quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Outros dois centavos sobre Avatar

Outros dois centavos sobre Avatar


Muita gente já falou sobre o recente filme Avatar, do diretor James Cameron. Aqui vão as minhas impressões entre a repetição de idéias já espalhadas por blogues e saites da Internet.



Antes de mais nada vamos falar sobre a palavra Avatar, que segundo o dicionário eletrônico Michaelis está ligada à encarnação de divindades em homens ou animais no hinduísmo, mais das vezes, por parte do deus Vixenu. De fato não conheço nada da teologia hindu, assim penso em paralelos com a mitologia greco-romana, onde os deuses se transformavam para se manifestar aos mortais. Então é isso, avatar é uma máscara, uma maneira de se apresentar. Nos videogames são “avatares” que representam o jogador junto ao ambiente da realidade virtual do jogo. E é uma máscara o corpo pelo qual humanos entram em contato com o povo que habita Pandora, que afinal é o mote de nosso filme. E, é claro, há ainda um desenho animado chamado “Avatar, a lenda de Ang”, mais ou menos popular entre a garotada, que mistura reinos que se digladiam e um menino que pode vir a trazer a paz ao mundo, entre artes marciais e um mundo assemelhado à cultura do extremo oriente, em especial a chinesa.


No filme de Cameron, avatares são corpos produzidos sinteticamente com DNA de seres humanos e dos seres nativos deste planeta Pandora, chamados Na'vi. Os corpos sintéticos são controlados pela “projeção da mente” de seres humanos neles. Um sistema interessante. Os humanos “dormem”, e controlam o corpo de seus avatares como se sonhassem. O que nos remete em parte para o livro de Gênesis, onde Deus fez primeiro corpos sem vida, a partir do barro, e então “soprou neles o espírito da vida”. Remete também à trilogia Matrix, onde seres humanos tinham seus cérebros ligados ao mundo virtual da Matrix. Eu poderia falar do romance Neuromancer, mas infelizmente não o li.


Dito o que já foi dito até agora, sobre o que seria o filme? A atriz Sigourney Weaver, a Dra. Grace do filme, disse que o filme é uma história de amor. Uma colega minha, depois de ver o filme, disse a mesma coisa. O Hermenauta fala em “uma instância do tema “going native”. Going native? Se lembra de Lawrence da Arábia, ou de “Um Homem Chamado Cavalo”? É mais ou menos por aí...

Jake Sully, um ex-fuzileiro naval americano que ficou paraplégico, deve participar de um experimento científico, com os avatares referidos no início do texto. Ele vai substituir seu irmão gêmeo, que era um cientista envolvido no projeto, mas foi morto em um assalto. O ano é 2154. O planeta Pandora é um planeta com clima quente (pelo menos na região mostrada no filme), que tem uma flora exuberante (novamente, no filme vemos o que chamaríamos de uma floresta tropical na Terra dominando o ambiente), e é habitado por uma fauna que tem semelhanças com os animais terrestres. Curiosamente muitos exemplares desta fauna tem seis membros em lugar dos quatro que são normalmente encontrados entre os vertebrados terrestres. Imagine cavalos com seis patas, rinocerontes com seis patas, grandes felinos com seis patas, macacos com duas pernas e quatro braços. E há também um grupo de bípedes inteligentes, com pele azul e estatura imensa, o povo na'vi. E eu me pergunto porquê os na'vi não desenvolveram quatro membros superiores além das duas pernas como tantos membros da fauna de Pandora, inclusive aqueles equivalentes aos macacos terrestres. Bom além disso, o planeta Pandora tem uma flora “Rave XXXperience”, como diz o Gizmodo Brasil.


E há Eywa, a deusa-espírito que anima o planeta, e com o qual todos os seres vivos do planeta estão conectados. Eywa é a deusa e a alma do planeta. O que lembra a “Hipótese Gaia”, de James Lovelock.


Os humanos não estão em Pandora apenas para admirar suas belezas e realizar experimentos científicos puros. Eles estão lá também para explorar as riquezas minerais do planeta. No filme há um mineral que deve ser uma riquíssima fonte de energia, para uma humanidade que continua sedenta de energia.


Um veio imenso do tal mineral está sob uma árvore gigantesca que serve como moradia a uma das tribos na'vi. Jake Sully deve se infiltrar e convencer os nativos a abandonar a área para que o mineral possa ser extraído, sob o risco dos na'vi serem expulsos ou dizimados pelos humanos.


Só que o espião e agente secreto vai se envolvendo com os nativos, se encantando com o novo planeta, e acaba se voltando contra os humanos invasores.


E há várias associações no filme.


Os na'vi parecem muito com nativos americanos (índios), ou com africanos antes da expansão colonial européia sobre o Continente Negro. A destruição da casa-árvore me lembrou algo que uma vez eu ouvi sobre um certo caminho das lágrimas percorrido por índios da América do Norte.


Lá pelas tantas o coronel, chefe dos militares-mercenários do filme, fala em “terror preventivo”, ecoando a retórica do governo George W. Bush, que gerou as invasões dos Estados Unidos ao Afeganistão (2001) e Iraque (2003).


E a questão de energia continuaria sendo um motivo de guerras, afinal um dos militares de filme fala de ter servido na Nigéria, e outro na Venezuela. Não deve ser coincidência estes nomes. Ambos os países são grandes fornecedores de petróleo nos dias de hoje.


E há uma ironia com o sistema de saúde nos Estados Unidos. Afinal é possível concluir que a medicina da metade do século XXII é capaz de fazer um paralítico voltar a andar, mas o soldo de um ex-marine não pode pagar por tal milagre.


Dito isto, há as tecnicalidades. O filme 3D é ótimo! Há momentos deslumbrantes, e, obviamente, momentos em que parece que alguma coisa vai sair da tela e nos atingir. Eu vi o filme duas vezes, uma na versão legendada, e a outra dublada. Quando assisti à versão dublada, onde me foi possível me concentrar mais nas imagens, tive instantes de mal-estar e enjôo. 3D no cérebro!


E eu fiquei torcendo para que construam logo um cinema imax aqui em Porto Alegre.


E este filme é uma fantasia fascinante. Praticamente tudo ali é fantasioso, falso. O planeta, o povo na'vi, os animais, inclusive as máquinas voadoras dos humanos, mas nós aceitamos a realidade delas. A ilusão do cinema é elevada a um novo patamar com o filme Avatar.


E eu saí do cinema com essa sensação de encantamento. Uma sensação de bem-estar. Deve ser por isso que li uma crítica moralista contra o filme, que, em resumo, acusaria o filme de ser um anestesiante para a realidade social adversa que nos rodeia. Segundo esta crítica, os espectadores sairiam da sala de cinema tão felizes ou satisfeitos com a justiça prevalecente no filme, que não precisariam ou quereriam mudar esta realidade acre em que vivemos. Quase senti o autor igualando filme de Cameron (e talvez certo tipo de cinema) à religião citada como ópio por Marx. Neste caso, certamente um exagero.


E estes foram os meus dois centavos sobre Avatar.


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Questões...

No buteco - SIMCH
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Do blog da Grafar.

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Duque

Duque


ISABELA SEVERO


Não é por nada, mas eu já nasci sendo rejeitado. É o que eu acho, o que todos aqueles psiquiatras tentam entender. Dizem fiquei assim por causa do meu pai. Um dia eu o conheci... Talvez seja um problema ter um pai que faleceu dois dias depois de você nascer. Mas para mim não faz diferença.


Ser o caçula e sentir um instinto paternal pelos irmãos mais velhos era o que me mantinha responsabilizado. O tempo passa, cada um no seu caminho, na sua própria vida. E eu, o único que continua aqui, agora sem estas responsabilidades. O que significa, óbvio, que eu sou um inútil.


E o que resta? Me sento em um sofá feio e rasgado, confessando o quanto queria voltar a ser criança. Meus pensamentos inocentes e imortais, se transformam em sonhos justos de um futuro morto. Me pergunto todos os dias porque ainda estou aqui. Na minha cabeça, ser adulto é como ter no sangue um veneno colossal.


Tanta coisa acontecendo na minha vida, apesar dos dias solitários que ocupam a maior parte dela. Ninguém quer chegar perto de mim e isso me deprime. Quem sabe eu tenho cara de assassino? Era o meu apelido na faculdade.


Ainda bem que, finalmente, me livrei do pesadelo. Nem sei porque eu fiz, vai ver porque meu irmão me obrigou, ou para provar a mim mesmo que não sou completamente descartável. Vão em frente, psiquiatras, digam o que há de errado comigo.




SEVERO, Isabela. In: SEVERO, Ariane et al. Ditadura, Anistia e Greve Geral 30 anos depois. Porto Alegre: Martins Editora, 2009. (Oficina de Criação Literária Alcy Cheuíche, SindBancários, 2009).


O livro citado acima foi publicado após uma oficina de criação literária realizada no Sindicato dos Bancários, em 2009. A autora se apresenta como tendo nascido em 14 de junho de 1996, portanto com 13 anos atualmente. Custo a acreditar. Para mim foi um talento que se destacou entre os sete autores que li até o momento. São treze autores ao total no livro. E o fato de Isabela Severo se destacar não significa que os outros seis autores que já li são maus autores. Mas ela é um talento precoce, e, para mim, invejável.


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segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Meu Encontro com Fernanda A

Meu Encontro com Fernanda A



No início de fevereiro tive o privilégio de visitar a Cidade Maravilhosa.

Infelizmente seria uma estadia extremamente curta nestes pacotes turísticos para pagar em longo prazo.

Consegui convencer meu filho que o Rio de Janeiro não era aquilo tudo que ele imaginava, e claro que o imaginário dele era dominado pela criminalidade que os telejornais mostravam, inclusive com a recente derrubada de um helicóptero da polícia civil, no Morro dos Macacos, em Vila Isabel.

E, claro, a Cidade Maravilhosa continua Maravilhosa. Talvez não tanto quanto como quando o Rio de Janeiro era a Capital Federal (1889-1960), ou menos charmosa ainda que antes da fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro (1976). Mas certamente ainda um lugar de beleza exuberante, principalmente na Zona Sul, onde estamos sempre com o mar e a montanha (ou os morros, como quiserem) lado a lado.

Mas além de rever as maravilhas do Rio de Janeiro, e escapar da fornalha que Porto Alegre havia se tornado no início de fevereiro de 2010, eu queria conhecer algumas das pessoas de uma certa lista de discussão de fotografia na Internet de que participo. Afinal, se sou capaz de compartilhar opiniões com uma série de pessoas remotamente, por que não tentar conhecê-la ao vivo e em cores, me tornando mais do que um avatar de um lugar mais ou menos remoto?

As pessoas mais ativas da tal lista estão divididas em algumas cidades principais, sendo que me parece que a principal mesmo é São Paulo (alguém pensaria que poderia ser diferente?), mas também Rio de Janeiro, Recife, Brasília e Porto Alegre. O pessoal do Rio é bem ativo, tendo inclusive uma segunda lista de discussão só para eles.

Minha primeira intenção de encontro era o André. Tínhamos engatilhado uma pequena negociação de filme fotográfico, e assim, em minha cabeça, nós concluiríamos o negócio e, de quebra, eu poderia conhecer alguém que havia tirado fotos que eu tornara das minhas favoritas no Flickr, e que havia publicado neste blog. Infelizmente, o André está em modo "off-line" desde algum tempo atrás. A última foto que ele havia subido para o Flickr foi em 18 de janeiro último. Tentei contactá-lo via e-meio, e não obtive resposta. E também faz algum tempo que ele não tem estado ativo na tal lista de fotografia. Espero que ele apenas esteja em férias e esteja bem.

Entrei, então, em contato com a Fernanda, que parece uma, assim, agitadora cultural do pessoal do Rio. A Fernanda foi cordial e atenciosa. Então seria aguardar os dias chegarem. Meu ideal seria alguma coisa como um "happy hour" com a Fernanda, o Clemi, o meu xará Zé, e quem mais aparecesse. Estes citados tem participação bem ativa na tal lista.

No meu dia preferido, não à toa uma sexta-feira, nada aconteceu. Não houve agenda para nós.

No dia seguinte, teríamos um dia de passeio. Coisa de turista. E parecia que mais um encontro se encaminhava para não acontecer.

Contudo, tão logo chegamos do passeio, eis que um torpedo chegou ao meu celular, algo como um convite para aparecer numa exposição na Galeria Gentil Carioca, na Praça Tiradentes. Liguei para confirmar, ainda seria possível vê-la? Sim, claro. Era só chegar. Clemi não estaria, e o Zé já havia passado por ali. E lá fomos, meu filho e eu.

Conseguimos encontrar o local, e havia uma galera ao redor da tal galeria, que tinha uma exposição de fotos, e algumas instalações. Mas, e aí? Onde está Fernanda A entre tantas dezenas de pessoas? Primeira tentativa, celular. Não atendido, provavelmente nem ouvido no meio de tanto ruído próximo da Praça Tiradentes. Segunda tentativa: perguntar! "Você é Fernanda?", para uma meia dúzia de meninas, até que uma delas me informou onde estava Fernanda. Não na galeria, mas lá embaixo, cuidando de alguns CD's. Os CD's são produto do coletivo Filé de Peixe.

Legal! Encontramos a moça! O encontro foi breve. Ela comentou que estivera em Porto Alegre em meados de 2009, num evento na Travessa dos Venezianos. Me lembrei que de fato, algo havia sido divulgado na lista. Ela afirmou ter gostado de Porto Alegre (e como ela poderia dizer algo diferente, uma vez que há tantos gaúchos tão ciosos da boa fama de sua terra, e este gaúcho estava sendo visto pela primeira vez?). Adquiri alguns CD's do Filé de Peixe, sob recomendação dela. Tiramos uma foto. E fomos embora, antes que eu começasse a me perguntar o que eu estava fazendo ali, no meio daquele monte de gente (sim, eu tenho algo de anti-social, talvez um pouco para fazer tipo, mas sei lá, tenho facilidade para me sentir isolado em meio a muita gente).

Enquanto saíamos meu filho comentava comigo que quase todo mundo naquele encontro portava uma câmera. Eu não havia reparado, mas comentei. "É. Cada qual com a sua tribo. Tu não gostas do pessoal que gosta de games e animês?" "Pois é..."

Foi breve, mas valeu, Fernanda! =)

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Mister Magic em Campo Seco

Quando o ônibus deixou-o em frente àquela casinhola desamparada, Mister Magic pensou que fosse um engano. Apenas no momento em que leu o cartazete afixado na porta, com os dizeres "Rodoviária de Campo Seco", é que teve a triste certeza de que aquele era o lugar. Tratou de abrigar-se logo da chuvinha gris que deformava ainda mais as casas pobres do lugarejo, em cujas ruas reinava um silêncio estranho de deserto, e entrou na saleta da estação, onde um casal de velhos parecia esperar o próximo ônibus há muitos anos. Ninguém mais por ali, além do vendedor pendurado no guichê sonolento. Mister Magic remexeu nos bolsos e tirou deles uma papeleta amarrotada.

"O Hotel Real, por favor?"

O atendente mantinha toda sua atenção estranhada naquele recém-chegado carregando uma valise vermelha e tão variados apetrechos, mas lembrou-se de responder:

"Reto nesta rua, duas quadras, em frente à praça." E, como se fosse necessário informar: "É o único hotel da cidade".

Mister Magic olhou para os seus sessenta anos e todas as tralhas que há tanto o acompanhavam e achou que merecia um táxi. Mas o dinheiro contado na carteira negava-lhe este luxo e o contrato só lhe oferecia alimentação e hospedagem, além do cachê vergonhoso que aceitara sem hesitar; assim, resolveu enfrentar aos saltos aquela chuva que, mais tarde, lhe cobraria algum preço. Duas quadras não eram o fim do mundo; aquela cidade talvez fosse.

"É bom o hotel?"

"O melhor da cidade", respondeu o outro, como se contasse uma piada.

Mister Magic riu apenas por não ter outra coisa a fazer, enquanto recolhia os apetrechos recém-desembarcados. Quando levantou do solo a valise vermelha que lhe fazia as vezes de bagagem, sentiu novamente nas mãos aquele tremor cada vez mais constante e que tanto o assustava.

As duas quadras lhe pareceram quilômetros de distância e a garoa teimava em vencer, com a ajuda daquele vento puro dos descampados, as frágeis defesas do guarda-chuva amarelo que também usaria à noite, no espetáculo. Quando chegou ao hotel, trêmulo e com os ossos úmidos, suas seis décadas de vida pesavam como uma centúria e sua figurinha miúda tentando um resto de imponência causaria risos em qualquer um se não despertasse tanta pena.

"Boa tarde", cumprimentou o atendente, a voz sumida. "Tem uma reserva em meu nome. Mister Magic."

O homem olhou-o com uma dó que ia além de sua pobre figura; mirou-o como se fosse o arauto de uma tragédia:

"Ah, o senhor é o mágico? Infelizmente, a reserva foi cancelada."

O chão faltou, por um momento, às pernas magras de Mister Magic, mas ele recompôs-se logo: um artista internacional sempre é maior do que as pequenas adversidades.

"Deve haver algum engano. Eu tenho uma apresentação aqui, hoje à noite. No Clube Comercial. Fui contratado pela Prefeitura, é um espetáculo comemorativo ao aniversário da cidade. Quarenta e três anos de emancipação." Ele desfiava informações como se estas tivessem o poder de resolver a situação.

"Eu sei", disse o homem do hotel, compreensivo. "Parece que a apresentação foi cancelada. Mas quem vai lhe explicar melhor é o secretário do prefeito. Ele pediu que eu ligasse assim que o senhor chegasse." E, condoído ante a velhice solitária que se enxergava atrás da pequena pose de artista, disse: "Sente, que em cinco minutos ele vai estar aqui".

"Bom."

O mágico atendeu ao pedido como se cumprisse uma ordem. Sentou-se numa das poltronas plásticas do saguão, gastas por tantos anos, e nada disse enquanto aguardava o secretário. Agradeceu com um gesto o copo de água que o homem lhe trouxe, embora preferisse uma xícara de café, e destinou o tempo a tentar acalmar-se e pensar na grande merda que era a solidão de sua vida: noites maldormidas em pensões baratas, apresentações em cirquinhos perdidos na história, coelhos assustados em aniversários infantis, os anos na estrada empoeirada dos caminhos pobres, os amores fugazes que nem deixavam nome, seis décadas de carteira vazia. E este tremor nas mãos, agora.

Quando o secretário do prefeito chegou e viu aquele velhinho estático e sentado na poltrona como se não estivesse ali, pensou que não seria fácil a conversa.

"Boa tarde, Mister Magic."

O velho pareceu levar um choque e voltou assustado de suas lembranças solitárias. Levantou-se com dificuldade e estendeu a mão ossuda para o recém-chegado.

"Boa tarde", respondeu. "O senhor poderia me explicar o que está acontecendo?"

O secretário parecia constrangido.

"É que a apresentação foi cancelada." E, ante os olhos esbugalhados do velho: "Nenhum ingresso vendido".

À falta do que dizer, o mágico sentou-se novamente, sentindo com mais força a umidade das calças; se não tivesse direito a um banho quente e roupas secas logo, amanhã estaria com febre e sem ter quem o cuidasse. Por isso, precisava resolver a situação. Nenhum ingresso vendido, pensou: ninguém mais se interessava por mágica. E ele era um homem velho e miserável perdido numa cidadezinha descampada onde ninguém iria ajudá-lo a não ser por dó.

Mas também era o artista, e esta aura precisava de alguma valia.

"Não divulgaram direito, com certeza. E por que não me avisaram?"

"Ligamos para o hotel onde o senhor mora. Disseram que já havia saído. Aí, já não dava para fazer nada."

O mágico quis contemporizar; quanto mais rápido tudo estivesse resolvido, melhor.

"Tudo bem. E o meu cachê?"

"A Prefeitura paga a metade." O secretário estendeu-lhe um cheque.

A metade de nada é nada, pensou Mister Magic. Mas era isso e pouco havia a discutir. Fora de casa somos menores, pensou o mágico, esquecendo que não tinha casa.

"Está bem." Ele pegou o cheque, as mãos em surpreendente calmaria, e leu a quantia com dificuldade, olhos gastos ansiando por descanso. "E agora o senhor me dê licença. Este corpo velho precisa de um banho."

Novamente, o secretário tinha dificuldade de esconder o constrangimento.

"A Prefeitura paga o cachê, mas não paga o hotel."

De novo, a velhice solitária desabando em suas costas. Sem trabalho e pouso, um cheque mirrado no bolso, a gripe batendo à porta, ninguém a estender-lhe a mão. Não podia dar-se ao luxo de um hotel; não tinha dinheiro para isso. Teria que tomar o próximo ônibus de volta, seis horas molhadas e cada vez mais frias invadindo a madrugada, os sessenta anos gritando em protesto e transformando em dores a sua vingança. Viera para uma apresentação, um jantar garantido, uma noite quentinha; voltava sem nada disso.

O mundo não quer mais saber de mágica, pensou.

O homem do hotel olhou aquele velho sentado na ponta da poltrona, como se não quisesse estragá-la com seu peso inexistente, e percebeu que ele não aguentaria uma viagem de volta ainda no mesmo dia. Estavam vagos alguns dos quartos mais baratos — cama, pia, banho coletivo.

"Se o senhor fizer uma apresentação para os outros hóspedes, pode ficar por aqui esta noite."

"São quantos hóspedes?", perguntou o mágico.

"Uns seis ou sete."

O velho soube, na hora, que a oferta era só comiseração. Enfim.

"E a diária é com café da manhã?"

"Com café da manhã."

Mister Magic levou alguns segundos para responder o que já estava decidido desde o primeiro instante da proposta.

"Está bem."

* * *

Naquela noite, num hotel perdido de uma cidade-fantasma, apresentando-se em troca de cama e comida, seis hóspedes sonolentos assistindo sem luzes ao espetáculo da humilhação, Mister Magic só conseguia pensar, enquanto se atrapalhava com suas mãos cada vez mais trêmulas, que se a mágica servisse para alguma coisa, certamente deveria existir algum truque que o fizesse desaparecer dali.

Texto de Henrique Schneider, visto no Digestivo Cultural.

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Mais Martinez: Eloy Martinez e o Voo da Rainha

Por cid cancer

nassif, creio que o belo post do jornalista evaldo novelini em seu blog “alfarrábios” (www.evaldonovelini.com.br) sobre a morte do escritor argentino tomás eloy martínez e o silêncio corporativista da mídia em relação a seu livro “o voo da rainha”, que trata, obliquamente, do assassinato de sandra gomide pelo jornalista antonio pimenta neves, poderia ser compartilhado pelos leitores.

Soberba

10/02/2010 – 12:27:45
A morte de qualquer pessoa deixa a humanidade mais pobre.

Quando ela ceifa bons escritores, ao menos, consola o fato de terem deixado uma obra como legado.

É o caso do argentino Tomás Eloy Martínez, que morreu em 31 de janeiro último, aos 75 anos.

Extremamente culto e arguto, teve uma carreira literária profícua. E brilhante.

Natural de Tucumán, conta a história que começou a escrever aos dez anos de idade.

Posto de castigo por haver fugido, foi privado da leitura. Enquanto cumpria a punição imposta pelos pais, resolveu escrever o conto de um garoto que resolve viajar o mundo escondido em um selo postal. Foi seu primeiro livro.

Daí em diante não parou mais. Familiares contaram a jornalistas que, mesmo perdendo a luta vital contra o tumor cerebral, Martínez sentava-se diariamente diante de um computador para concluir seu último romance, El Olimpo.

Morto, Martínez ganhou necrológios justos de praticamente toda a imprensa mundial, desde The New York Times até El País. Menos no Brasil, para variar.

Os jornalões brasileiros mais uma vez erraram. Não que tenham deixado de recontar a história do escritor argentino, mas falharam por conta do corporativismo que assola a imprensa tupiniquim e empobrece o debate, até mesmo o literário.

Quem conhece a obra de Martínez percebeu na hora, ao término da leitura dos obituários dedicados a um dos mestres da escrita latino-americana, que a chamada grande imprensa não aprendeu uma das lições do escritor: a busca incansável pela verdade.

Não houve erros, mas omissão.

É fato que, “como jornalista, [Martínez] fundou diários, foi correspondente internacional, dirigiu e colaborou com diversas publicações”, conforme se leu na Folha de S. Paulo.

O argentino, como também lembrou como exatidão O Estado de S. Paulo, fez do peronismo o tema de algumas de suas obras mais vendidas e era “um escritor aferrado à palavra e à verdade”.

Sim, o livro mais famoso do escritor argentino é mesmo Santa Evita (1995), que relata o desaparecimento do corpo embalsamado de Eva Duarte Perón (1919-1952) por 16 anos, de 1955 a 1971. Consta que foi traduzido em 30 países.

Mas, no Brasil, a obra mais comentada de Martínez é outra. Trata-se de O voo da rainha, de 2002. Só quem conhece o conteúdo do volume e o quanto a imprensa nativa é parcial e omissa quando convém a seus interesses pôde entender por que as menções ao livro em todos os jornais de grande circulação, sem exceção, limitaram-se a dizer que foi o ganhador do prêmio Alfaguara, “uma das principais distinções a autores de língua espanhola”, segundo a Folha.

Sobre o quê falava o tal livro, porém? Nenhuma linha.

O voo da rainha é um romance com chaves, ou roman à clef, na expressão francesa. Trata-se de um recurso literário empregado por alguns escritores para ocultar sob pseudônimos pessoas e acontecimentos reais. O leitor com o mínimo de argúcia, no entanto, junta as peças e facilmente descobre a realidade disfarçada.

Pois O voo da rainha, escrito dessa forma, reconta em suas 279 páginas a história de um crime passional e covarde perpetrado pelo jornalista Antonio Pimenta Neves em 20 de agosto de 2000. Então diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, e não se conformando com o término de um romance com a colega Sandra Gomide, resolve assassinar a ex-namorada com dois tiros pelas costas, em um haras localizado em Ibiúna (SP).

- Não Pimenta, não!, teriam sido as últimas palavras dela.

- A Folha está informando sobre o caso com mais rigor e detalhe que O Estado. Será que eu preciso estar aí para que saibam o que deve ser feito? Você não tem ninguém que saiba contar direito uma história de amor e traição?, teria reclamando Neves a seu imediato na redação do jornal no dia seguinte, quando, ainda na condição de foragido da justiça, cotejou a cobertura do crime feita pelos dois principais veículos de São Paulo.

A presunção do assassino que, ainda com as mãos sujas de sangue, preocupara-se em humilhar e dar aulas de jornalismo a seus subordinados serviu de mote para Martínez escrever o belo O voo da rainha.

Gregório Magno Pontífice Camargo é Pimenta Neves. Reina Remis é Sandra Gomide. El Heraldo é a Folha de S. Paulo; El Diario, O Estado.

O livro foi lançado pela Objetiva na coleção Plenos Pecados. Convidados, sete autores escolheram um dos pecados capitais para sustentar um romance.

Zuenir Ventura, em Mal secreto, tratou da inveja.

José Roberto Torero, em Xadrez, truco e outras guerras, da ira.

Luis Fernando Verissimo, em O clube dos anjos, da gula.

João Ubaldo Ribeiro, em A casa dos budas ditosos, da luxúria.

João Gilberto Noll, em Canoas e marolas, da preguiça.

Ariel Dorfman, em Terapia, da avareza.

Com O voo da rainha, Tomás Eloy Martínez fechou a série abordando a soberba.

E que personagem mais adequado para explorar orgulho, arrogância e presunção do que um jornalista brasileiro?

Ao falar do amigo Martínez, em artigo para O Estado de S. Paulo, Ariel Dorfman relembrou uma lição deixada pelo colega, que foi destacada no título do texto, em letras garrafais:

- Se algo não é contado, não vale a pena existir.

Por isso os jornais brasileiros omitiram o roteiro de O voo da rainha?

Porque, para eles, o assassinato de Sandra Gomide por Pimenta Neves, por constrangedor, não vale a pena existir?

Talvez essa seja a chave.

Também visto no blog do Luís Nassif.

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A morte de Tomás Martínez

Por Sérgio Troncoso

Morre escritor argentino Tomás Eloy Martínez aos 75 anos.

Morreu na noite desse domingo o escritor e jornalista argentino Tomás Eloy Martínez, 75 anos, vítima de um câncer. Autor de Santa Evita, a novela argentina mais traduzida na história do país, e também de O romance de Perón, livro em que narra a vida do presidente Juan Domíngo Perón e de sua segunda esposa, Eva Perón, Martínez foi colunista dos diários La Nacion, The New York Times e do espanhol El País.

Nascido em 1934 na cidade de San Miguel de Tucumán, na província de Tucumán, Tomás Eloy Martínez iniciou sua carreira como revisor, no jornal La Gaceta, mas logo se tornou repórter e, mais tarde, crítico de cinema. Considerado um dos grandes jornalistas da história recente da Argentina, Martínez passou pelas principais publicações do país, como o semanário Primera Plana, o Opinión Cultural e a revista Panorama. Professor universitário e autor de mais de dez livros, Martínez fez parte do grupo que criou o importante diário Página 12, além de ter sido o primeiro diretor do telejornal Telenoche.

Ameaçado pela Aliança Anticomunista da Argentina, Martínez ficou exilado em Caracas, na Venezuela, de 1975 a 1983, onde trabalhou como editor do jornal El Nacional e fundou o El diario de Caracas. Martinéz também foi responsável pela fundação do jornal Siglo XXI em Guadalaraja, no México. Com passagem por Paris, onde trabalhou como repórter, e também pelos Estados Unidos – onde lecionou na Universidade de Maryland – Tomás Eloy Martínez ganhou, em 2002, o prêmio Alfaguara, um dos mais importantes prêmios do espanhol, por seu livro “O voo da rainha”.

Em 2009, o jornal espanhol El País concedeu ao jornalista e escritor o Prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo, distinção dada aos autores de trabalhos publicados em espanhol em todo o mundo. Também no ano passado, no dia 24 de junho, Martínez passou a integrar a Academia Nacional de Jornalismo. Seu último livro de literatura, Purgatório data de 2008

http://diversao.terra.com.br/gente/noticias/0,,OI4238823-EI13419,00-Morre+escritor+argentino+Tomas+Eloy+Martinez+aos+anos.htm


Visto no blog do Luís Nassif.

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Mochila Vazia - "Up in the Air"

Mochila vazia

SÃO PAULO - Ponha "Avatar" de lado. George Clooney é Ryan Bingham, executivo de uma empresa especializada em demitir funcionários de outras corporações. Esse demitidor de elite é o protagonista de "Up in the Air" ("Amor sem Escalas" na destradução local), filme de Jason Reitman que estreia hoje.
Entre uma demissão e outra, o personagem vive no avião. Sua obsessão é atingir dez milhões de milhas no ar. "No ano passado, tive que aguentar 43 miseráveis dias em casa", contabiliza. Profissão, estilo pessoal e filosofia de vida se fundem na sua figura descompromissada.
Em suas viagens, ele promove o "way of life" que personifica em palestras motivacionais sobre "Como Esvaziar a Sua Mochila". O segredo consiste em fazer a plateia sentir quanto pesam as tralhas materiais e os laços afetivos acumulados ao longo da vida.
Bingham vê seu mundo ameaçado quando Natalie (Anna Kendrick), uma jovem executiva, sugere um método mais econômico de cortar cabeças: por teleconferência. Ambiciosa e provinciana, Natalie confidencia que, ainda adolescente, imaginava chegar à casa dos 20 casada com um executivo de sucesso, dirigindo um jipão da moda, com filhos e cachorro de raça na bagagem.
Seu ideal de vida convencional contrasta com o cinismo cosmopolita de Alex (Vera Farmiga), versão feminina de Bingham, a parceira perfeita para um bom papo e uma noite de sexo casual num cinco estrelas. As coisas, porém, não são tão fáceis como parecem. Mas guardemos o final, antes que o leitor demita o colunista pela internet.
As demissões (e os demitidos, todos colhidos na vida real) ocupam só o pano de fundo da trama. Ainda nos anos 90, o psicanalista francês Cristhope Dejours escreveu um livro ("A Banalização da Injustiça Social") discutindo as razões que levam pessoas ditas "de bem" a aceitar fazer o "trabalho sujo" e cometer crueldades contra terceiros. A "banalidade do mal" no mundo corporativo era seu tema. "Up in the Air" arranha essa ferida.

Comentário de Fernando de Barros e Silva, na Folha de São Paulo, de 22 de janeiro de 2010.

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segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Verão Demais - 2009-2010

Verão demais

SÃO DIAS de sol e calor, basta olhar e a gente sabe que o verão se instalou, para desespero daqueles que não suportam aquilo que alguns chamam de "canícula". Ou pior, "verão senegalesco", que faz dupla no lugar-comum com o "frio siberiano".
Em algumas plagas, o verão dura o ano inteiro, aqui no Rio, por exemplo, mas sem este exagero como o deste ano, que abriu suas fornalhas em cima de justos e pecadores. A luminosidade é excessiva, mas não dá vontade de fazer nada, como foi possível criar uma civilização no trópico, chegamos a abençoar aqueles dias cinzentos, desses que os poetas chamam de "plúmbeos".
Nada tenho contra o verão -Deus é testemunha disso. Mas não me agrada o assanhamento geral que já escolheu a musa do verão, a gíria do verão, a música do verão e a dança do verão. Sem ter culpa formada, o verão foi condenado a ser produto de consumo, como um sabonete ou um iPod.
Bem, cada qual se coça como pode, o corcunda sabe como se deita. O melhor verão de um amigo meu, que detestava badalação e gente, foi passado numa praia distante, pescando os seus carapicus em velha e desbotada canoa, um barco descascado que lhe fez companhia, casa e arca, chão e viagem pelo tempo da vida que escolheu.
A mulher que ele amava estava próxima, ao alcance da vista e do desejo, mas ela não interferia na sua solidão, no seu silêncio e na lenta peregrinação através do calor e do mar. Foi, em todos os sentidos, o seu verão, texto final de sua vida. Quando o inverno chegou, os barcos foram retirados para descansar na areia, cobertos com as redes ainda molhadas pelos mares do mundo, ele teve um momento de lucidez retroativa, disse adeus e foi-se embora com um tiro no peito. Chamava-se Jô, como o gordo Soares.
Mas não boto a boca no mundo porque este verão está de lascar, rachando catedrais -como dizia o Nelson Rodrigues. Obedeço ao poeta Horácio e curto o dia de hoje nada deixando para amanhã -e sei que muita gente, mesmo ignorando o poeta latino, já descobriu essa forma de caminhar pela vida.
O certo, também, é que há gente demais no mundo e tudo fica terrivelmente chato no meio de tanta gente. Que fazer? Essa pergunta foi feita por Lênin, num título de livro seu, e parece que nem ele encontrou respostas, embora o problema dele tenha sido outro.
De minha parte, enfrento como posso e com ar-refrigerado, o coração contrito e humilhado, o verão canicular e senegalesco que desabou sobre a cidade. (Em tempo: por pior que seja, acho que o verão não merece esses adjetivos que formam o lugar-comum acima citado).
Quero o verão fora do calendário, tornando-o aquilo que os ascetas chamavam de "estado d'alma" -eis a fórmula para fazermos o nosso laboratório para o verão que já se instalou. E desde já a advertência: não adianta dividir o verão com muita gente.
Lembro a piada do lorde inglês. Estava à janela de sua mansão quando o mordomo, olhando o tempo lá fora, informou: "Acho que vamos ter chuva, sir". Ao que o lorde retrucou: "Não, meu caro James (os mordomos sempre se chamam James nessas piadas), eu terei a minha chuva e você terá a sua chuva!".
Recuso o papel de órfão da tempestade, mas também recuso o assanhamento geral dos dias de sol. Sei que o verão foi feito para todos, mas tenho um truque muito caviloso para fruí-lo à minha maneira. Guardo de cada verão uma imagem na carne da minha memória.
Escrevi certa vez um romance que tinha o verão como personagem principal, foi até filmado em Cabo Frio, com Norma Bengell e Jardel Filho. Um casal que descobre o desamor e resolve se separar depois do verão. A história desse último verão é densa, amarga, sofrida.
O título era óbvio: "Antes, o Verão". Não sei por que (nem para que) andei cismando em fazer outro romance com o título que coloquei acima: "Verão demais". Não, não é um bom título. E ninguém merece esse tipo de ameaça.
Entre o verão assassino que caiu sobre o Rio e o verão diluviano que rompeu suas águas sobre São Paulo, prefiro ainda o do Rio. Verdade seja dita, na pior das hipóteses, o verão, tanto o do Rio como o de São Paulo, dá ainda motivo para uma crônica suada como esta.

Crônica de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 29 de janeiro de 2010.


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