terça-feira, setembro 30, 2008

Como as religiões vêem os grandes temas nos EUA

Como as religiões vêem os grandes temas nos EUA

Cathy Lynn Grossman

Deus está nos punindo. Os anjos da guarda nos protegem. A Terra está em grave perigo.

Foi o que descobriu uma pesquisa recente da Universidade Baylor sobre as crenças e práticas religiosas dos norte-americanos. A pesquisa, que será divulgada hoje, foi baseada em entrevistas com 1.700 adultos, realizadas no outono de 2007.

Meio ambiente

Os evangélicos não se preocupam tanto com a mudança climática global. A maioria dos entrevistados na pesquisa sobre religião da Baylor concorda que "se não mudarmos as coisas de forma dramática", a mudança climática global será "um desastre" (67%); o carvão, petróleo e gás natural irão acabar (70%) e a maior parte das plantas e da vida animal será destruída (57%).

Mas os protestantes evangélicos têm bem menos tendência (55%) do que os outros grupos religiosos a se sentirem alarmados com a mudança climática global ou com a previsão de destruição da vida se o homem não mudar (49%).

Enquanto 56% dos adultos dos EUA dizem que o governo não está gastando o suficiente para ajudar e proteger o meio ambiente, o número de evangélicos que têm a mesma opinião é menor - 41%, segundo o sociólogo F. Carson Mencken, da Universidade Baylor.

De fato, os evangélicos são pelo menos duas vezes mais propensos a dizer que o governo já está gastando muito com o meio ambiente do que qualquer outro grande grupo religioso. Entre os que tendem a dizer que os gastos são muito pequenos estão os judeus, 81%, e as pessoas sem filiação religiosa, 79%.

"É o fim do mito do movimento ambientalista evangélico", diz Mencken. "Isso não quer dizer que os evangélicos são anti-ambientalistas, mas que seu apoio à causa ambiental não é tão forte quanto entre outras tradições religiosas."

O ambientalismo tem sido um tema controverso entre os evangélicos. Quando a Associação Nacional de Evangélicos lançou o "Chamado para a Ação" contra a mudança climática em 2006, alguns religiosos conservadores, liderados por James Dobson da organização Foco na Família, opuseram-se com veemência.

Gênero e política

As mulheres devem participar da política? O tema divide profundamente os americanos.

A pesquisa revelou que a sociedade americana está bastante dividida em relação aos papéis da mulher na sociedade, e isso pode influenciar as eleições de novembro.

Por exemplo, 33% dos americanos dizem que "a maioria dos homens estão mais preparados emocionalmente para a política dos que a maioria das mulheres". 44% dos protestantes evangélicos concordam com isso, mais do que outros cristãos e muito mais do que os judeus (29%), outras religiões (23%), e pessoas sem religião (14%).

Os dados da Baylor foram reunidos em 2007, quando a senadora Hillary Clinton lutava pela nomeação como candidata pelo partido Democrata, muito antes que a governadora do Alaska, Sarah Palin, fosse nomeada para a vice-presidência da candidatura republicana, chamando atenção para a questão da maternidade e de gênero. Palin é mãe de cinco filhos, incluindo uma criança com síndrome de Down.

Os dois candidatos republicanos são protestantes evangélicos (John McCain é batista e Palin não tem uma denominação específica). O candidato do Partido Democrata, Barack Obama, é protestante (Igreja Unida de Cristo), e seu vice, o senador Joe Biden, é católico apostólico romano.

A pesquisa também revelou:

- que 41% disseram que as crianças em idade pré-escolar sofrem se suas mães trabalham fora (54% dos evangélicos defendem isso, quase o dobro dos outros grupos).

- que 31% disseram que "é o desejo de Deus que as mulheres tomem contas de seus filhos" (48% de evangélicos).

Essas visões podem definir os votos? "As pessoas podem sustentar esses valores sociais, mas nem sempre isso se traduz nas urnas", diz Lauren Winner, professora-assistente de espiritualidade cristã na Universidade Duke. "Apesar de a visão conservadora em relação aos gêneros ser uma peça fundamental da visão de mundo evangélica, ela não é o principal fator para as pessoas - como é o aborto.

"As pessoas podem relevar a contravenção de Palin em relação aos papéis tradicionais - uma mãe que pode ir para a Casa Branca - agarrando-se à sua posição clara contra o aborto".


A tragédia e o mal

Deus causa ou permite "que grandes tragédias aconteçam, como um aviso aos pecadores", dizem 20% dos adultos dos Estados Unidos.

Enquanto 43% dizem que o maior mal é causado pelo diabo, 47% discordam - num empate estatístico.

Mas a maioria (68%) não diria que a natureza humana é essencialmente má.
Então onde é que o mal reside - no diabo ou na espécie humana? A pesquisa Baylor, que permite respostas sobrepostas, descobriu que 36% concordam com ambas as definições.

"Aqueles que acreditam que Deus causa ou permite que coisas ruins aconteçam não disseram que as tragédias são culpa de Deus", diz o sociólogo de Baylor Christopher Bader.

Segundo Bader, as pessoas disseram que "as tragédias são nossa culpa. Nós pecamos enquanto nação, e Deus não impediu que coisas terríveis acontecessem."

Entre as perguntas que o reverendo Rick Warren fez para ambos os candidatos à presidência em seu Fórum Civil sobre a Presidência em Saddleback, estava: "O mal existe?". Ambos os candidatos disseram que sim.

O senador Barack Obama disse que é "tarefa de Deus eliminar o mal do mundo", mas que "nós podemos ser soldados nesse processo."

O senador John McCain disse que "o mal deve ser derrotado", e relacionou-o totalmente com o "desafio transcendente do século 21 - o extremismo radical islâmico."

Fonte: Pesquisa Baylor de Religião, Instituto de Estudos da Religião, Universidade Baylor. Baseado em pesquisa com 1.700 adultos no outono de 2007; a margem de erro é de 4 pontos percentuais para mais ou para menos.

Tradução: Eloise De Vylder

Texto do USA Today, no UOL.

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Royal Society demite diretor "criacionista"

Royal Society demite diretor "criacionista"

DA REDAÇÃO

O biólogo e pastor da Igreja Anglicana Michael Riess foi demitido anteontem do cargo de diretor de Educação da Royal Society devido à polêmica que causaram suas afirmações sobre como lidar com o criacionismo nas escolas.
Citando que 1 em cada 10 crianças britânicas crê no criacionismo, Reiss disse na Universidade de Liverpool, no último dia 11, que seria melhor discutir o tema nas aulas de ciências, ao invés de simplesmente corrigir as crianças .
A Royal Society afirmou que Reiss foi mal interpretado e prejudicou a reputação da instituição.
"Clamar pela renúncia com base nisso [como fizeram por carta três sócios da Royal Society ganhadores do Prêmio Nobel] chega próximo de uma caça às bruxas", disse o cientista e ativista ateu Richard Dawkins, em carta à revista "New Scientist", antes da demissão de Reiss.

Da Folha de São Paulo, de 18 de setembro de 2008.

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Desfiz 75 anos

Desfiz 75 anos...

MINHA FORMAÇÃO filosófica impõe-me o uso preciso das palavras porque as palavras devem revelar o ser. E é assim, usando de forma precisa as palavras, comunico aos meus leitores que ontem, dia 15 de setembro, eu desfiz 75 anos...
Haverá leitores que se apressarão a corrigir meu uso estranho, nunca visto, da palavra "desfazer", atribuindo-o, quem sabe, a um início do mal de Alzheimer. Todo mundo sabe que, para se anunciar um aniversário, o certo é dizer "fiz" tantos anos. No meu caso, "fiz" 75 anos...
Mas o verbo "fazer" sugere algo que aumenta, um crescimento do ser, o artista e o artesão "fazem"...
Mas, que ser aumenta com a passagem do tempo, esse monstro que devora os seus filhos? O que aumenta é o vazio. Esses anos que o aniversariante distraído anuncia como anos que ele fez são, precisamente, os anos que ele desfez, o tempo que já passou, que deixou de ser, os anos que o tempo devorou.
Por isso acho um equívoco filosófico perguntar a alguém: "Quantos anos você tem?". O certo seria perguntar "quantos anos você não tem?". E ela responderia "não tenho 42 anos", "não tenho 28 anos". Porque esse número de anos indica precisamente os anos que ela não tem mais. Nos aniversários, então, a maneira correta de se dirigir ao aniversariante é perguntando-lhe "quantos anos você está desfazendo hoje?".
Com base nessas reflexões filosóficas acho extremamente estranho e mesmo de mau gosto esse costume de o aniversariante soprar as velinhas acessas para que elas se reduzam a um pavio negro retorcido. Aí, nesse momento, todos gritam e riem de alegria e cantam o "Parabéns pra você", em louvor a essa "data querida..."
Bachelard, no seu delicadíssimo livro "A Chama de uma Vela", que nunca será best-seller, nos lembra que uma vela que queima é uma metáfora da existência humana. Há alguma coisa de trágico na vela que queima: para iluminar, ela tem que morrer um pouco. Por isso ela chora, e suas lágrimas escorrem sobre o seu corpo sob a forma de estrias de cera.
Uma vela que se apaga é uma vela que morre. Algumas velas se consomem todas, morrem de pé, têm de morrer porque a cera já se chorou toda. Outras morrem antes da hora -elas não queriam morrer-, mas veio o vento e a chama se foi.
As velinhas acesas fincadas no bolo não querem morrer. Elas vão ser assassinadas por um sopro. O sopro que apaga as velas é o sopro que apaga a vida...
Por isso não entendo os risos, as palmas e a alegria que se segue ao sopro que apaga as velas. Uma vela que se apaga é um sol que se põe, disse Bachelard. E todo pôr-do-sol é triste... Uma vela que se apaga anuncia um crepúsculo.
Por isso eu prefiro um ritual diferente, ritual que é uma invocação. Eu acendo uma vela pedindo aos deuses que me dêem muitos anos a mais de vida, esses anos que se seguirão, que são o único tempo que realmente possuo...
Assim fiz, acendi uma vela, meus amigos à minha volta. Que coisa boa é ter amigos, especialmente quando o crepúsculo e a noite se anunciam!
Acho que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas nem por ondas cerebrais. Somos humanos, permanecemos humanos enquanto estiver acesa em nós a esperança da alegria. Desfeita a esperança da alegria, a vela se apaga e a vida perde o sentido.

Texto de Rubem Alves, na Folha de São Paulo, de 16 de setembro de 2008.


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sexta-feira, setembro 26, 2008

Os Fracos e as Trevas

Tempos atrás achei muito instigantes os comentários sobre o filme Onde os Fracos não têm Vez (No country for old men), feitos, primeiramente pela Katarina Peixoto, no blog Palestina do Espetáculo Triunfante, e depois pelo Giovani Felice, no O Rei da França. Ambos os comentários me deixaram com grande vontade de ver o tal filme.

Porém, quando fui ver o filme, ele não me pareceu a obra-prima recomendada por ambos. Não que seja um filme ruim. Pelo contrário, o filme é muito bom. Mas algo me pareceu fora do lugar confrontando os comentários com o filme em si. Talvez a questão de a história ser tratada com, ou como, certo realismo pelos comentaristas, e, a mim ela parecer uma tremenda metáfora. Ou como talvez dissesse a Bíblia, uma parábola.

Anton Chigur, o bandidão do filme, existiria? É possível. É possível que existisse, é possível que exista, que esteja por aí, aguardando qualquer um de nós numa esquina (ou numa estrada, ou numa farmácia, para usar cenas do filme) qualquer da vida. Mas as minhas racionalizações me impediam de crer em Chigur como um modelo de alguém real. Não tive a infelicidade de me encontrar com um “serial killer”, nem com monstros assassinos, tais como aqueles que trabalham em associações criminosas de tipo mafioso, sejam italianos, ou russos. Chigur não me parecia nem uma coisa, nem outra. Não era o “serial killer” clássico, sociopata que mata, como que para satisfazer um instinto. E não parecia um sicário de qualquer máfia, pelo contrário, passa o filme todo atrás de um dinheiro que pertence a uma quadrilha de traficantes, o que pode torná-lo, no final das contas, ele mesmo (Chigur) um alvo da quadrilha a quem o dinheiro outrora pertenceu. Claro que a minha racionalização pode estar errada, e no final, a variedade dentro da espécie possa vir a criar um “Anton Chigur real”. Mas claro está que eu não me convenci.

Tempos depois fui assistir o arrasa-quarteirão (“blockbuster”) Batman, o Cavaleiro das Trevas (“The Dark Knight”). E devo dizer que este filme me assustou mais. Claro, o filme é fantasioso, os danos infligidos à Gotham City pelo Coringa são para lá de superestimados, mas como levar a gurizada ao cinema sem uma pequena quota de explosões e tiroteios? Mas, curiosamente, o Coringa de Heath Ledger me pareceu mais, digamos, possível que o Chigur de Javier Bardem. Eis ali o sociopata que só quer mesmo ver o circo pegar fogo. Para não fugir ao estereótipo da loucura, ali está o louco que, literalmente, queima dinheiro. E para complementar, ele tem um roteiro que ele segue quando se propõe a matar suas vítimas “individualmente”, contando para cada uma delas uma história diferente sobre a origem das cicatrizes em seu rosto, que lhe dão a maligna simpatia que é característica do personagem. O filme me deixou, assim, desestabilizado.

Na época em que fui ver Batman, julho passado, a minha cabeça fez alguma associação entre os filmes, mas ficou por isto mesmo. Vi, veio, passou.

Tempos depois descobri outra escritora de Internet, blogueira, que também gosta de cinema, como os blogs referidos acima. A Ingrid Guerra, nos seus Arquivos de Gaveta, tinha comentários tanto sobre Onde os Fracos não têm Vez, como sobre O Cavaleiro das Trevas. Eu gostei dos comentários dela, e perguntei se ela iria escrever uma síntese sobre os dois filmes. A resposta dela, não me indicou isto, mas a coisa continuou martelando na minha cabeça.

Mais algum tempo depois, e eis que a revista CartaCapital, em sua edição 511, de 3 de setembro de 2008, na seção chamada Calçada da Memória, comenta Onde os Fracos não têm Vez, como filme multi-oscarizado, e que, talvez chame uma continuação, na forma como os irmãos Coen o dirigem. Mas a crítica traz novamente à tona o livro que inspirou o filme (a Katarina havia falado no livro), de autoria de Cormac McCarthy. E, segundo José Onofre, McCarthy não estava interessado no crescimento da violência, mas na origem do mal. Como lembra Giovani Felice, citado no início deste texto, o “ocultamento de Deus”.

Assim, pois, duas colocações que perpassam a ambos os filmes, a malignidade que pode aflorar através de algumas pessoas, a fragilidade da vida. Não é que a fragilidade da vida não seja evidente, mas não gostamos de pensar nela.

A vida é frágil mesmo. Para seguir em frente, convém tentar se manter digno quando enfrentarmos o final dela, isto é, a morte. Ou como diria o escritor dos Atos dos Apóstolos, citando o apóstolo Paulo: “Mas em nada tenho a minha vida por preciosa” (Atos 20:24). Se a tivermos por muito preciosa, talvez a tornemos ainda mais frágil.

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terça-feira, setembro 23, 2008

Criacionismo

ROYAL SOCIETY QUER DISCUTIR CRIACIONISMO
A Royal Society, do Reino Unido, maior sociedade científica européia, defendeu que o criacionismo seja incluído nas aulas de ciências para reduzir a confusão entre os alunos. Citando que 1 em cada 10 crianças britânicas crê no criacionismo, o diretor de Educação da entidade afirmou que o movimento ajudaria a mostrar que o literalismo bíblico não está apoiado em evidências.

Notícia da Folha de São Paulo, de 12 de setembro de 2008.

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quinta-feira, setembro 18, 2008

O papo-cabeça cansa

O papo-cabeça cansa

Hoje tive a oportunidade de ter vários “papo-cabeças” com alguns colegas de serviço.

Os assuntos são os mais variados. Num primeiro momento, versaram, por exemplo, sobre a melhor forma de temperar feijão, ao mesmo tempo em que cogitávamos com seria o funcionamento dos famosos e super poderosos computadores da marca Cray, usando um sistema operacional muito popular, e inclusive muito pirateado, mas também conhecido por não ser dos mais estáveis e robustos, sem falar sobre a melhor maneira de empunhar uma vassoura para limpar a terra derrubada de um vaso, questionando os ímpetos feministas de uma colega.

Em outro momento, alguém chegou para conversar sobre uma famosa foto feita por Robert Capa, do miliciano caído durante a Guerra Civil Espanhola. A foto era falsa, uma montagem? Este alguém havia descoberto um texto que defendia a autenticidade do momento captado por Capa. Ou seja o momento captado por Capa, na sua foto, seria como o momento crítico em que uma foto é batida, segundo a idéia de Henri Cartier-Bresson. Falamos de máquinas fotográficas Leica, e de como esta tradicional marca de material ótico e fotográfico estava passando por dificuldades financeiras. E Isto trouxe novamente Cartier-Bresson à tona. Afinal Cartier-Bresson foi um fiel usuário desta marca alemã. Claro, que, em se falando de Leica, também se falou do custo altíssimo das câmeras desta marca. E ainda houve tempo para falar sobre diplomas universitários, e conceitos geográficos tais como “charneca”. Tanta conversa, tanta discussão, tanta eloqüência em tão pouco tempo cansa um pouco.

Mais tarde ainda outro colega resolveu conversar sobre assuntos diversos mas o assunto inicial foi o assunto anterior, e a charneca foi o ponto de partida, e falamos de charneca, de pântanos, de Arthur Conan Doyle, e da criação mais famosa deste, o detetive Sherlock Holmes. De charnecas e pântanos, passamos à turfa, e ao uísque, e daí sobre as diversas bebidas destiladas de álcool que existem mundo afora, como o saquê de arroz japonês, ou o “uísque” de milho americano (o famoso Jack Daniel's). E não sei porquê comentamos que os americanos têm o costume de fornecer exemplos quando falam de alguma coisa, e que isso demonstrava, talvez, uma dificuldade em formular conceitos por parte daquele povo, se bem que isso pode ser uma forma de tentar tornar o conceito menos abstrato e mais concreto. Além disso, falamos de línguas, e de quantas línguas, meu colegas gostaria de dominar, ao menos para ler. Falamos sobre inglês, alemã, francês, italiano, espanhol, e de línguas não indo-germânicas, como o basco, o finlandês e o estoniano. Por fim, ficamos falando das semelhanças entre o árabe e o hebraico, que, afinal, são línguas semíticas. Sem contar que o povo búlgaro falava o búlgaro, que era uma língua eslava, provavelmente resultante da acomodação do idioma russo arcaico ao povo búlgaro, que etnicamente seria mais aparentado dos turcos, do que dos eslavos. E comentamos sobre a Europa Central, e de como a Áustria, a Hungria, e a Romênia, países geograficamente próximos uns dos outros falavam línguas bem diferentes uma da outra (para esclarecer, na Áustria se fala alemão, na Hungria, o húngaro, ou magiar, e na Romênia, o romeno, uma língua neolatina, parente do italiano e do português, portanto). E ainda deu tempo de falar sobre como os homens criam identidades para si. Sejam individuais, sejam nacionais.

Ufa!

O papo-cabeça cansa. Não que seja ruim. Mas deve ser por isso que o papo cabeça tem melhor lugar à mesa de algum bar, eventualmente à mesa de algum lar, e sobre esta mesa normalmente há alguma comida, e sempre uma bebida. Tanto que o papo se esgota, ou quando se esgota o tempo disponível dos dialogantes, ou o estoque de comida e bebida (ou a disponibilidade de numerário para adquirir mais).


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quarta-feira, setembro 17, 2008

O amor que choveu

Era uma vez um menino que amava demais. Amava tanto, mas tanto, que o amor nem cabia dentro dele. Saía pelos olhos, brilhando, pela boca, cantando, pelas pernas, tremendo, pelas mãos, suando. (Só pelo umbigo é que não saía: o nó ali é tão bem dado que nunca houve um só que tenha soltado).

O menino sabia que o único jeito de resolver a questão era dando o amor à menina que amava. Mas como saber o que ela achava dele? Na classe, tinha mais quinze meninos. Na escola, trezentos. No mundo, vai saber, uns dois bilhões? Como é que ia acontecer de a menina se apaixonar justo por ele, que tinha se apaixonado por ela?

O menino tentou trancar o amor numa mala, mas não tinha como: nem sentando em cima o zíper fechava. Resolveu então congelar, mas era tão quente, o amor, que fundiu o freezer, queimou a tomada, derrubou a energia do prédio, do quarteirão e logo o menino saiu andando pela cidade escura ― só ele brilhando nas ruas, deixando pegadas de Star Fix por onde pisava.

O que é que eu faço? ― perguntou ao prefeito, ao amigo, ao doutor e a um pessoalzinho que passava a vida sentado em frente ao posto de gasolina. Fala pra ela! ― diziam todos, sem pensar duas vezes, mas ele não tinha coragem. E se ela não o amasse? E se não aceitasse todo o amor que ele tinha pra dar? Ele ia murchar que nem uva passa, explodir como bexiga e chorar até 31 de dezembro de 2978.

Tomou então a decisão: iria atirar seu amor ao mar. Um polvo que se agarrasse a ele ― se tem oito braços para os abraços, por que não quatro corações, para as suas paixões? Ele é que não dava conta, era só um menino, com apenas duas mãos e o maior sentimento do mundo.

Foi até a beira da praia e, sem pensar duas vezes, jogou. O que o menino não sabia era que seu amor era maior do que o mar. E o amor do menino fez o oceano evaporar. Ele chorou, chorou e chorou, pela morte do mar e de seu grande amor.

Até que sentiu uma gota na ponta do nariz. Depois outra, na orelha e mais outra, no dedão do pé. Era o mar, misturado ao amor do menino, que chovia do Saara à Belém, de Meca à Jerusalém. Choveu tanto que acabou molhando a menina que o menino amava. E assim que a água tocou sua língua, ela saiu correndo para a praia, pois já fazia meses que sentia o mesmo gosto, o gosto de um amor tão grande, mas tão grande, que já nem cabia dentro dela.

Texto de Antonio Prata, visto no Digestivo Cultural.

Tão meigo, tão lindinho!...



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Tem macumba no grampo

Tem macumba no grampo

RIO DE JANEIRO - O pessoal que trabalha com grampos -digamos- não-autorizados está impressionado como a turma do andar de cima no Rio é chegada à macumba. Nas horas e mais horas de abobrinhas colaterais captadas em campanas auditivas, o assunto mais recorrente são "trabalhos" feitos e desfeitos contra desafetos ou para trazer de volta a pessoa amada. Rico sofre.
Quando os arapongas vigiam os telefones de um -digamos de novo- banqueiro em endereço chique da zona sul, todo o prédio acaba grampeado. E aí o que mais se ouve, em vez de tenebrosas transações, são inquietações com "despachos" e "mau-olhado". Os bacanas freqüentam mais terreiros do que calcula o IBGE. Alguns têm até "personal" pai-de-santo. A arapongagem se diverte nas horas vagas ouvindo as gravações indiscretas da elite. Viraram uma espécie de paparazzi das linhas cruzadas.
Joga-se para a torcida com essa discussão "oficial" sobre grampos.
Pura hipocrisia. Há anos as polícias de todos os níveis grampeiam Deus e todo o mundo -legal e ilegalmente. Há fartura de escutas privadas.
Não faltam no mercado aparelhos de espionagem para qualquer fim.
Paredes têm ouvidos, sim.
Privacidade acabou. Quanto mais tecnologia, menos possibilidades de se guardar um segredo -seja pessoal [como as macumbas de amor da burguesia de Ipanema], profissional, político ou criminoso.
Os recursos que fascinam os consumidores voltam-se contra eles mesmos. Teleconferências, "siga-me", chamadas em espera abrem janelas para abelhudos em algum ponto da linha. Ouvem-se coisas.
Nada resiste a um grampo: casamentos, sociedades, negócios ou alianças políticas. Portanto, cuidado: tudo o que disser ao telefone poderá ser usado contra você. E depois não vai adiantar se explicar.

Texto de Sérgio Costa, na Folha de São Paulo, de 7 de setembro de 2008.


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terça-feira, setembro 16, 2008

Centro: O olhar de quem é de fora

O olhar de quem é de fora

Ah, o Centro.

Como moradora do Menino Deus, nunca tive a oportunidade de andar pelas ruas de meu bairro e esbarrar em pessoas diferentes a cada esquina. São índios, loiros, morenos, ruivos, calvos, grisalhos, negros, albinos, crianças, idosos, gente sem idade definida, pedintes, compro-ouro-corto-cabelos, mágicos, prostitutas, malabaristas. É isso que aprecio no Centro: os encontros. Andar nas ruas, esbarrando, esquivando, contorcendo para fugir dos apressados, olhando sempre, a todos. Ver seus olhos cansados, a fumaça saindo da boca, os braços estendidos entregando panfletos, os corpos enrolados em jornais no chão, as crianças tocando violas acompanhadas por gaiteiros já passados da validade.

Ah, o Centro.

Nos dias de hoje, em que todos fugimos do contato humano apelando para o mundo cibernético, o Centro permanece como último remanescente da humanidade. É lá que todos trocam toques e carinhos apressados e sem compromisso. Onde algumas pessoas voltam a sentirem-se amadas, pedem desculpas pela diminuta relação que tiveram e seguem em frente, um pouco mais felizes. Um pouco mais aquecidas. São pequenos pegares de mãos, pequenos chutes nos tendões de Aquiles. Mas que fazem toda a diferença para os carentes da cidade.

Ah, o Centro.

Andradas, Sete de Setembro, Duque de Caxias, Borges de Medeiros. Lombas e planos. Tenho uma estranha atração pelas ruas do Centro. Os calçamentos, as árvores, as mesas de damas, os colares e brincos expostos, os passantes e os estáticos. Enquanto atravesso o Centro, meus olhos vão captando as belezas escondidas e as sutilezas imperceptíveis aos apressados.

Ah, o Centro.

Outra peculiar alegria minha são os dias de chuva. Literalmente, chove de baixo para cima, de cima para baixo, de todos os lados, e de lado algum. É aí que entram os guarda-chuvas. Coloridos, pretos, transparentes, gigantes, médios e pequenos, frágeis e firmes, todos amontoados formando um descompassado tapete que cobre as ruas. O Centro vira carnaval e a cidade desfila pelas avenidas.

Ah, o Centro.

Texto de Gabriela Aerts, estudante, no Jornal do Centro, edição 123, na página 4.

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Das Crônicas do Heuser: Atrasado!

Atrasado!

Por Paulo Heuser


Eu adorava sardinhas, quando criança. Não pelas sardinhas, pela lata. O atum relegou as sardinhas ao esquecimento. As pizzas de sardinha foram prato de todas as festas de aniversário da década de 70. Os rapazes levavam a bebida, as moças a comida. As mamães das moças preparavam pizzas de sardinha, invariavelmente, e os papais se livravam das bebidas que haviam recebido de brinde, seja quais fossem.

As latas de sardinhas vinham com aquela chave que pretendia facilitar a abertura. Era uma chave metálica que se encaixava numa aba, e permitia, em tese, que a tampa da lata fosse enrolada na direção de uma das extremidades. Já as pobres latas de atum, além de caras, apresentavam superfície lisa, quase desprovida de encaixes para o abridor. Para dificultar mais a abertura, sempre foram cilíndricas, exigindo que o abridor de latas ande em curva. Os abridores geralmente descarrilam. Algumas já contam com abertura através de um anel que, quando puxado, traz a tampa consigo.

As latas de sardinhas me causaram tamanho fascínio, que passei anos projetando um sistema de abertura instantânea, sem riscos à saúde. Descartei o canhão laser, pelos custos envolvidos. Deixei também de lado o rolo compressor, pois saía apenas purê de sardinhas. O modelo que chegou mais próximo da realidade foi um cortador, no formato da lata, que guilhotinava a tampa, de um só golpe. Naturalmente, tamanho e formato da lata deveriam se manter padronizados. Estava dando tudo certo. O equipamento era barato, de fácil operação, e de tamanho relativamente compacto, podendo ser afixado à parede. Então, veio o Collor. A segunda abertura dos portos, promovida por elle (sic), trouxe as latas de sardinhas portuguesas. Nada contra a nacionalidade delas. O problema foi o formato das latas, completamente diferentes das nossas. Depois, os pobres passaram a comer atum, graças à distribuição de renda do Lula. Atacado por direitistas, socialistas e portugueses, joguei a toalha. Desisti, pois cheguei atrasado. Meu invento foi natimorto. Não como mais sardinhas, e passei a odiar as latas.

As grandes corporações também chegam atrasadas. A France Telecom montou uma rede para acesso pago, sem fio, a Internet, cobrindo toda Paris, enquanto a prefeitura da cidade montava uma rede semelhante, com acesso gratuito.

Descobri que cheguei novamente atrasado. Investi nas eleições, tarde demais. Projetei postes telescópicos, que poderiam ser encolhidos até a altura de apenas dois metros, para facilitar a colocação e a retirada de propaganda eleitoral. Nos hiatos entre eleições, que não são tão longos assim, o sistema poderia abrigar a propaganda não-eleitoral. Todos ficariam felizes. Os candidatos poderiam colar sua propaganda sobre a dos outros, todas as noites. As gráficas operariam a plana capacidade. Alguém fabricaria e venderia os postes. As empresas de publicidade venderiam novos espaços. As prefeituras poderiam alugar os postes. Eu ficaria rico com a patente. Proibiram a propaganda eleitoral nos postes. Novamente, cheguei atrasado!

Não desisti, no entanto, de continuar inventando. A motivação veio de um grupo de sete miseráveis que aguardavam a morte, sentados sob uma marquise, nesta noite de frio glacial. Morrerão de frio, mas mantêm algum humor. O primeiro deu boa noite. O segundo pediu desculpas por darem boa noite, enquanto o último comentava que, de qualquer forma, eles não existiam. Como todo CSM – cidadão sem marquise -, passei olhando para o chão. Não é bom encarar a realidade. Percebi, então, por que as lojas passaram a colar propaganda sobre o passeio público. Todo mundo passa olhando para o chão, com se usassem um cabresto vertical. Foi então que nasceu meu novo projeto. São os OVU – Óculos de Visão Ufanista. Eles convertem a realidade local à realidade dos discursos. Esses óculos transformarão a passagem pelo Centro num passeio agradável, como se estivéssemos naquele lugar que os discursos políticos projetam. Através deles, veremos apenas marquises desabitadas. Não haverá caixas de papelão e cobertores sujos. Na Padre Chagas, os flanelinhas sumirão. Infelizmente, ainda não achei uma forma de sumir com os parquímetros. Os OVU eliminam apenas a imagem. O me-dá-me-dá-me-dá, permanecerá. Nada que um MP3 não resolva.

Sei que o produto tem tudo para se tornar um sucesso. Só temo chegar atrasado, novamente. Se o Brasil se tornar, finalmente, aquilo que nos vendem nos discursos, os OVU serão inócuos, inservíveis. Mostrarão a mesma agradável realidade que a visão a olho nu nos proporcionará. Assim, torço pelo atraso. Adoraria jogar os OVU fora. Porém, meu medo maior é da visão das ruas vazias, completamente desabitadas, através dos OVU, ao meio-dia, em pleno Centro, num dia comum da semana, apesar do ruído intenso.

Texto das Crônicas do Heuser.

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quarta-feira, setembro 10, 2008

Na escuridão

Na escuridão



SOU PROFESSOR , entro em sala todos os dias. Minha impressão básica é que o que falta muitas vezes na sala de aula é falarmos "a verdade". Apesar de ser um cético em quase tudo, acredito que há uma milagrosa relação entre o ser humano e "a verdade" quando ele percebe que ela é dita sem medo.
Uma grande traição feita aos mais jovens é atolá-los em "teorias a serviço da emancipação". Eu não quero emancipar ninguém porque para isso teria que mentir. Mentimos para sobreviver, isso é normal e civilizado, mas na sala de aula é uma traição.
Calma, caro leitor! Sei que "cada um é cada um". Uma afirmação forte como essa, "a verdade", pode me custar muitos amigos. Nunca mais jantares inteligentes. Hoje em dia você aprende no jardim da infância que "tudo é relativo", "a verdade" não existe, e todos os males do mundo são fruto do patriarcalismo e da Igreja Católica. Caricaturas ridículas da história são feitas a serviço da "liberdade"! Palavra já banal, quase idiota.
Existem também as palavras de ordem que devem ser ditas em meio às taças de vinho. Vejamos algumas delas: sou a favor do aborto, do casamento gay, da comercialização de fetos abortados (não! Essa ainda não é comum...) e não existe pecado. Qualquer coisa diferente, e de novo a ameaça: não te convido mais para jantar em casa. Não vou entrar no teor em si desses clichês e, falando sério, acho que há muito sofrimento verdadeiro nesses dramas humanos. Uma boa dose de auto-estima se faz necessária para não cairmos de joelhos diante desta "nova repressão". Toda fórmula para chegar à auto-estima é falsa, por isso resta-nos o sorriso da sorte ou da morte.
Quando falo "a verdade", me refiro a coisas mais simples do que debates filosóficos intermináveis sobre a natureza da verdade absoluta ou a existência de Deus. Refiro-me à luta cotidiana com nossa caótica condição humana e ainda termos que manter o bom humor e pagarmos as contas.
Refiro-me àquilo que gente como Ítalo Calvino chama de "dramas clássicos". O problema é que para ensinar isso, antes de tudo precisamos conhecer "isso" (coisa que vai ficando rara em meio ao blábláblá do relativismo cultural e da democracia no ensino). E pior, não podemos ter medo. Um dos dramas humilhantes do "otimismo moderno" é que para ser otimista temos que ser idiotas e negarmos os impasses assustadores da vida.
Explico-me: acho que os mais jovens agüentam ouvir "a verdade" mais do que professores de meia-idade. Esses professores já perceberam que a vida não é a bobagem das utopias de Maio de 68, tipo "sexo livre e é proibido proibir", mas se calam diante dessa dolorosa consciência. Às vezes por uma mera questão de salário. O pior é quando a resistência a isso se manifesta em meio à silenciosa melancolia da idade avançada. Na velhice não há festa e há muito silêncio.
Por exemplo, o ciúme do Otelo de Shakespeare. Todo homem é inseguro diante da mulher amada. É um tipo de maldição. Quando não é inseguro, é porque não ama. Se ela for muito bonita, muito simpática e "circular muito por ai", essa insegurança piora. Com isso não quero dizer que o homem deva "reprimir" a mulher para se sentir melhor, mesmo porque não adianta. Quero dizer que "papo cabeça" e "fórmulas de compromissos" não resolvem.
Em nossa época, a cama do casal virou uma frente de trabalho. É desgastante o fato de que devemos trabalhar "a relação" o tempo inteiro: nossos preconceitos, nossas inseguranças, nossos fracassos. O mercado de trabalho nos esgota, e o amor é uma trincheira. O imperativo da saúde total (psicológica, política e social) é uma praga que nos cobre como uma poeira invisível. Essa poeira nos sufoca, entrando pela boca. Explico-me: ou somos doentes ou somos ridículos, nunca saudáveis.
Outro exemplo, a infidelidade da Madame Bovary de Flaubert. Quem nunca viu a trágica figura da infeliz envelhecida que nos aborda com a segunda taça de vinho branco nas mãos? Ela que sonhava com uma vida cheia de paixões e acordou entre o tédio do cotidiano e a força cega do desejo destrutivo. Qualquer menina de 18 anos ouve isso e reconhece na infeliz Emma Bovary um risco possível: posso eu mesma virar uma Bovary, basta acreditar que a vida pode ser cheia de paixões!
A fronteira entre a paixão e o inferno é invisível. Os seres humanos reais caminham nessa tênue linha de sombra. Otelo, Bovary, você e eu, juntos, na escuridão.

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo, de 1º de setembro de 2008.

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O roubo da história

O roubo da história

Antropólogo fundamental, Jack Goody ataca a superioridade do Ocidente e diz que democracia e capitalismo já existiam no Oriente

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Muitos se perguntam se num futuro mais ou menos próximo o Ocidente perderá para a China a hegemonia mundial. Mas, para o britânico Jack Goody, um dos principais antropólogos vivos, a superioridade ocidental é em grande parte irreal também se olharmos para o passado.
Trata-se, para ele, de uma ilusão sustentada num modo distorcido de ver a história -um "roubo" da história.
É justamente esse o nome do denso e polêmico livro que o professor emérito da Universidade de Cambridge acaba de lançar na Inglaterra e que está saindo também no Brasil.
Goody não deixa pedra sobre pedra ao criticar autores clássicos como Karl Marx, Max Weber, Norbert Elias, e ao mostrar que democracia, capitalismo, liberdade e até o amor estão longe de ser invenções especificamente ocidentais ou conquistas de um processo histórico supostamente exclusivo.
Tal engano não é senão fruto do etnocentrismo que tenta justificar ou mesmo eternizar, no plano das idéias, uma dominação no nível dos fatos, construída pelos regimes coloniais e pela Revolução Industrial, diz Goody na entrevista abaixo.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif

FOLHA - O que o sr. quer dizer com "roubo da história"?
JACK GOODY
- Quero dizer que os europeus escreveram a história a partir de seu ponto de vista, que parte da vantagem e excepcionalidade do Ocidente e dá muito pouca atenção às realizações do resto, especialmente Ásia e Oriente Próximo.

FOLHA - Como este livro se articula com seus trabalhos anteriores?
GOODY
- Em vários trabalhos tentei mostrar como as sociedades letradas da Eurásia oriental e ocidental têm muito mais em comum do que a ciência social sugere. O Ocidente não foi "único", como se poderia pensar -não na maneira profunda como muitos estudiosos sugerem.

FOLHA - As ciências sociais estão ainda dominadas pelo etnocentrismo, mesmo depois do boom dos estudos culturais e da antropologia pós-moderna?
GOODY
- É verdade que a antropologia fez alguma coisa para modificar o etnocentrismo, mas ela se comprometeu com uma distinção entre sociedades tradicionais e modernas, a qual comete negligências e endossa uma visão ocidental e contemporânea da modernidade.

FOLHA - O sr. concorda com a interpretação de Claude Lévi-Strauss segundo a qual a história é um mito ocidental?
GOODY
- Não penso que toda história seja um mito ocidental. Outras sociedades examinaram seu passado, mas isso foi amplamente negligenciado pelo Ocidente, especialmente em sua explicação da modernização e do capitalismo.

FOLHA - A democracia não foi criada em Atenas, como se pensa?
GOODY
- Não. Atenas pode ter desenvolvido uma forma particular de democracia com a votação por escrito, mas a democracia existia em Cartago, em algumas cidades da Mesopotâmia, na Índia, na China e em muitas sociedades "tribais".

FOLHA - Por que Karl Marx e Max Weber têm teses erradas sobre as origens do capitalismo?
GOODY
- Porque o capitalismo estava muito mais disseminado -mesmo o industrial, embora tenha se desenvolvido mais com o uso da energia a vapor na Inglaterra. Mas ele foi um prolongamento da produção de algodão e seda na Índia e na China. Esses autores negligenciaram a contribuição da Ásia quando se referem ao seu modo de produção [Marx] e à ausência de ética protestante [Weber].

FOLHA - Por que o sr. também critica tão enfaticamente as obras de Norbert Elias e Fernand Braudel?
GOODY
- Elias me parece atribuir a civilização à Europa e negligenciar o resto. Braudel é muito mais aceitável, mas põe ênfase excessiva na contribuição européia à modernidade, o que parece ser um equívoco, tendo-se em vista o que está acontecendo na China e na Índia.

FOLHA - O sr. parece sugerir o abandono do conceito de capitalismo. Por quê?
GOODY
- Penso que esse termo é usado para sobrevalorizar a diferença entre a Europa (que o inventou) e a Ásia (que não pôde). Isso parece ser um conceito do século 19 que deveria ser usado com mais cuidado.

FOLHA - Medievalistas como Jacques le Goff tendem a distorcer o que foi a verdadeira Idade Média, quando combatem o estereótipo de "idade das trevas"?
GOODY
- Só houve um Renascimento na Europa justamente porque esse continente havia se submetido a uma "idade das trevas", que rejeitava as realizações greco-romanas na pintura (exceto a religiosa), escultura, teatro, exceto com propósitos religiosos. A ciência também sofreu um retrocesso e nos atrasamos com relação à Ásia de muitas maneiras, como [Joseph] Needham mostrou.

FOLHA - O sr. também afirma que o amor romântico esteve longe de ser uma invenção ocidental, como medievalistas apontam. Poder-se-ia então dizer que se trata de um sentimento universal, e não de uma construção histórica?
GOODY
- A maioria das sociedades têm o amor romântico, embora algumas lhe dêem maior importância do que outras. Ele é especialmente desenvolvido em culturas letradas.

FOLHA - Como essa nova visão da história que o sr. defende ajuda a pensar o significado e a tendência da atual globalização?
GOODY
- A Ásia sempre foi parte da cena "global". A China foi a maior potência exportadora no século 18. Nós voltamos agora a uma posição anterior aos desenvolvimentos industriais do século 19. A atual "globalização" significou a disseminação global sobretudo da cultura americana, em termos de filmes e música, mas a Ásia também deixa sua marca nesse aspecto. A comunicação não se dá de uma forma única, mas a eletrônica certamente lhe deu escala mundial, em termos de mídia.

FOLHA - Os Jogos Olímpicos de Pequim serão vistos no futuro como uma espécie de celebração da nova hegemonia mundial da China?
GOODY
- Eles não celebram a nova hegemonia mundial da China, mas assinalam o fim do predomínio europeu, que sua própria visão teleológica [da história] considera começar na Antigüidade grega.


O ROUBO DA HISTÓRIA
Autor:
Jack Goody
Tradução: Luiz Sérgio D. Silva
Editora: Contexto (0/xx/11/3832-5838)
Quanto: R$ 49,90 (368 págs.)

Do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 31 de agosto de 2008.

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terça-feira, setembro 09, 2008

Morreu Fausto Wolff

ESCRITOR FAUSTO WOLFF MORRE AOS 68 ANOS
O jornalista e escritor Fausto Wolff, que sofria de seqüelas de tromboembolia pulmonar havia um ano, morreu na sexta, no Rio, aos 68 anos. O corpo seria cremado no domingo. Nascido em Santo Ângelo, no interior do Rio Grande do Sul, Wolff integrou "O Pasquim" no final dos anos 60 e escreveu "O Acrobata Pede Desculpas e Cai" (1966) e "Gaiteiro Velho" (2003). Ele mantinha uma revista eletrônica na internet ("O Lobo") e uma coluna no "Jornal do Brasil". Deixa mulher e dois filhos.

A notícia é do jornal Folha de São Paulo, desta segunda-feira, 8 de setembro de 2008.

Uma notícia triste, e meus pêsames, em especial ao Jean Scharlau, parceiro de Wolff, na Internet.

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sexta-feira, setembro 05, 2008

Vira-latas compensatórios

Vira-latas COMPENSATÓRIOS

MITO SOBRE INCAPACIDADE DO BRASILEIRO DE SUPORTAR PRESSÃO EM MOMENTOS DECISIVOS DECORRE DE INVEJA E BAIXA AUTO-ESTIMA


A inveja é também o que leva a desqualificar o triunfo: "Foi só por um centímetro que Maurren Maggi ganhou a medalha"



RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

O erro que custou a Diego Hypólito uma medalha tida por todos como certa reativou um fantasma recorrente: a crença na vocação do brasileiro para fracassar nos momentos decisivos. Por alguma característica da alma nacional, não seríamos capazes de suportar tal pressão, o que se evidenciaria com particular clareza nas finais esportivas em que somos considerados favoritos.
Daí a expectativa que cercava as "meninas do vôlei": por terem perdido algumas partidas finais, elas haviam sido tachadas de "amarelonas", "pipoqueiras" e outras gentilezas do mesmo teor.
Daí também a atitude condescendente para com as futebolistas que, repetindo Atenas, "deixaram escapar o ouro" e os muxoxos com que foram recebidas as medalhas de prata e bronze em outras modalidades.
"Não temos vocação para perder", exclamou Ronaldinho após a derrota para a Argentina. "Bronze envergonhado", dizia a manchete de "O Estado de S. Paulo" no dia seguinte.
Por que tamanha tolice ressurge periodicamente "nos lares e nos bares", na televisão e na imprensa? Eu mesmo recebi telefonemas de jornalistas interessados em ouvir o que um psicanalista teria a dizer sobre a insidiosa inibição supostamente responsável pelo "fracasso do Brasil na Olimpíada", como formulou um deles.
O fato de a pergunta ser descabida -é óbvio que não existe nada disso- não nos exime de investigar por quais motivos ela pode parecer legítima.
É certo que Freud, num pequeno artigo de 1916 intitulado "Vários Tipos de Caráter Descobertos no Trabalho Psicanalítico", falou dos que "fracassam ao triunfar", e atribuiu o fenômeno aos sentimentos de culpa associados ao complexo de Édipo: colher um êxito ardentemente desejado é para certas pessoas equivalente a uma agressão contra o pai ou a mãe -e a consciência moral, opondo-se energicamente a isso, interfere para as impedir de atingir o alvo.
Mas nada sugere que tal seja o caso das jogadoras de futebol, dos competidores em vôlei de praia e dos demais atletas -brasileiros e de outras nacionalidades- que conquistaram medalhas de prata e de bronze, para não falar dos que não conseguiram subir ao pódio.
É a obsessão nacional pelo "ouro", e a atitude frente à vitória ou à derrota que nela transparece, que merecem um pouco de reflexão.

Auto-engano
"Não estamos acostumados a perder", exclamou um desconsolado Ronaldinho após a derrota para os argentinos. "Não pensamos em prata: nosso objetivo é o ouro. Mas ainda não ganhamos nada", ecoou Marta ao terminar a semifinal contra as alemãs.
Frases como essas sugerem que muitos atletas compartilham a convicção de que é possível ganhar sempre, que o segundo lugar é apenas um "prêmio de consolação" e que o bronze não tem valor nenhum.
O que neles era latente se torna explícito na postura do presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira -não haveria prêmios monetários caso as seleções de futebol voltassem sem os respectivos títulos, o que acabou acontecendo.
Querendo isentar-se da responsabilidade pelas condições precárias em que boa parte dos esportistas teve de se preparar, outros dirigentes recorreram à surrada fórmula do "bronze que vale ouro", versão cabocla do "jogo do contente" inventado por Poliana.
Se a platéia não as aceitasse, porém, ninguém se lembraria de invocar tais desculpas esfarrapadas, e é a cumplicidade dela na operação de mascaramento da realidade que chama a atenção.
Uma das razões dessa atitude é sem dúvida de natureza projetiva: os esportistas carregam nos ombros a responsabilidade de "representar a nação".
Vencendo, inflam nossa auto-estima e, fazendo-nos crer que somos tão bons quanto os melhores, nos proporcionam uma satisfação narcísica rala, mas de certo modo eficaz; se perderem, confirmam a crença na pouca valia dos nossos conterrâneos e, portanto, de nós mesmos.
O segundo motivo para desprezar os "perdedores" é a inveja, pois jamais chegaremos a realizar nada parecido com as proezas de que são capazes esses jovens. Como a inveja não é um sentimento nobre, negamo-la atribuindo o "fracasso" não às circunstâncias específicas que o provocaram, mas a algo cuja função é nos tornar mais uma vez semelhantes aos que, no fundo, não podemos deixar de admirar -mas agora pelo avesso: se a incapacidade de transformar o favoritismo em realizações é uma trágica fatalidade do caráter brasileiro, então os atletas não podiam mesmo conquistar a almejada vitória.
A inveja é também o que leva a desqualificar o triunfo efetivamente obtido -"foi só por um centímetro que Maurren Maggi ganhou aquela medalha" [ouro no no salto em distância].
O absurdo dessa afirmação fica patente se lembrarmos que, nesse nível altíssimo de desempenho, a diferença entre vencedores e vencidos é sempre diminuta -alguns centésimos de segundo numa das vitórias de Michael Phelps, entre o terceiro e o quarto lugares no revezamento masculino 4 x 100 m e em outros casos relatados pela imprensa.
Será que os vencedores dessas provas são realmente tão superiores aos outros participantes? Excetuando alguns casos extraordinários, como os de Usain Bolt [Jamaica, atletismo] e Michael Phelps, isso não é verdade.
A prova? Em competições anteriores, foram vitoriosos os derrotados de agora e vice-versa: a seleção feminina de futebol perdeu para as alemãs o campeonato mundial de 2006, mas ganhou delas em Pequim; o time masculino de vôlei venceu os italianos, mas havia perdido para eles em 2004; Tatiana Lebedeva [Rússia, salto em distância] foi campeã na Olimpíada de Atenas e vice na da China; e assim por diante.

Virtù e fortuna
Para o esporte vale o que escreveu Maquiavel a propósito da política: o sucesso não depende apenas da "virtù", mas também da "fortuna".
"Virtù" é o que o combatente traz consigo: seu preparo técnico, seu conhecimento do terreno e do adversário, a qualidade de suas armas. "Fortuna" é o fator imprevisível que favorece um ou outro -a lama no campo de batalha, o erro do oponente, a vara que faltava no estojo de Fabiana Murer.
A contusão de Liu Xiang [China, atletismo] é obra da "fortuna", assim como o imbecil que agarrou Valdemar Cordeiro na maratona de 2004 ou a falha de Diego Hypólito no instante final.
"Faço este movimento desde os 12 anos, nunca errei", lamentava-se ele ao rever o filme da prova. Até que um dia...
Na mesma entrevista, o ginasta reconheceu onde estava sua fraqueza: "Creio que poderia não ter criado tanta expectativa quanto ao ouro". Ou seja, além da pressão da torcida, o próprio atleta acaba se persuadindo da obrigação de vencer, e isso o perturba no momento decisivo.
Inconformada com o resultado da partida final, o rosto molhado de lágrimas, a capitã Marta se perguntava: "Meu Deus, o que foi que eu fiz de errado?". A resposta é: nada. O que determinou o 1 a 0 foi apenas que naquele dia as americanas jogaram mais que as brasileiras.
Por outro lado, a "virtù" contribuiu, e muito, para alguns bons resultados em Pequim. Entre outros exemplos, ressalto o trabalho psicológico com a equipe feminina de vôlei, o cuidado das velejadoras Fernanda Oliveira e Isabel Swan em estudar as condições do lugar em que iriam competir, a equipe multiprofissional de que se cercou a lutadora Natália Falavigna no taekwondo, o apoio dado pela família a César Cielo, a determinação de Ketleyn Quadros e de Maurren Maggi.
O que esta escreveu na carta ao seu técnico -"dei duro e estou preparada"- não garantia a vitória, mas sem isso ela jamais chegaria.
Contraprova: a "pátria de chuteiras", com muita empáfia e pouco treino, tinha chances remotas contra uma Argentina que se preparou melhor -e merecidamente levou o título.
É tempo de deixarmos de lado o que Nelson Rodrigues chamava de "complexo de vira-lata". Ao invocar absurdos como a suposta incapacidade nacional para manter a cabeça fria na hora H, não apenas estamos faltando com a verdade -desde a invenção dos esportes modernos, inúmeros brasileiros venceram finais com tranqüilidade, assim como outros foram prejudicados pelo nervosismo ou pela arrogância- mas ainda apequenamos o valor de resultados conseguidos com esforço hercúleo, independentemente do metal das medalhas -ou da ausência delas.
Acaso aquelas duas famosas polegadas tornavam Martha Rocha menos bonita? Que o diga quem se lembrar do nome da Miss Universo de 1954.


RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .

Texto do caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 31 de agosto de 2008.


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Mais gente que se vai

Agora foram Waldick Soriano, e Fernando Torres.

Mas não tenho muito a dizer sobre o cantor ou o ator/diretor/produtor.

Bem, sobre Fernando Torres, quando me deram a notícia, eu pensei “que pena!”

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quarta-feira, setembro 03, 2008

O cineasta Wim Wenders banca o fotógrafo em Veneza




As imagens são do álbum do UOL sobre o famoso festival de cinema da cidade.

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Adão Iturrusgarai vê algo da filosofia

terça-feira, setembro 02, 2008

AMERICANO NÃO SABE PERDER

DENVER, COLORADO - Já antecipo a minha defesa: não, não estou injuriado com a derrota do Brasil no vôlei masculino. Não vi o jogo. A NBC não passou ao vivo. Aqui funciona assim: eles guardam o jogo para o dia seguinte. Se os Estados Unidos ganharem eles passam na íntegra, com festa, entrega de medalhas e hino. Se os Estados Unidos perderem eles não passam. Juro por Deus.

Até o quadro de medalhas andou sumido da cobertura televisiva. Ainda que tenham mudado o jeito de contar as medalhas, desprezando as de ouro em benefício do total -- assim os Estados Unidos "ganhariam" de novo --, os americanos não querem dar o braço a torcer e admitir que a China venceu um número maior de medalhas de ouro.

Já antecipo minha defesa: não acho que alguém deva bater no peito pelo simples fato de ter nascido em latitude ou longitude diferente. Acho um porre essa história de ficar cantando "eu, sou brasileiro, com muito orgulho". É mais cafona que usar pochete. Gosto do esporte. Gosto de basquete, de atletismo, de futebol. Se o cara for bom eu gosto. Se o time for bom eu gosto. Além disso, essa história de recrutar criança no berçário para defender as cores do país acho que beira o fascismo.

Dito isso não posso deixar de notar a dor-de-cotovelo dos americanos. Quando eles perderam na ginástica trouxeram de volta o caso da idade provavelmente falsificada das ginastas chinesas. Não questionaram a vitória de Michael Phelps naquela decisão no mínimo controversa. Na TV, nem um pio. Os jornais, sim, mencionaram que a empresa de cronometragem da natação é patrocinadora de Phelps e publicaram as fotos que, na verdade, não provam que ele venceu.

O que me irrita, sinceramente, é a patriotada que beira o desrespeito. A rede NBC editou a disputa do salto em distância e conseguiu não colocar o salto da vencedora, embora tenha colocado uma imagem da comemoração. Até entendo que, por causa da audiência, eles escolham para transmitir os esportes nos quais os atletas daqui tenham maior chance. Mas, em nome do tal "espírito olímpico", deveriam admitir que eles não são os únicos vencedores. Essa mistura de patriotada com prepotência é que me irrita.

Texto do Luiz Carlos Azenha, no Vi o Mundo.

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segunda-feira, setembro 01, 2008

Ao apagar da chama

Ao apagar da chama

Por Paulo Heuser

A chama se apagou, o show terminou. Atletas e público voltaram para casa. Hora de voltarem às novelas e ao futebol. Serão quatro anos de preparo para os Jogos Olímpicos de Londres 2012, tarefa já iniciada há muito. O Rio de Janeiro está de olho em 2016. Os Jogos Olímpicos transformam cidades, basta dar uma olhada em Pequim, que mudou de cara para receber os turistas olímpicos. Aprenderam a sorrir, esconderam o churrasquinho de au-au, reduziram a poluição e deram o maior show de pirotecnia já visto. Sem esquecer o show de conquista de medalhas, onde desbancaram as ex-potências do esporte. O Johnson virou Lingson.

Londres 2012 mostrará contrastes com Pequim 2008. Os londrinos não precisarão de muita tecnologia e de grandes manobras para obterem visibilidade maior do que 30 metros, pois o fog dá folga no verão, e muito da poluição foi controlado nas décadas anteriores. Os maiores índices de poluição ocorreram em 1952, quando três mil pessoas morreram em conseqüência do smog – smoke + fog. O que me deixa curioso, é o que farão no show de abertura. Um festival de rock, talvez, pois nisso eles são muito bons. O príncipe Charles fará um discurso de boas vindas, recheado com pequenas piadas britânicas. Aquele refinado humor britânico é muito bom. Ele provoca gargalhadas de golfe, além das palmas, é claro. A nação que deu Monty Python e John Cleese ao mundo merece respeito humorístico.

Esse humor britânico viria da comida deles. É impossível não rir dela. Londres tem seis mil restaurantes, representantes da culinária de mais de 70 países. Ainda bem, para eles e para os estrangeiros. O maior prodígio britânico foi a exportação de alguns hábitos alimentares às colônias. Até hoje os países anglófonos ainda compartilham do café da manhã da culinária inglesa. O café da manhã dos norte-americanos é a cara do café da manhã dos ingleses: bacon, ovos, salsichas e pão, tudo frito, inclusive o pão. Bombas de gorduras, porém saboroso. Já dos outros pratos, é melhor não saber.

Nem sempre foi assim. As primeiras colônias dos EUA, na Terra Nova (1583) e na Virgínia (1587), foram abandonadas devido à ferocidade dos índios revoltados com a culinária dos conquistadores. Trata-se de uma especulação, é claro. Eles não teriam suportado a kidney pie – torta de rim -, nem fish and chips – peixe e batatas fritas – com muito ketchup e enrolados em jornal. Como os ingleses ainda não conheciam a batata inglesa, nessa época, presume-se errado que fish and chips seria só fish com ketchup, enrolado no jornal. Ocorre que tampouco havia ketchup, nem jornais impressos. Isso causa algum abalo na hipótese. O jornal é imprescindível, pois é ele que dá gosto à coisa.

Os britânicos são cordiais, em geral, apesar da aparência um tanto empoada. À pergunta sobre um bom lugar para se comer por lá, terão a resposta na ponta da língua: "Oh, bem, eu tentaria Paris ou Roma!". Nesse aspecto Rio 2016 dará de dez a zero neles. Afinal, no Rio poderão comer feijoada. E feijoada. E mais feijoada. Para variar, feijoadinha de feijão branco, em preparo para a próxima feijoada. Haja gás!

Caipirinha não é mais bebida típica do Rio de Janeiro. Muitos parisienses juram que ela foi inventada lá, principalmente os argelinos. Alguns venezianos pensam o mesmo, pois caipirinha é coisa da terra do carnaval, e, afinal, quem inventou o carnaval? Os gregos também dizem que foram eles, mesmo que lá a caipirinha seria feita com ouzo - bebida feita de anis. Rio 2016 será na base da feijoada – quero vê-los pronunciar isso – com gaibirrinia. Feijoada soará como feiioaada, em alemão, pois o jota pronuncia-se como o i. A propósito, o vê se pronuncia como o efe, e o dobre-vê como vê. Simples, não é? Por que a letra a está duplicada? Porque deve estar, ora.

Numa coisa Londres levará grande vantagem sobre Pequim 2008 e Rio 2016. Lá todos falam inglês, apesar de os norte-americanos não concordarem muito com isso. Até as crianças lá falam inglês! Nota-se que investem pesado no ensino de línguas.

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