falando português brasileiro na tela, sem ser na novela (embora o filme lembre um pouco novela, seja pelos atores e diretor funcionários da TV Globo, seja pela produção ser da própria Globo Filmes).

E há ainda uma bela trilha sonora, com destaque para “Chovendo na Roseira”, bela canção de Tom Jobim. A letra não chega a ser um fenômeno de criatividade, mas junto com a música gera um prazer estético sublime. E no filme é interpretada pela Sandy (ela mesma, a irmã do Júnior, filha do Xororó).

Marieta Severo, Débora Falabella, música de Tom Jobim, Rio de Janeiro (“O Rio de Janeiro [ainda] continua lindo”). O que mais se pode querer de um filme?


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domingo, julho 12, 2009

Joyce, Dostoiévski e uma ex-namorada

Joyce, Dostoiévski e uma ex-namorada

Tony Monti
De São Paulo

Grupos sociais costumam ter histórias que ajudam a sustentar e a definir seus valores. Deste modo, além de outras possíveis relações, as narrativas compartilhadas moldam a identidade e os laços que unem os elementos do conjunto. Escolas são assim. Há histórias lendárias sobre alunos, professores e funcionários. Da Faculdade de Letras, onde estudei, gosto bastante de uma anedota que às vezes se conta.

O professor Alfredo Bosi dava aula para o primeiro ano. Na audiência, meninos e meninas, a maioria com não mais que vinte anos. O professor olha para a sala com a voz mais baixa que o normal, anunciando algo especial e chamando a atenção da classe. "Quem aqui já leu Dostoiévski?" Quase todos levantam a mão, parte deles mentindo por causa da vergonha de não ter lido um autor clássico. Em seguida o professor pede que a cena se inverta, que abaixem as mãos estes, e que os demais levantem as mãos. Uma parte mínima da sala insiste em dizer que ainda não tinha lido nada deste autor. Três ou quatro. O professor então olha nos olhos de um e de outro e diz "invejo vocês por terem a chance de o ler pela primeira vez".

É claro que, depois disso, o valor de Dostoiévski cresceu ainda mais entre os alunos. A história desta aula do primeiro ano entra na rede de significados ligados ao autor, para quem a ouviu. Para mim, Dostoiévski chegou de outro modo. Eu namorava uma menina que tinha em sua estante, ao lado da cama, meia dúzia de títulos do autor. Ela o adorava. Fora isso, o nome sempre aparecia em uma conversa ou uma leitura, em qualquer lugar. Antes de começar a ler Crime e Castigo, o livro tinha já histórias em torno dele, textos que conformavam minhas expectativas e minhas disposições. Abri o livro com respeito e calma para superar as primeiras páginas, se ali não houvesse recompensas, pois segundo o que os demais textos me anunciavam, recompensa haveria em algum momento.

Relaciona-se a esta intertextualidade o meu hábito de não ler resenhas de cinema antes de ver os filmes. Gosto de no cinema estar mais sujeito à surpresa, já que em literatura, por causa do trabalho, não é fácil me esconder da informação. Lembro de quando fui assistir DogVille e, em meia hora de filme, notei que conhecia a atriz principal. Meia hora depois percebi que era a Nicole Kidman, reconhecimento que me trouxe uma satisfação momentânea. Se tivesse lido uma resenha sobre o filme, perderia este pequeno prazer íntimo. Ainda assim, foi preciso que eu tivesse alguma informação sobre o filme para que eu pagasse o ingresso. Neste caso, eu sabia quem era o diretor. Em outros casos, pode ter sido qualquer coisa: um ator, a recomendação de um amigo, um cartaz, um título curioso. Enfim, um texto.

Um texto não é um objeto isolado. Não é um objeto, é uma prática ligada a outras diversas práticas. Borges falou algo interessante sobre isso (algo que outros também devem ter falado, mas foi ele quem me alertou). Um texto se relaciona sempre com os textos seguintes, prepara a leitura. Mais do que isso, e está aí um ponto curioso, um texto que eu leia hoje pode alterar os significados de textos do passado. A relação é íntima, dinâmica e intensa assim.

Às vezes, inclusive, as histórias dos livros podem ser razoavelmente desconhecidas apesar de gerarem muito texto em torno delas. O Ulisses, do Joyce, por exemplo, é um livro que ninguém lê e que todo mundo comenta. Outro professor da USP, o José Pasta, disse em aula que, quando comprou o livro, anotou a lápis a data do dia da compra e a data de vinte anos depois, que vinte anos era o tempo que se dava para lê-lo. Como pode um livro que ninguém lê estar em quase todas as listas dos melhores romances da história? Como pode ser tão comentado? Acho que parte da resposta está em que o texto não se encerra entre as capas do livro, estende-se em toda sua infinita rede de relações com outros textos, sejam eles críticos, literários, anedóticos como os dos professores ou o modo como minha ex-namorada me falava sobre Dostoiévski.

Texto do Terra Magazine.

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quarta-feira, julho 08, 2009

Milagre, conforme Miguel Nicolelis

"Em um cérebro com bilhões de neurônios, registrar cem e descobrir algo é como olhar para o Universo, apontar para a estrela certa e achar um planeta com vida (...) Se a palavra "milagre" não tivesse sido apropriada e patenteada por outra indústria, nós teríamos de usá-la todos os dias"

Na Folha de São Paulo, de 10 de junho de 2009.

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Opiniões: Miguel Nicolelis

SABATINA FOLHA
MIGUEL NICOLELIS


União com máquinas vai libertar o cérebro do corpo

Neurocientista brasileiro radicado nos EUA vê sistema nervoso como uma "democracia"

O DESENVOLVIMENTO da neurociência deverá libertar o cérebro do corpo e permitir, por exemplo, que seres humanos explorem o espaço usando máquinas capazes de transmitir movimentos e sensações. A previsão foi feita pelo do neurocientista paulistano Miguel Nicolelis, 48, em sabatina promovida pela Folha anteontem. "Em muito menos de 30 anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância". Diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke (EUA) e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra, Nicolelis disse também que está "à beira de demonstrar que é balela" a ideia de que o córtex cerebral se divide em áreas.

DA REPORTAGEM LOCAL

O pesquisador é pioneiro no estudo de interações entre cérebro e máquina, e já realizou proezas tecnológicas como fazer um robô no Japão andar impulsionado por ondas cerebrais de uma macaca nos EUA.
O objetivo do trabalho é desenvolver próteses neurais que permita a pessoas paralisadas andarem novamente.
Nicolelis foi entrevistado pelos jornalistas Gilberto Dimenstein, membro do Conselho Editorial da Folha e Hélio Schwartzman, articulista do jornal, e pela neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da UFRJ. A mediação foi de Claudio Angelo, editor de Ciência.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif


IMAGEM DO BRASIL
Em 1991, cheguei um dia para dar uma palestra na Califórnia e falei que era da Universidade de São Paulo. Quando terminei de falar, um americano olhou para mim e disse: "Isso é perto de Santa Monica?"
O que vejo [agora] é o Brasil com algumas coisas no centro da agenda científica mundial. O Brasil, nas projeções que vi, vai se transformar no grande celeiro do mundo, tem a biodiversidade, a possibilidade de ser o primeiro país a se livrar do petróleo, a energia alternativa.

MILIONÁRIOS
Nos Estados Unidos, as pessoas que têm muito dinheiro pensam que é a chance de comprar a imortalidade.
A [Universidade] Duke teve várias doações de pessoas que queriam associar o nome delas a uma descoberta. E evidentemente que o governo americano foi muito esperto de criar uma legislação fiscal que ajuda.
Aqui no Brasil a relação com dinheiro é outra. As pessoas ainda têm a ilusão de que levam com elas o dinheiro. A elite americana valoriza mais uma educação de alto nível.

BUROCRACIA
É muito mais fácil eu doar dinheiro para a Duke do que para a USP. Se eu quiser hoje pôr o nome da minha avó no anfiteatro da Faculdade de Medicina, provavelmente morro antes de conseguir - e o nome dela nem é tão longo. Quando cheguei aqui no Brasil para criar nosso projeto [o Instituto Internacional de Neurociência de Natal], eu contei: foram 65 assinaturas para provar que eu existia.
Quando era aluno da USP, era impossível importar um anticorpo, um insumo. Melhorou muito, mas ainda não é o que um cientista num laboratório de ponta desejaria ter.

OURO DO PENTÁGONO
[Ao ser questionado sobre receber dinheiro do Departamento de Defesa americano.] O que eles me pediram foi para criarmos uma forma de, em 30 anos, fazer os veteranos de guerra paralisados voltarem a andar. E estamos chegando lá.
O Sidney Simon, que é meu grande amigo americano, falou: "Dinheiro é dinheiro". Não me meto. Dou uma palestra, mostro o que sei fazer, aí entram dez advogados e eles sentam com quem quer doar.

DEUS
Deus, na minha opinião de palmeirense -você acredita se quiser-, é uma necessidade que todos nós temos de explicar de onde viemos. Aparentemente existe uma necessidade do nosso cérebro de contar uma história. Acho que o cérebro é um grande simulador, ele simula a realidade completa, toda a história da nossa vida. E essa história tem que ter um começo, ela tem que ter uma explicação lógica de onde nós viemos. Nesse domínio vem a noção de Deus, a religião.

O CÉREBRO UNIFICADO
Nós vamos publicar daqui a poucas semanas registros do córtex visual em que 12% das células respondem à informação tátil e vice-versa.
Faz cem anos que essa ideia [de que o cérebro se divide em "casinhas", cada uma com uma função] se cristalizou. Nós estamos à beira de demonstrar que isso é balela. A função, no cérebro, não é determinada geograficamente. Ela é determinada de acordo com as demandas da tarefa que se impõe ao cérebro.
Então, se uma pessoa perde a visão e ela tem que navegar pelo mundo sem o sistema visual, ela remapeia o atributo táctil por todo o córtex, inclusive o visual. Nós estamos abandonando essa ideia de que o cérebro é um grande mosaico e partindo para noção de que o cérebro é uma grande democracia.

PARKINSON
[Sobre o tratamento contra Parkinson com estimulação elétrica desenvolvido por sua equipe na Duke.] Quando começamos a olhar para animais [camundongos] que desenvolviam um Parkinson muito violento e muito rápido, tudo levava a crer que a atividade do cérebro parecia uma crise epiléptica. Então falamos "isso é uma crise epiléptica, vamos tratá-la como se fosse uma". As vantagens de estimular atrás da medula espinhal são várias: é mais seguro, muito mais fácil, muito mais barato. Mas a grande vantagem, do ponto de vista teórico, é que muda a forma de olhar para o cérebro. Ao invés de tentar tratar um lugarzinho, que era o que a teoria anterior achava, você está tratando o circuito inteiro. Do ponto de vista filosófico, isso é uma mudança radical. Já temos os modelos para primatas prontos e nós vamos fazer boa parte desses estudos lá em Natal. Espero que, se os resultados em macacos forem tão bons quanto eles foram nos roedores, no ano que vem a gente começa a fazer esses estudos em humanos.

CORPO MECÂNICO
O pensamento nada mais é do que uma onda elétrica pequenininha, se espalhando pelo cérebro, numa escala de tempo de milissegundos. O que fizemos [com primatas] foi descobrir que é possível ler esses sinais e extrair deles comandos motores capazes de reproduzir num braço mecânico ou numa perna robótica a intenção motora daquele cérebro.

TELECINESIA
E nós fechamos o circuito: o macaco usou sinais do córtex motor para controlar a prótese e a prótese [usando sensores, quando o pé atinge o chão] mandou informação de volta sem usar o corpo para nada. O cérebro se libertou do corpo de vez. Isso quer dizer que, a longo prazo, nosso alcance como humanos vai mudar completamente. Você vai ter a chance de atuar voluntariamente em um ambiente a milhares de quilômetros da sua presença física.
No futuro, em muito menos de 30 anos, você vai conseguir ter a sua presença à distância. A Agência Espacial Europeia analisou nossos trabalhos e concluiu que não tem sentido mandar humanos para Marte. Nós vamos de qualquer jeito, manda algo que nos represente pelos nossos pensamentos.

UNIVERSIDADES
Se estivesse na situação de um jovem hoje, pensaria muito antes de ir para a universidade. Ela precisa mudar demais, se reestruturar tremendamente.
As divisões são do século 19, elas têm muito pouco a ver com a realidade. Precisamos criar mecanismos para acelerar e desburocratizar o processo de formação de cientistas. No mundo inteiro.

LULA E PT
Eu não me rotularia um petista, me rotularia um humanista [ao ser perguntado se seu petismo arrefeceu]. E eu e mais 80% da sociedade brasileira acreditamos que o atual governo teve avanços fundamentais.

CIÊNCIA "DO MAL"
A ciência transformou-se em uma coisa misteriosa. Sempre que fazia uma palestra, a primeira pergunta era: "E se isso for usado para o mal?". Vejo na imprensa no mundo inteiro esse afã de "e se fizer um gene desses errado, vai surgir um Frankenstein que vai destruir a raça humana". Pode? Pode.
Mas tudo pode. O Palmeiras pode ganhar o título neste ano.
Mas as chances são remotas.


NA INTERNET
VEJA A SABATINA COM MIGUEL NICOLELIS NA FOLHA ON-LINE
www.folha.com.br/091601

Na Folha de São Paulo, de 10 de junho de 2009.

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